México: o curioso caso dos imigrantes americanos

Ao contrário dos latino-americanos barrados ou deportados, eles vivem tranquilamente do outro lado da fronteira. Muitos são nômades digitais. Fogem da inflação em seu país, mas acentuam a gentrificação nas cidades mexicanas

Pessoas trabalhando na cafeteria Don Porfirio, em frente ao Palácio de Belas Artes, na Cidade do México. Foto: REUTERS
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A entrada de estrangeiros com visto estadunidense no México aumentou significativamente entre janeiro e fevereiro de 2023. O Ministério do Interior (Segob), por meio da Unidade de Política de Migração, Registro e Identidade de Pessoas (UPMRIP), registrou cerca de 75 mil ingressos, ou seja, um aumento de 85% em relação ao mesmo período de 2022. Andrea Luján, pedagoga mexicana, conta que um indicador da concentração estrangeira é o idioma. “Você se sente fora do seu país. Quando anda pelas ruas, ouve mais a língua inglesa e observa famílias completas, a maioria com crianças e pets.”

Há muito tempo, o México com suas praias abundantes e Pueblos pitorescos, é o principal destino do exterior para milhões de visitantes dos EUA anualmente. Mas, nos últimos anos, um número crescente de turistas e trabalhadores remotos – de Nova York ao Vale do Silício – inundou a capital do país.

Os imigrantes são, em sua maioria, nômades digitais, termo que surge na segunda década do século XXI e designa ‘profissionais-viajantes’, com o propósito de desenvolver suas atividades e gerar renda, enquanto se deslocam mundo afora. Eles não possuem base permanente, trabalham online em empresas com sede nos Estados Unidos, entram no país como turistas, conseguem permanecer por seis meses sem visto e, depois, adquirem o visto de nômade digital, permitindo mais tempo no país.

Estima-se que o México abrigue cerca de 1,6 milhões de cidadãos estadunidenses. “Esse fenômeno vem acontecendo em alguns dos bairros mais populares e já estamos falando muito sobre isso”, disse Fernando Bustos, mexicano, professor da Universidade Anahuac e colunista do The Washington Post. A questão migratória é um assunto relevante na agenda política de ambos os países, mas no México, ela engendra outros fenômenos, como a gentrificação nos principais centros mexicanos.

Fonte: Unidade de Política de Migração, Registro e Identidade de Pessoas (UPMRIP)

A gentrificação é um amplo e complexo processo de (re)estruturação urbana e espacial, com mudanças na qualidade, composição e distribuição da força de trabalho, e principalmente, na reorganização do espaço para produção, circulação e consumo de mercadorias. Esse fenômeno gera um efeito problemático nas comunidades e no ambiente urbano, e causa preocupações e debates acalorados em várias partes do mundo.

A capital, Cidade do México, é um dos principais locais atingido por essas transformações. Conhecida pela sua cultura e história, com templos aztecas, igrejas barrocas e centros financeiros modernos, ela se tornou um local atraente para o turismo, principalmente para os estadunidenses nômades digitais, que procuram uma boa qualidade de vida com natureza e modernidade, porém sem o alto custo de vida dos Estados Unidos.

A gentrificação ocorre quando áreas anteriormente de baixa renda e caracterizadas por comunidades historicamente marginalizadas são alvo de investimentos e transformações que levam ao aumento dos preços de aluguel, expulsão de residentes de baixa renda e a chegada de moradores mais ricos. A consequência disso vai além da mudança do perfil de residentes, e implica em rachaduras nos padrões culturais e históricos de toda uma região.

A professora e doutoranda em Sociologia da Universidade Autônoma Metropolitana, Rosalba González Loyde, explica que as migrações vindas dos EUA e de outros países do norte, não são a causa da gentrificação, mas sim as consequências de um processo que já ocorria na cidade. ‘’Se esses migrantes vieram se instalar nessas áreas, é porque já existe a gentrificação, decorrente das políticas de melhoramento urbano”, disse.

