O fantasma do golpe ainda ronda a Bolívia

Há semanas oposição promove ondas de violência em Santa Cruz. Milícias atacam trabalhadores que furam a “greve dos patrões”. Sitiam empresas estatais. Indígenas organizam atos pela democracia. Arce exige ação das Forças Armadas

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Por Tanya Wadhwa, no People’s Dispatch, com tradução na Revista Opera

Desde 20 de outubro, os setores oposicionistas conservadores no departamento de Santa Cruz, na planície oriental da Bolívia, têm organizado diversas ações contra o presidente progressista do país, Luis Arce, e o governo do partido Movimento ao Socialismo (MAS). Sua principal reivindicação é que o Censo Populacional e Domiciliar seja realizado no primeiro semestre de 2023, e não em 2024. Desde o início dos protestos, o governo repetidamente pediu que estes setores se disponham ao diálogo. Ainda assim, eles têm rejeitado toda forma de negociação, e insistido que o governo nacional se curve à sua reivindicação tecnicamente impossível.

O líder da oposição de extrema-direita e governador de Santa Cruz, Luis Fernando Camacho, o presidente do Comitê Cívico Pró-Santa Cruz, Rómulo Calvo, e o reitor da Universidade Autônoma Gabriel René Moreno (UAGRM), Vicente Cuéllar, convocaram uma greve cívica ininterrupta no departamento, para forçar o governo a se curvar às suas demandas. A natureza seletiva desta greve, que se iniciou em 22 de outubro, acabou saindo pela culatra. Desde o dia 27 de outubro, trabalhadores de diversos setores do departamento têm realizado marchas e bloqueios de estradas e fábricas, em rejeição à greve, denunciando o fato dela só ter forçado os trabalhadores pobres a parar de trabalhar, enquanto os ricos empresários e grandes comerciantes seguiram gerando lucros.

Frente à ampla rejeição do povo, Camacho, que promoveu protestos racistas e violentos contra o governo do MAS e contra o então presidente Evo Morales em outubro de 2019, mais uma vez recorreu à violência. Grupos de extrema-direita e apoiadores de Camacho têm realizado ataques contra os setores que se opõem à greve.

O presidente Arce faz um alerta contra um golpe de Estado

No dia 1 de novembro, o presidente Luis Arce fez um alerta, denunciando que a oposição conservadora busca repetir o golpe de Estado de 2019 ao fomentar a violência durante a greve geral cívica de Santa Cruz. Sob tais circunstâncias, ele fez um apelo para que as Forças Armadas do país protejam a estabilidade da Bolívia e defendam a Constituição.

“Hoje, a Bolívia é mais uma vez ameaçada por aqueles que, incapazes de contribuir com a democracia, usam a confrontação e a violência, pondo em perigo a coexistência democrática entre os bolivianos. Eles só estão deixando claro que só o povo tem uma convicção democrática autêntica, porque sabem que [o povo] é a maioria. A lealdade das Forças Armadas é com o povo, que expressou sua vontade de viver junto, em paz e [sob a] democracia. É sua obrigação defender o governo legalmente constituído”, disse o presidente durante uma cerimônia de posse de novos comandantes militares.

O chefe de Estado declarou ainda que esses atores que ameaçam a Bolívia têm “uma forma particular de ver a democracia, na qual ela só existe se a maior parte dos bolivianos abrir mão de seus interesses.” Ele disse ainda que, sob essa lógica, “eles [agora] colocam em prática uma estratégia que visa repetir o golpe de Estado de 2019”, quando a ordem constitucional foi quebrada com a autoproclamação ilegal da então segunda vice-presidente do Senado, Jeanine Áñez, como presidente, em novembro de 2019.

O presidente Luis Arce alertou que “há conversas sobre marchas por federalização e outros processos [que se imporiam] de facto, e não como resultado de um pacto social para mudar nosso Estado por outro; por isso se trata de um ataque contra a integridade nacional.”

Nesse contexto, Arce rememorou que “a missão constitucional das Forças Armadas é garantir e defender a independência, unidade e integridade de nosso território.” Ele também lembrou ao Alto Comando Militar que seu “primeiro objetivo é a proteção da estabilidade política e a defesa intransigente da Constituição Política do Estado.”

A violência em Santa Cruz

Atos de violência e intimidação aumentaram significativamente nos últimos dias em Santa Cruz.

No dia 2 de novembro, membros da União Juvenil Crucenista (UJC), um grupo de choque de Santa Cruz, junto a apoiadores de Camacho, fez um ataque contra residentes do município de La Guardia com fogos de artifício, porretes com pregos e instrumentos cortantes. O grupo os atacou com a intenção de forçosamente pôr fim ao bloqueio que os residentes haviam estabelecido na estrada de entrada de Santa Cruz, em oposição à greve. Inicialmente, eles conseguiram expulsar aqueles que eles chamavam de “masistas” (em referência ao partido governante MAS). No entanto, pouco tempo depois, os moradores se reagruparam e expulsaram os valentões de Camacho. A confrontação entre os dois lados durou horas.

