Sonegadores de todos os países, uni-vos

Avança na ONU movimento para limitar a ação dos “paraísos fiscais” – e assegurar, aos governos, US$ 5 trilhões em impostos não pagos. Mas FMI e OCDE reagem e sabotam esforço, em defesa das transnacionais e super-ricos. Ainda é possível agir

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Um texto da Tax Justice Network | Tradução: Maurício Ayer 

Os países do mundo estão prestes a perder, nos próximos dez anos, quase US$ 5 trilhões em impostos, para corporações multinacionais e indivíduos ricos que usam paraísos fiscais para escapar do fisco. O alerta é da Tax Justice Network [Rede de Justiça Tributária]. As perdas futuras de dinheiro público seriam equivalentes ao desfalque de um ano inteiro, nos gastos mundiais com saúde pública. Por isso, ativistas pelos direitos sociais pedem aos países que votem a favor do início das negociações para a criação de uma convenção tributária das Nações Unidas, como saída para evitar essas perdas astronômicas. O debate corre na Assembleia Geral da ONU.

“Os governos têm uma escolha a fazer na ONU, neste final de ano. Perder nosso futuro, mantendo as coisas como estão, ou democratizar as regras fiscais globais para que possamos manter o dinheiro público de que precisamos para os desafios futuros”, afirma Alex Cobham, diretor executivo da Tax Justice Network.

O relatório Estado da Justiça Fiscal em 2023, publicado há dias pela Tax Justice Network, relata que países ao redor do mundo estão perdendo US$ 472 bilhões em impostos por ano devido ao abuso fiscal global.1 Desse desfalque anual, US$ 301 bilhões são perdidos para corporações multinacionais que transferem lucros para paraísos fiscais e US$ 171 bilhões o são para indivíduos ricos, que escondem fortunas no exterior.

Os países de baixa renda, que historicamente tiveram um papel pequeno ou nulo na definição das regras fiscais globais, continuam a ser os mais atingidos. Embora a maior parte das perdas anuais de impostos seja sofrida por países de renda mais alta (US$ 426 bilhões), essas perdas são equivalentes a 9% dos orçamentos de saúde pública desses países. Já nos países de baixa renda, as perdas fiscais (US$ 46 bilhões) são equivalentes a mais da metade (56%) de seus orçamentos de saúde pública.

Se os países mantiverem o padrão dos últimos 10 anos em relação às regras fiscais internacionais, perderão US$ 4,7 trilhões na próxima década, estima o relatório. Em comparação, todos os países do mundo juntos gastaram coletivamente US$ 4,66 trilhões em saúde pública em um ano.2

Avançando na comparação, estima-se que a Grande Recessão de 2007-2009 tenha levado a uma perda de US$ 2 trilhões no crescimento econômico global.3 As perdas fiscais nos próximos 10 anos seriam o equivalente ao dobro do impacto da Grande Recessão na economia global.

Não houve progresso em relação ao abuso fiscal global na última década

A projeção de 10 anos baseia-se no impacto dos esforços da OCDE desde 2013 para reformar a arquitetura tributária internacional e reduzir as perdas decorrentes do abuso fiscal global. A OCDE, um clube de países ricos que estabeleceu regras fiscais globais nos últimos sessenta anos, realizou seu primeiro processo de reforma, o processo BEPS, de 2013 a 2015. O processo não conseguiu reduzir significativamente o abuso fiscal global, o que exigiu um segundo processo de reforma, BEPS 2.0, que se iniciou logo depois e até agora produziu apenas rascunhos de propostas de políticas.

Não se conseguiu nenhuma redução significativa no tamanho da perda de impostos dos países devido ao abuso fiscal global desde o início dos esforços da OCDE para reformar a taxação global há 10 anos. Com vistas aos próximos 10 anos, estudos de vários órgãos, incluindo o FMI e o Grupo de Monitoramento do BEPS, concluem que as atuais propostas preliminares que a OCDE preparou no âmbito do BEPS 2.0 terão pouco ou nenhum impacto na escala das perdas fiscais.4 Mesmo assim, já é amplamente esperado que muitos membros da OCDE não implementem sequer estas propostas.

