Medo e delírio nos corações bolsonaristas

Relato etnográfico: um treinador de academia descreve a elite branca que o cerca, na Barra da Tijuca. Nas eleições, ela rumina pós-verdades para esconder seu maior temor: perder privilégios. Ao fazê-lo, revela suas taras, ignorância e colonialismo

Imagem: Ernie Barnes (1938-2009), artista estadunidense
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Eram 18h. Naquele momento alguém gritou “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos, o Brasil é nosso! O Brasil é nosso!” No número 3100 da Avenida Lúcio Costa, no Rio de Janeiro, centenas de pessoas envoltas em bandeiras verde-amarelas estavam dançando, gritando e cantando o hino brasileiro no auge de seus pulmões. Jair Bolsonaro morava naquele endereço, ele tinha acabado de ganhar as eleições, era outubro de 2018 e a Barra da Tijuca estava se enchendo de um novo tipo de fervor. Quatro anos depois, em outubro de 2022, essa liturgia política era substituída pelo grito de “fraude!”, “CorrupPTo!, “Luladrão!” e, principalmente, “Intervenção Federal (ou seja, militar) já!”.

O bairro, localizado à beira-mar na parte oeste da cidade, representava a área bolsonarista por excelência, aquela nova Beverly Hills saneada que há anos tentava evitar assentamentos informais de favela, e queria adotar um estilo de vida norte-americano, representado não apenas em sua forma urbana, centros comerciais, carros e pistas de alta velocidade, mas em símbolos como uma Estátua da Liberdade e um Centro de Nova York. Os moradores deste bairro, embora diversos, eram geralmente chamados de “emergentes da Barra”, da “Miami brasileira”, uma nova classe culturalmente diferenciada de seus vizinhos da zona sul, e onde os valores de modernidade, segurança, praticidade e self-made eram sua marca. A Barra da Tijuca era o bairro com o mais alto índice de qualidade de vida do Rio de Janeiro, com uma população de aproximadamente 400 mil pessoas. Nas eleições de 2022, mais da metade do bairro votou em Bolsonaro, sendo um dos espaços mais bolsonaristas do Rio.

A articulação do discurso radical e da polarização política no bairro ocorreu a partir de uma nova cultura comunicativa, caracterizada pela desintermediação, o meme, a descontextualização e as notícias falsas, em uma espécie de populismo digital em que tudo era rápido e antagônico, em um contexto de pós-verdade que questiona o procedimento de construção de verdades baseadas em fatos. Milhares de mentes dispersas acessaram esses artefatos para construir, a partir de suas vidas muitas vezes solitárias devido à própria infraestrutura urbana de medo e isolamento; uma comunidade imaginada para compartilhar e reafirmar tenazmente seus ideais. Embora estes espaços fossem fundamentais para organizar o discurso, esta classe social do bairro, sentindo a falta de um capital cultural representativo no país, compartilhava sua raiva e orfandade nos jardins e campos esportivos dos condomínios. Talvez o espaço mais representativo para estes “órfãos”, agora patrocinado pelo bolsonarismo, fossem academias esportivas dos condomínios.

Ernesto trabalhou como treinador de academia em um desses condomínios de luxo, transitando entre dois mundos. Todos os dias ele deixava seu bairro, numa humilde área do Jacarepaguá, e tomava dois ônibus com a classe trabalhadora que ia para estes condomínios. Lá ele passava por dois postos de controle de segurança armados, chegando finalmente ao ginásio de um prédio de mais de 20 andares. Neste condomínio, Ernesto encontrava e falava diariamente com garis, seguranças, motoristas, trabalhadores de limpeza do prédio, manicures, passeadores de cães, jardineiros, motoristas Uber, taxistas e motoristas de ônibus, e toda uma série de pessoas que geralmente têm que deixar suas casas às três horas da manhã com um objetivo em comum: manter o condomínio em boa forma.

Muitos deles eram negros, mas nenhum deles vivia nos prédios. Não foi surpreendente que o músico negro e comediante Eddie Jr, neste caso em São Paulo, tivesse sofrido ataques racistas por viver em um desses condomínios para a elite branca. Embora o racismo fosse geralmente velado na linguagem, de tempos em tempos frases como “negro”, “feio”, “bandido” ou “macaco de fora” se acendiam. Sempre foi assim.

Ernesto falava com os trabalhadores em seu caminho, muitos votariam novamente em Bolsonaro no segundo turno nas eleições de 2022, pois, segundo eles, estes últimos anos teriam se caracterizado pela seca, pandemia e pela guerra na Ucrânia, e o “homem” precisava de outra chance. A gasolina era barata graças ao “Mito”, o Brasil tinha deflação. Estas palavras eram reproduzidas entre a classe mais despossuída, o que também atrairia um pequeno sorriso de seu pastor. Contra a depravação moral, contra o bandido e a corrupção. Outros sonhavam que, ao se comportarem como seus patrões, um dia ocupariam um espaço semelhante e deixariam a vida nas favelas e comprariam um apartamento com vista para o mar. Mas estes eram poucos, é claro. Para a maioria, sua posição enraizada no subúrbio vinha como algo natural, e nada mudaria jamais.