O grupo paramilitar também atacou a polícia local com armas, pedras e explosivos caseiros. Eles também tomaram o comando de polícia de La Guardia temporariamente, saqueando o quartel general e danificando seis viaturas. Um policial foi ferido a tiros durante o ataque. O ministro de Governo, Eduardo del Castillo, afirmou depois que nove pessoas foram presas por participação no ataque armado.

Anteriormente, no dia 30, membros da UJC tentaram tomar o controle da refinaria de Palmasola e a planta de armazenamento da companhia petroleira estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) em Santa Cruz, atacando os seguranças da instalação com fogos de artifício e pedras. A tomada foi impedida pelos moradores da região, que enfrentaram os invasores para proteger a planta, o que levou a confrontos entre os dois lados. A polícia local teve de intervir para restaurar a lei e a ordem.

Além disso, nesse mesmo dia, membros do Comitê Cívico e apoiadores do governador Camacho atacaram militantes sociais, políticos e indígenas que estavam organizando bloqueios de estradas contra a greve cívica, no município de Concepción. Rocio Picanere, porta-voz da Central Indígena Ayoreo da Bolívia Oriental (CANOB), denunciou que paramilitares queimaram casas e espancaram moradores de cinco comunidades em Concepción.

Ao mesmo tempo, ao menos 50 pessoas jogaram sacos de lixo na porta da sede da Confederação Nacional de Mulheres Camponesas, Indígenas e Nativas Bartolina Sisa.

Na última semana, no dia 25 de outubro, Felipa Montenegro, líder da Confederação Bartolina Sisa, denunciou que ela e sua família tinham recebido ameaças de morte de grupos de extrema-direita que operam em Santa Cruz. Montenegro reportou que havia drones voando ao redor de sua casa. Ela classificou o ato como uma forma de intimidação. Montenegro é uma das lideranças sociais que se opuseram à greve. A Confederação Bartolina Sisa é uma organização constituinte do MAS.

Cidadãos rejeitam a greve em Santa Cruz

Os residentes e trabalhadores do departamento de Santa Cruz também têm condenado a greve, dizendo que ela tem afetado severamente sua vida diária.

No dia 2 de novembro, trabalhadores de diversos setores fizeram protestos em diferentes partes de Santa Cruz, em oposição à greve cívica. Os manifestantes exigiram que o governador Camacho aceite estabelecer conversas com o governo nacional para pôr fim à greve. Eles também demandaram a renúncia de Camacho, argumentando que se ele não pode cumprir seus deveres oficiais com o povo, ele deve sair.

No dia 31, milhares de pessoas de diferentes organizações sociais e indígenas marcharam até a capital de Santa Cruz a partir de quatro pontos diferentes, exigindo que Camacho ponha fim à greve e respeite o direito ao trabalho.

Além disso, no dia 27, sob o slogan “Vamos todos parar”, milhares de trabalhadores organizaram bloqueios de estradas pelo departamento, contra o caráter discriminatório da greve.

No mesmo dia, a Federação dos Trabalhadores de Transporte em Duas Rodas tomou o controle de oito fábricas em Santa Cruz, como parte dessa resposta às greves. Grupos de mototaxistas, juntos de trabalhadores de outros setores, se reuniram ao redor de fábricas de companhias como a Cemento Warnes, Aceite Fino, Empresa Pil, Sobolma, Cuba Libre, Industrias Venado, Procesabol e Totalpec, na cidade de Warnes. Eles estacionaram suas motos do lado de fora das fábricas e bloquearam as entradas e saídas para impedir que elas funcionassem.

O líder da Federação declarou que a vigília instalada nas portas dessas companhias continuaria até que Camacho suspendesse a greve. Ele também disse que eles planejam exigir que o vice-governador assuma o comando do Estado caso a greve prossiga.

A medida foi organizada um dia após o ministro da Economia, Marcelo Montenegro, acusar Camacho e Calvo de terem emitido permissões especiais para que seus amigos continuassem produzindo.

As tentativas do governo para pôr fim ao conflito

Desde agosto, o governo de Arce tem feito chamados à oposição de Santa Cruz para que iniciem um diálogo e expliquem a sua proposta em termos técnicos. No dia 20 de outubro, o governo reiterou esse chamado.