A gentrificação já iniciada anteriormente, como defende Rosalba vai se intensificar com a presença estadunidense, criando modificações nos bairros, forçando uma ‘’modernização’’ em torno dos hábitos desses migrantes etc. Cafés gourmets, serviços automatizados e estúdios de pilates se tornaram comuns em lugares que antes abrigavam as tradicionais taquerias, o que afeta a economia local. “Já existem áreas com menos moradores mexicanos. E nem todo estadunidense está disposto a aprender a cultura”, disse Andrea, pedagoga.

Alguns mexicanos estão preocupados com o enfraquecimento da identidade local, e parte dessa preocupação tem origem na falta de interesse dos novos moradores na cultura do país. “Nem todos os estadunidenses querem aprender espanhol. Aqui na Cidade do México, percebemos que eles já mudaram até o nome dos nossos pães. Temos um pão chamado concha, e eles começaram a chamá-lo de “mexicano””, conta Fernando.

O fenômeno é cíclico e socioeconômico. O aumento de migrantes está relacionado à pandemia da covid-19 e às políticas de imigração dos Estados Unidos. O dinheiro que não é suficiente para sobreviver em Nova York, no México é possível viver bem. “A pandemia acabou com as cotações, os preços subiram e há muitas pessoas desabrigadas em Nova York, por exemplo, já que não podem mais pagar os aluguéis altíssimos”, explica Fernando.

Segundo Fernando, a outra preocupação é o grande deslocamento dos mexicanos com menos recursos para as áreas mais periféricas. De um lado, os mexicanos perdem poder aquisitivo, e de outro, quem perdeu poder de compra em seu país natal, encontra no México um refúgio para uma vida melhor.

“Em geral, somos um país acolhedor, gostamos de ensinar nossos costumes, tradições e gastronomia. Mas deve haver um ajuste para que o poder de compra dos estadunidenses beneficie a economia mexicana, sem nos afetar”, opina Andrea.

O poder de compra do americano é maior que o do mexicano. Por receberem em dólar, alugar ou comprar imóveis é muito mais acessível para eles. Isso afeta diretamente a estabilidade financeira dos cidadãos mexicanos, que recebem em peso mexicano, a moeda local, e nem sempre podem competir com a moeda americana. Na atual cotação de maio de 2023, US$ 1,00 custa Mex$ 17,76. Para fins de comparação, R$ 1,00 compra Mex$ 3,56.

Pessoas e grupos que lutam por moradia digna fazem uma manifestação em frente ao Ministério de Desenvolvimento Urbano e Habitação da Cidade do México (SEDUVI), na Cidade do México. Fotógrafo: Guillermo Gutiérrez/NurPhoto via Getty Images

O problema não está somente na diferença econômica entre estadunidenses e mexicanos, mas na não-contribuição com o coletivo, já que eles não pagam os impostos que os residentes pagam. Rosalba explica que existem dois tipos importantes de trabalhadores, os que trabalham no mercado nacional e os que trabalham remotamente para outros países.

“A dinâmica muda completamente porque no primeiro caso competem com o capital humano local que acaba por favorecer os estrangeiros”’ disse Rosalba. “O segundo ponto é a participação dos trabalhadores para as finanças públicas, vários estrangeiros como nômades digitais não possuem número de registo de contribuintes, o que significa que não pagam impostos, mesmo quando são usuários da infraestrutura e do sistema público da cidade e do país.”

Rosalba fala também sobre outro fenômeno, o malinchismo, termo que descreve a tendência de alguns mexicanos de valorizar o estrangeiro ao invés do nacional, isso pode ser observado na preferência por produtos importados e na desvalorização da cultura local. “O malinchismo no México permite a aceitação e recepção de certos migrantes, que está ligado a elementos de raça e classe: pessoas brancas e com as características de certas classes sociais”, disse.