A projeção de 10 anos reconhece, portanto, que as perdas fiscais globais não serão menores que os níveis atuais na próxima década, mantida a liderança da OCDE em impostos globais.5

O fracasso do processo da OCDE em coibir o abuso fiscal global é atribuído, em grande parte, à incapacidade do órgão de chegar a um acordo sobre soluções políticas sem que seus países membros, que abrigam a maioria das sedes das empresas multinacionais, diluam as políticas até a irrelevância. A maioria das soluções significativas que a OCDE tentou ou está tentando implementar baseia-se na plataforma de política de justiça fiscal – por exemplo, relatórios país por país, troca automática de informações de contas financeiras, tributação unitária e uma alíquota mínima efetiva. No entanto, em todos os casos, essas políticas tornaram-se inúteis sob a influência generalizada de alguns membros da OCDE, que também estão entre os maiores paraísos fiscais do mundo.6

Estima-se que os países membros da OCDE, juntamente com seus territórios dependentes, sejam responsáveis ​​por mais de três quartos (77%) dos US$ 472 bilhões em perdas fiscais que os países sofrem por ano, de acordo com o relatório.

Por que transferir a liderança para a ONU

Para evitar perdas fiscais astronômicas nos próximos 10 anos e liberar trilhões de dólares para apoiar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, a Tax Justice Network propõe que os países apoiem a transferência da liderança na questão dos impostos globais da OCDE para a ONU, instituição em que a adesão, transparência pública e estruturas legais de direitos humanos, além da expertise técnica, podem produzir um fórum com maior capacidade de garantir soluções fiscais eficazes.7

No ano passado, na ONU, os países concordaram por unanimidade em abrir as portas para negociações sobre uma convenção tributária das Nações Unidas, o que transferiria a liderança tributária para a ONU.8 A resolução histórica foi adotada apesar de tentativas da OCDE, de agressividade sem precedentes, de impedir que a resolução fosse apresentada à Assembleia Geral da ONU.9 O secretário-geral da ONU apresentará um relatório em setembro sobre possíveis opções para uma convenção tributária, que será então debatida pela Assembléia Geral. Espera-se que os países votem até o final do ano uma resolução da Assembleia Geral a respeito do início formal das negociações para uma convenção tributária da ONU.

O Painel de Alto Nível da ONU sobre Responsabilidade Financeira Internacional, Transparência e Integridade já endossou versões robustas e não diluídas das soluções políticas de justiça tributária que a OCDE não conseguiu implementar. Estas alternativas foram incluídas em rascunhos propostos para uma possível convenção tributária da ONU.10

Órgãos regionais na Europa, África e América Latina anunciaram recentemente ou estão se preparando para anunciar o apoio à ONU como liderança tributária.

O Parlamento Europeu, recentemente, apoiou as negociações sobre uma convenção fiscal da ONU.11 Mas o apoio a essa convenção tem sido liderado há anos pelos países africanos. A resolução histórica adotada na ONU no ano passado sobre uma convenção tributária da organização foi apresentada pelo Grupo África nas Nações Unidas, e a influente Comissão da União Africana reafirmou esse compromisso com a proposta de transferência da liderança tributária para a ONU no início deste mês.12 No final de julho, nações latino-americanas e caribenhas reuniram-se em uma cúpula regional inédita13 para discutir as regras fiscais internacionais. Os países chegaram a um consenso regional e posições de negociação em grande parte a favor de transferir a liderança global na questão dos impostos para a ONU.

Os defensores da convenção tributária da ONU apontaram o fracasso da OCDE em garantir progresso real em relação ao abuso tributário global desenfreado, bem como em incluir significativamente a maioria dos países em seu processo de regulamentação. A mesma crítica foi sustentada pelo Parlamento Europeu, em seu apoio a uma convenção tributária no âmbito das Nações Unidas.