No dia seguinte, 21 de outubro, uma mesa redonda foi instalada para discutir a proposta e procurar consenso sobre a data do censo, no entanto os representantes do Comitê Interinstitucional de Santa Cruz puseram fim ao diálogo e fizeram um chamado por uma greve com prazo indefinido no departamento.

No dia 22, a ministra da Presidência, María Nela Prado, reportou que durante a primeira rodada das conversas os representantes concordaram, com base em considerações técnicas, em definir a data do censo para 2024, mas depois do recesso eles abandonaram essa posição e passaram a insistir, sem base técnica alguma, que o censo seja adiantado para 2023, e que seus resultados sejam publicados em 180 dias.

No dia 23, o governo reiterou sua disposição ao diálogo.

No dia 25, em meio à escalada de tensões no departamento, o governo apresentou uma nova proposta para a realização do censo. Ela propunha delegar a missão de estabelecer a data definitiva do censo para especialistas das universidades públicas do país e para organizações internacionais.

A vice-ministra de Comunicações, Gabriela Alcón, disse que o objetivo dessa proposta era “garantir um processo de censo responsável, com igualdade, rigor técnico, e ajustado aos padrões internacionais”, e que permitisse “que toda a população fosse levada em conta”.

No mesmo dia, o presidente Arce fez um chamado a todos os setores do Estado plurinacional para discutir a questão do censo em um fórum nacional, em busca de um consenso para o fim da greve cívica em Santa Cruz.

“Reafirmando nossa vocação democrática na busca por soluções, nós convocamos governadores, prefeitos, autoridades das Autonomias Camponesas e Indígenas, a Região Autônoma do Chaco e reitores do sistema público, para o Encontro Plurinacional, em busca de um consenso em relação ao censo. O encontro ocorrerá no dia 28, em Cochabamba, e coletará propostas de sindicatos, organizações sociais, setores produtivos e econômicos, nações indígenas nativas, profissionais, estudantes universitários e pessoas com deficiências reunidas em Santa Cruz”, ele escreveu no seu Twitter.

O Encontro Plurinacional para o Censo

No dia 28 de outubro, o Encontro Plurinacional para o Censo teve início em Cochabamba. Ele contou com a presença do presidente Arce, seus ministros, representantes de autonomias indígenas, nove prefeitos e oito dos nove governadores – com exceção de Camacho. Somente o reitor Vicente Cuellar foi ao encontro, em nome do Comitê Interinstitucional.

Durante o encontro, foi decidido de forma unânime que o censo seja estritamente técnico e inclusivo, e que conte com ampla participação, com uma data a ser determinada sob uma base técnica.

Após o encontro, a ministra da Presidência relatou que a data para a consulta seria decidida por uma comissão técnica em até 30 dias. Ela também disse que os representantes da região de Santa Cruz deveriam responder em até 24 horas se concordariam em participar da comissão.

O presidente Arce celebrou a “convicção democrática” do povo boliviano e seu compromisso “com o diálogo para decidir o futuro do Censo e continuar a avançar a reconstrução econômica do país”. Ele declarou ainda que “nós fizemos duas propostas sobre o Censo para o Comitê Interinstitucional, e estamos esperando sua resposta para pôr fim ao conflito”.

No dia seguinte (29), o governador de Santa Cruz rejeitou ambas as propostas e decidiu manter a greve cívica. Durante o final de semana, Camacho deu uma entrevista ao jornal local El Deber e disse que o federalismo é a única solução para a “fissura que vem desde a fundação da República”.

No entanto, conforme relatos, ele vem perdendo apoio a cada dia. Vicente Cuellar e Rómulo Calvo concordaram publicamente em discutir a data do censo em uma mesa técnica.

No dia 3 de novembro, o presidente Arce ordenou a criação de uma comissão técnica para definir uma data definitiva para a realização do censo. Ele declarou que essa comissão incluiria representantes internacionais, e que começaria seus trabalhos ainda essa semana.

O chefe de Estado fez um apelo para que a oposição “deixe de lado qualquer medida de pressão que ameace a reconstrução de Santa Cruz”, lembrando que “o convite para o diálogo se mantém aberto, porque confiamos que esse é o melhor mecanismo para a resolução do conflito. É hora de dar paz ao povo de Santa Cruz”.

O último Censo Populacional e Domiciliar da Bolívia foi realizado em 2012, quando mais de 11 milhões de habitantes foram contados no país. Trata-se de um processo importante que permite a redistribuição dos recursos nacionais e o planejamento de políticas públicas de acordo com o crescimento populacional.

Anteriormente, no dia 25 de agosto deste ano, mais de um milhão de bolivianos se mobilizaram em apoio ao governo do presidente Arce e contra tentativas anteriores de desestabilização de setores da oposição de extrema-direita de Santa Cruz usando como pretexto o Censo Populacional e Domiciliar.

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