O termo vem da lenda de “la Malinche”, uma história controversa e com diferentes interpretações. Malinche era uma indígena, que foi vendida para ser escravizada ainda na infância. Alguns a veem como uma traidora por ter auxiliado os espanhóis na conquista do território, e para outros ela é uma sobrevivente, que usou sua posição para proteção e influência.

Outro termo para o mesmo fenômeno seria o “entreguismo”, usado principalmente para descrever a atitude de submissão ou concessão excessiva a interesses estrangeiros, especialmente sobre a economia ou política dos países em desenvolvimento. No México, o termo também tem eco. Os que criticam o “entreguismo” acreditam que existe um favorecimento e benefícios especiais para outros países em detrimento dos interesses nacionais.

Os estadunidenses encontram preços mais acessíveis no país latino, impactando diretamente a economia, pois há o aumento da inflação pelo excesso de dólares circulando. Mesmo com esse obstáculo, é difícil para o México considerar o fechamento das suas fronteiras, uma vez que o país precisa equilibrar os benefícios econômicos provenientes do consumo dos estrangeiros e manter a estabilidade inflacionária, sem afetar o turismo em solo mexicano.

“Nas proximidades de Ensenada, é possível observar a presença de centenas de estadunidenses que optaram por passar férias ou comprar residências na região”, conta Jaime Zambrano, jornalista mexicano do Periódico Milenio. “Essa escolha impacta positivamente a economia local, mas também tem potencial para afetar a inflação. Muitos dessas pessoas podem estar em processo de se tornarem cidadãos mexicanos.”

Muito se fala da concorrida emigração dos mexicanos para os Estados Unidos em busca do “American Dream”. Entretanto, pouco se sabe sobre o fluxo de cidadãos estadunidenses que têm deixado seu país em busca de melhor qualidade de vida no México. Essa vida desejada pelos migrantes não envolve um avanço econômico para os mexicanos, nem uma boa relação entre as fronteiras.

De acordo com Jaime, a questão migratória tem sido pauta de destaque para os republicanos e para os democratas nos Estados Unidos. Enquanto um lado está em oposição, o outro tem dado maior ênfase ao assunto em seus discursos políticos. Ele observa que ambos os partidos têm influenciado a opinião pública. “A verdade é que as lutas internas nos Estados Unidos impedem a abertura das fronteiras. O país decide abri-las quando precisa, sem declaração oficial. Imigrantes podem entrar quando a economia precisa ser reativada, e as fronteiras são fechadas quando o país já tem mão de obra qualificada”, disse.

A emigração para o México é amplamente facilitada, sem obstáculos burocráticos significativos. Embora alguns possam vê-la como benéfica para o país, muitos acreditam que devam ser implementadas medidas que priorizem os seus cidadãos, que enfrentam o aumento da inflação, em vez de favorecer os estrangeiros, que podem estar contribuindo com isso.

Fernando acredita que uma das maneiras de controlar a migração é impondo algum imposto aos estrangeiros. “Se há um fenômeno tão forte, o governo mexicano poderia negociar uma melhoria para os migrantes mexicanos ou para pessoas que simplesmente querem viajar para os Estados Unidos”, opina.

Os estadunidenses podem permanecer no México como turistas ou para negócios de curta duração, por até 180 dias, sem a necessidade de um visto prévio. Em geral, para entrar no país, eles preenchem um formulário chamado Forma Migratória Múltiple (FMM), que requer informações pessoais e detalhes da estadia no México, sendo essa a regra geral para cidadãos dos Estados Unidos.

Para aqueles que planejam permanência mais longa no México, seja para trabalho, estudo ou turismo, é necessário solicitar o visto adequado antes da viagem. No que diz respeito aos nômades digitais, o México não possui especificações. Os imigrantes que buscam por essa modalidade de trabalho entram no país seguindo as regras já existentes, facilitando a estadia.

Comparativamente, diferentes abordagens foram adotadas pelo governo dos Estados Unidos para dificultar o ingresso dos mexicanos no país. A construção de um muro na fronteira, por exemplo, foi uma das políticas mais emblemáticas da era Trump. A política de “tolerância zero” implementada nessa época resultou na separação de famílias imigrantes, o que ocasionou diversas violações dos direitos humanos e muitas críticas internacionais apesar de nenhuma sanção.

