O que perpetua a iniquidade brasileira?

Livro analisa a dinâmica da desigualdade no Brasil e seus elos com a questão racial. Revela que o país teve três oportunidades históricas – perdidas – de alterar essa condição. O que aprender com a história para as lutas de hoje e amanhã?

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Por César Locatelli

Parece existir uma força, equiparável à gravitacional, que faz a sociedade desigual sempre retornar ao seu curso secular após fugazes divergências de seu padrão. Três momentos da história brasileira marcam notavelmente essa breve saída do rumo e rápido retorno à reprodução da iniquidade.

Ainda na primeira metade do século XIX, aos africanos libertos, que exerciam a profissão de pedreiros, alfaiates, sapateiros etc., foi instituído um imposto exorbitante, do qual seriam isentos aqueles que se retirassem do Brasil. A antropóloga e historiadora Manuela Carneiro da Cunha estima que cerca de 8 mil libertos deixaram o país rumo a África. “O Brasil renunciava à criação de uma classe média negra”, revela Mário Theodoro em A Sociedade Desigual. A Lei de Terras (1850) e os estímulos dados aos imigrantes europeus viriam a agir no mesmo sentido.

“Assim, ao final do século XIX, fosse no campo ou na cidade, os negros no Brasil pareciam condenados à pobreza e à miséria. Quando houve a possibilidade de alguma ascensão social, como ocorrido na primeira metade daquele século, ela foi refreada, inclusive com sanções de ordem econômica e jurídica por parte do poder público e incentivo para deixar o país. Progressivamente alijados dos setores mais dinâmicos da economia – a produção exportadora, a indústria e os ramos mais prósperos do comércio –, os negros ficaram restritos aos serviços pessoais e subalternos. A pobreza urbana no Brasil do século XIX é negra.” (p. 117)

O segundo momento, que continha todos os ingredientes que foram necessários e suficientes para, em outros países, reduzir-se a desigualdade e a pobreza, foi o longo período de industrialização do país, entre 1930 e 1980. O crescimento per capita médio do produto interno brasileiro foi de “impressionantes 3,86% anuais”, por 50 anos!

Mais uma vez os negros foram excluídos. Explica Theodoro que “a concentração de renda observada no período foi reforçada a partir da clivagem racial. A população negra não participou diretamente dessa festa, não logrou compartilhar plenamente os frutos desse que foi um dos períodos de maior crescimento de um país na história recente. Crescer gerando pobreza, miséria e desigualdade: esse foi o preceito do período de maior prosperidade vivenciado pelo Brasil. Um ‘milagre’ para poucos” (p. 138).

Entre 2004 e 2014, os governos Lula e Dilma promoveram a retirada de 30 milhões de pessoas da pobreza. Além do crescimento econômico do período, concorreu para essa redução inédita da pobreza na história brasileira o processo sustentado de redistribuição de renda, pela via de aumentos reais do salário mínimo, do Bolsa Família e da Previdência Social.

Os benefícios impactaram brancos e negros, entretanto, não o fizeram de modo homogêneo: “Apesar da benfazeja evolução de redução da pobreza, houve um aumento da participação da população negra no grupo que se manteve em situação de pobreza: o percentual de negros entre os 10% mais pobres subiu de 73,2% em 2004 para 76% em 2014” (p. 154).

A despeito dessa “anomalia”, uma década de desvio de rota, a sociedade desigual volta aos trilhos: “desde 2016 adotou-se no país uma estratégia de política econômica e fiscal que terminou por fragilizar os direitos do trabalho e enfraquecer e reduzir a base financeira, contributiva e orçamentária da seguridade social brasileira. Os impactos nocivos aos trabalhadores são evidentes, bem como as consequências para o fortalecimento da informalidade e da precariedade do trabalho”. (p. 164)

Por mais que a sociedade desigual se perpetue como se estivesse sujeita a uma força gravitacional, que sempre a devolve para as condições de reproduzir as desigualdades, é evidente que as forças que a tornam imutável são forças sociais que nada têm de natural. Que força poderosa seria essa, então? Mário Theodoro responde logo na introdução de seu livro:

“A pobreza, a miséria e, principalmente, a desigualdade são fenômenos que remontam à própria criação do Brasil, e têm raízes na questão racial. Os quase quatro séculos de escravidão forjaram as condições para o aparecimento, o fortalecimento e o consequente protagonismo do racismo como fator de organização e estruturação das relações sociais no país. Desse modo, o racismo consolidou-se como a ideologia que diferencia e hierarquiza as pessoas em uma escala de valores que tem como polo positivo o biotipo branco caucasiano e como polo negativo o biotipo negro africano. É sob essa valoração que a sociedade brasileira se organiza e opera — e é nela que se baseia o reconhecimento social do indivíduo, historicamente construído e que explica a perpetuação da desigualdade.” (p. 15)

Em outras palavras, está marcado a ferro nos valores da sociedade brasileira que o que é branco é superior. Ao olhar para a desigualdade, a partir dessa perspectiva superior, parece “natural” que uma parte da sociedade tenha mais direitos que a outra. “O racismo assume, desse modo, papel central como elemento organizador da sociedade desigual”, complementa Theodoro. Desse modo, o que perpetua a sociedade desigual é o racismo e seus desdobramentos.

O profundo trabalho do autor é testar suas premissas, de que a naturalização da desigualdade é funcional e que os grupos hegemônicos têm interesses na existência e na perpetuação do racismo, contra a história do país desde sua constituição escravagista até os dias atuais.

Seu estudo caminha através do mercado de trabalho brasileiro (capítulo 2), com abundantes evidências das limitações da força de trabalho negra à informalidade e ao subemprego. Prossegue com os sistemas de educação e saúde (capítulo 3), que atende privilegiadamente as classes com mais recursos, ou seja, segmentos majoritariamente brancos. A análise da ocupação dos espaços urbanos e rurais (capítulo 4) constata a a expulsão dos trabalhadores negros do campo e a semiapartação das cidades, onde à população negra restam as favelas, os mocambos e as periferias.

A violência como prática de Estado (capítulo 5), com amplas evidências de que o racismo marca as decisões do sistema de justiça e seus operadores, é entendida como o elemento aglutinador da sociedade. O aprofundamento analítico da sociedade desigual (capítulo 6) é a tentativa de, ao juntar as partes, desvendar a razão de sua perenidade.

Um de suas constatações fundamentais é que:

“Em resumo, o racismo se desdobra em discriminação e preconceito no cotidiano, nas relações pessoais, no trabalho, nas escolas, nas repartições públicas, nos hospitais e postos de saúde, nos bares e nas esquinas e o combustível para esses comportamentos é a vigência em nível macro de outras facetas desse mesmo racismo: a branquitude, que legitima a ideia de superioridade e de poder do branco; o biopoder, que desincumbe o Estado de qualquer obrigação ou responsabilidade social para com a população negra; e por fim, e mais diretamente letal, a necropolítica, que faz do Estado o executor de uma política de morte e de genocídio.” (p. 335)

Serviço

Livro: A Sociedade Desigual: Racismo e branquitude na formação do Brasil

Autor: Mário Theodoro, economista e mestre pela UFPE e doutor pela Universidade Paris I – Sorbonne. Consultor legislativo aposentado do Senado Federal, foi secretário-executivo da Seppir e diretor da área de estudos internacionais do Ipea. É professor visitante no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UnB.

Editora: Zahar, 2022

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