Ernesto chegava então ao edifício. Levantando a cabeça, ele podia ver as bandeiras nacionais que flamejavam quando o dia 30 de outubro se aproximava, e ele entrava no ginásio, onde todos os dias comparava as frases de seus colegas de classe com as desta elite carioca. Durante os anos do bolsonarismo, entre 2018 e 2022, Ernesto escreveu todos os dias as frases que essas pessoas diziam. Ele observava um espaço comum que eles compartilhavam entre as máquinas esportivas, onde os discursos imaginários das redes sociais adquiriam corpo e matéria por meio de gritos, críticas e assentimento. Algumas destas fotografias representavam o trabalho de Ernesto na captura do discurso violento articulado em academias ao longo dos anos. O silêncio durante sua jornada de trabalho, a raiva e a impotência diante da fragilidade democrática, foi canalizado em seus escritos, no que ele chamou em seu diário de “Beverly Hills Carioca”, e que agora reproduzimos alguns fragmentos:

“Nossas manifestações são educadas, sem violência. Eles não são como os da esquerda, que só tem bandidos, onde quebram tudo e insultam a todos”, disse uma idosa no condomínio, movendo as pernas na máquina de remo. Então, voltando-se para ele, ela disse: “Não entendo por que você não gosta de Bolsonaro, você é um esquerdista”. Uma mulher explicou em outro dia, após uma viagem à Índia: “é um país muito pobre, com castelos de ouro de um lado e pobreza do outro, mas é exótico, você sabe”. Ao mesmo tempo, um homem negro ajoelhou-se para limpar a porta de vidro do ginásio. “Você sabia que a empresa Correios é de esquerda? É por isso que nada funciona”, comentaram dois vizinhos caminhando rapidamente sobre a esteira. “Você só assiste a Globo, é por isso que você não aprende”, outro inquilino ditou paternalisticamente enquanto fazia exercícios de pulso. “A época mais feliz da minha vida foi de 64 até o fim da era militar”, disse um aposentado.

O diário de Ernesto proporcionava uma pequena fechadura pela qual espiar as conversas cotidianas, onde o racismo, o classismo e a heteronormatividade das elites cariocas estavam presentes, como um código de conduta que tinha que ser cumprido para obter reconhecimento na vizinhança. Algumas vezes, como nos discursos anteriores, foram conversas sobre tapetes de chá nas quais a elite tentava explicar o funcionamento do país. Em outros momentos, esses discursos emitiam emoções de ódio, medo e raiva profunda, tentando reafirmar não só a posse de uma verdade produzida, mas também virilidade, força e poder: “Marielle tinha que morrer, ela era uma vagabunda”; “o racismo é vitimização”; “a esquerda recebe sanduíches de mortadela nas manifestações”; “eu também deveria ter uma cota, eu também sou uma minoria, uma minoria de descendente de alemão”, disse um vizinho gaúcho.

Traços violentos assumiram sua expressão mais negacionista e paranoica durante a pandemia: “Ivermectina é nossa única saída”, disse um arquiteto. “Para eles, é interessante que não saibamos a verdade”, especulou um dentista, em oposição à campanha de vacinação. “Bolsonaro não comprou a vacina porque o STF não o deixou”, disse um jovem em sua palestra. “O lockdown não funciona em nenhum lugar, enquanto os criminosos têm festas”, gritou uma senhora.

À medida que a campanha avançava, a histeria em massa foi novamente canalizada para o ataque ao comunismo. “Esse papa é um comunista”, afirmou um casal de idosos. Ernesto achava cada vez mais difícil suportar estas afirmações, e por isso perguntou, com suposta ingenuidade, o que os cavalheiros pensavam que era o comunismo. “O comunismo é o que não funciona em nenhum lugar, tudo para o Estado e nada para o povo”, explicou um homem de 72 anos. “Vou lhe dar um exemplo”, disse a mulher: “Imagine que você tem uma casa com três quartos, mas você só usa um, e o governo o obriga a dar os outros dois a estranhos, isso é justo? Isso é comunismo. O comunismo é defender um ladrão de telefones, um petista do MST que quer tomar sua casa pela força”.