A chegada do democrata Joe Biden trouxe algumas mudanças e reformas nas políticas de imigração. Em 11 de maio de 2023, o novo governo anunciou o fim do Título 42, medida de deportação rápida de imigrantes detidos na fronteira devido à pandemia da covid-19. Em seu lugar entrou em vigor o Título 8, uma regra antiga que redefine as diretrizes da política migratória entre os dois países. Desde março de 2020, quando Trump implementou o Título 42, foram expulsas 2,8 milhões de pessoas dos Estados Unidos.

O Título 8 estabelece procedimentos para as solicitações de asilo e proteção humanitária, e reflete a prioridade de Biden em adotar uma abordagem mais centrada nos direitos humanos. No entanto, espera-se um possível aumento de imigrantes detidos na fronteira, o que exige recursos adicionais para o processamento de acolhimento adequado. A cooperação bilateral entre Estados Unidos e México será fundamental para garantir uma conduta migratória eficiente e justa. Atualmente, cerca de 10 mil mexicanos tentam atravessar ilegalmente a fronteira por dia.

Francisco Ledesma Ibarra, diretor geral do jornal Plana Mayor, fala que a relação entre os dois países é complexa devido à fronteira, porém o México continua sendo o principal parceiro comercial dos Estados Unidos, tanto por sua proximidade geográfica, quanto por sua mão de obra barata. Segundo Francisco, no aspecto latino-americano o México vem recuperando uma certa posição estratégica e econômica que lhe permite se relacionar positivamente com o resto da América Latina.

“O México não pode ter os Estados Unidos como seu único parceiro comercial, nem como sua única relação bilateral favorável para o crescimento do país. O avanço da esquerda na América Latina também passou a questionar esses países que, por posições ideológicas, também se distanciaram”, disse Francisco. “O que realmente importa é que toda a América Latina percebeu a necessidade de fortalecer sua união econômica e se tornar um bloco de países que facilita o comércio, as relações e a colaboração em várias áreas. A posição do nosso país é estratégica tanto para os Estados Unidos quanto para os outros países da América Latina.”

O governo da Cidade do México está abrindo espaços para incorporar a migração criativa e tecnológica na capital, o que beneficia a permanência dos migrantes e contradiz as políticas do país vizinho. Segundo Rosalba, pesquisadora da área de habitação, poderiam ser estabelecidas dinâmicas para garantir habitação à população local sem que os novos residentes fossem afetados. “Que a geração de novas moradias para essa população possa financiar parcialmente a criação de moradias populares”, disse.

Mónica Ventosa, jornalista do Grupo Acir, conta que representantes dos Estados Unidos não recomendam o turismo e nem a mudança para o México, pois o país é visto como perigoso em muitas partes do mundo, e isso dificulta as relações diplomáticas. “Estão dizendo algo que você não quer que digam sobre o seu país. É uma realidade, não dá para esconder”, lamenta. Atualmente, as informações circulam com muita velocidade e são amplamente divulgadas. “É necessário trabalhar a segurança, e evitar a violência não só com os estrangeiros, mas com todos, incluindo mexicanos.”

Na visão da jornalista, há uma disparidade entre os países que agrava ainda mais a situação da fronteira, com raízes históricas atreladas ao “entreguismo”. Na maioria das vezes, são os Estados Unidos que estabelecem as regras. O México não tem controle sobre a passagem na parte sul, o que permite que várias pessoas, não apenas do México, mas da América Central e do Sul, atravessem o território mexicano para chegar aos Estados Unidos. “Isso é a coisa mais difícil. Nosso país não está correspondendo às expectativas que os Estados Unidos têm sobre ele”, opina sobre a expectativa dos EUA de que o México, além de tudo, sirva como um regulador do corredor migratório da América Central e do Sul.

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