Todas estas mensagens deram forma e interação superficial ao que estava sendo transmitido nas redes sociais. Em uma mistura de diferentes espaços para a construção da retórica, Ernesto viu como, no contexto eleitoral, os grupos de vizinhos da academia adquiriram uma violência e um grau de paranoia particulares. Assim, uma vizinha escreveu no grupo hidro-ginásio de seu prédio:

“Vamos fazer um protesto para que o governo do PT de Lula não entre. Porque nós, cristãos, vamos sofrer. Não vote em Lula, ele está planejando fazer um banheiro misto masculino e feminino, colocar uma imagem de Exu do vento em cada cidade do Rio como guardião. As crianças poderão escolher que sexo podem ser, as mulheres poderão ter um relacionamento com seus animais de estimação que não será um crime, o pastor será obrigado a fazer casamentos gays e lésbicos em sua igreja se ele não o fizer, eles serão presos. Vamos orar para esse Lula não ganhar as eleições. Eu não gosto de política. Mas eu não voto em Lula, ele está fechado com os espíritas, ele fez um pacto com os demônios. Bolsonaro é a favor da família e temente a Deus.”

Da mesma forma, o fim da campanha eleitoral alimentou sentimentos profundos de natureza mais antidemocrática, representados no lançamento de granadas na Polícia Federal e mensagens tirados da gaveta apelando para um golpe militar no WhatsApp, falsificando as palavras das lideranças do exército:

“(…) Nós juramos defender a Pátria! Começou em 1964. Os senhores meus amigos sabem muito bem. Uma coisa leva a outra!!!! Assim estou expressando meu maior sentimento de repúdio a esse Supremo Tribunal da Vergonha. Nós das FFAA sabemos muito bem o que devemos fazer para impedir tudo isso, mas agora cabe saber o que a Sociedade de bem deseja. Será que também vão invadir minha casa? Convoco aqui, como Chefe de Instituição Militar, uma grande mobilização dos nossos amigos oficiais patriotas e que essa carta se espalhe para todos vocês e se unam (…)”.

A defesa racional dos interesses de raça, classe e gênero parecia ser acompanhada por uma espécie de delírio discursivo que chicoteava fantasmas, medos e ódios que dominavam o mais íntimo dos vizinhos do condomínio. O valor da cruz foi apresentado em sua faceta mais punitivista. Isoladas entre quatro paredes, as pessoas construíram uma base complexa de pensamento, poder e desejo, na qual a dominação pós-colonial foi, por sua vez, tecida com demônios potenciais das religiões afro-brasileiras, inseguranças em um universo hiper-masculinizado e medos de transformação em monstros e taras anticristãs que habitariam nas profundezas das almas.

O pensamento bolsonarista foi articulado e solidarizado neste espaço concreto, fortalecendo um sentimento de pertencimento através da repetição de ideias. Como a análise de Trotsky sobre o nazismo, os medos e percepções de ameaças iminentes permitiram a lunática criação de formas inimigas que poderiam muito bem ser categorizadas como pensamento mágico ou paranoia coletiva. Dentro de suas paredes, Ernesto observava como os vizinhos reagiam agressivamente aos avanços civis. Eles procuravam restabelecer aqueles privilégios teoricamente perdidos, e a academia era um espaço de cristalização e reprodução do poder social de elite, onde era legítimo desenvolver uma mentalidade agressiva de Lobo de Wall Street. Nesse espaço, o trabalhador negro, a trabalhadora doméstica ou o jardineiro pobre tinha um papel social claro: uma subalternidade assumida, uma naturalização daquela ordem que tinha que ser recuperada. E claro, o discurso sempre foi construído a partir dos corpos, dos músculos do machista, dos espaços onde as elites levantam pesos, suor e gritos. É a partir desses espaços isolados que a elite bolsonarista imaginou, com raiva e angústia, seus inimigos, como uma polícia de fronteira capaz de legitimar um “nós contra eles”, um “bem contra o mal” eterno.

Ernesto chegou sorridente após a vitória. Silêncio. Essas vozes constantes, antidemocráticas, estavam agora em silêncio. Algo infantil, violentamente infantil, eternamente infantil, era expresso através dos olhos dos vizinhos: a saída do bolsonarismo era pôr fim a um mal inventado, para o qual era importante se organizar rápido, assaltar as estradas, reclamar a fraude, acabar com os inimigos do Brasil. O inimigo não sabia com quem ele estava falando. Muitos destes supostos inimigos também estavam ao seu redor, construindo sua identidade social através da limpeza de seus espaços, apoiando em aparente contradição uma ordem histórica que o bolsonarismo reivindicava.

Os “cidadãos de bem” bolsonaristas suavam, levantavam pesos, expressando uma raiva eterna, selada em sangue, capital e bandeira. “Nossa vingança será ver como o pobre vai se arrepender”, exclamou uma senhora na bicicleta elíptica. Os trabalhadores, quase todos negros, limpavam o chão da academia. Sorte que o Flamengo tinha ganhado a Copa Libertadores, e o futebol se apresentava, mais uma vez, capaz de mediar essa falsa cordialidade. Dessa vez foi o Corinthians e sua torcida quem teve que demonstrar seu papel político na defesa da democracia, sem ocultar debaixo da bola uma eterna luta racial, de gênero e de classe que era representada nesse pequeno microcosmos da academia.

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