Revolução democrática nos impostos globais

A atual carência de um processo democrático na definição das regras fiscais globais foi trazida à tona neste mês, quando o Financial Times confirmou14 que a OCDE interveio para dissuadir a Austrália da adoção de medidas inovadoras para conter o abuso fiscal e também confirmou15 que o FMI vem usando renegociações de dívidas para coagir os países a adotarem as regras fiscais da OCDE, sendo que uma pesquisa do próprio FMI16 mostra que isso tornará ainda mais difícil, para os países com problemas fiscais, cobrarem impostos.

Os ativistas da justiça tributária estão saudando a possibilidade de mudar a liderança tributária para a ONU como uma “revolução democrática” nos impostos globais.

Alex Cobham, executivo-chefe da Tax Justice Network, disse:

“Estamos à beira de uma revolução democrática global em impostos que poderia recuperar literalmente trilhões de dólares em dinheiro público. Por sessenta anos, as regras fiscais globais foram decididas a portas fechadas na OCDE, onde um punhado de países e lobistas viam a política tributária como algo para atender aos interesses das corporações e dos bilionários mais ricos. Agora temos uma chance real de trazer esse processo à luz do dia da democracia na ONU, onde todos os países finalmente terão uma palavra a dizer e onde os governos finalmente terão que responder a seu povo sobre política tributária.
A convenção tributária da ONU pode desencadear uma era econômica mais justa. O controle de corporações multinacionais e bilionários sobre a política tributária global deve ser controlado pela governança democrática global na ONU”.

A jurista Irene Ovonji-Odida, membra do painel do Painel de Alto Nível da ONU sobre Responsabilidade Financeira Internacional, Transparência e Integridade, membra do Painel de Alto Nível da União Africana/Comissão Econômica para a África sobre Fluxos Financeiros Ilícitos (o “painel Mbeki”) e presidente do conselho da Tax Justice Network, escreve no prefácio do relatório:

“As negociações na ONU oferecem uma chance histórica, pela primeira vez, de termos um órgão tributário globalmente inclusivo. Isso poderia finalmente permitir que os Estados individualmente menos poderosos se protegessem do abuso fiscal transfronteiriço e estabelecessem suas próprias regras tributárias, finalmente tendo espaço para exercer a plena soberania fiscal que é direito de todos os Estados. E isso, por sua vez, permitiria que todos nós, e não apenas os super-ricos e as corporações globais, nos beneficiássemos do poder positivo dos impostos. Com isso, todos os Estados – especialmente os de renda baixa e média – poderiam arrecadar receitas suficientes para serviços públicos inclusivos, acabar com as desigualdades dentro e entre os países que marcam nossas sociedades e fortalecer os laços de representação política e responsabilidade do governo.
Devemos aproveitar este momento, em todos os países e regiões do mundo – porque todos sofremos os custos do abuso fiscal.”

Leia o relatório Estado da Justiça Fiscal em 2023

Notas ao editor

  1. O relatório State of Tax Justice 2023 está disponível aqui.
  2. Os gastos com saúde pública dos países são calculados no relatório com base nos Gastos Gerais com Saúde do Governo Geral da Organização Mundial da Saúde como porcentagem do Produto Interno Bruto. Este último é baseado em dados do Banco Mundial e, para os países para os quais esses dados não estão disponíveis, são usados ​​dados da ONU e, se necessário, dados da Agência Central de Inteligência dos EUA.
  3. A Moody’s Analytics calcula que a Grande Recessão levou a uma perda de mais de US$ 2 trilhões no crescimento econômico global, ou uma queda de quase 4%, entre o pico pré-recessão no segundo trimestre de 2008 e a mínima atingida no primeiro trimestre de 2009.
  4. A pesquisa do FMI sobre os retornos de receita para as propostas da OCDE pode ser encontrada aqui (veja a Figura 1 e a Figura 5 no Pilar 1 e impacto mais amplo na receita) e aqui (uma comparação do Pilar 1 com impostos sobre vendas digitais para países asiáticos). Pesquisa do Grupo de Monitoramento do BEPS, publicada no início deste mês, considerou as propostas da OCDE “fundamentalmente falhas”. Um estudo do Centro Sul e da Coalizão para o Diálogo, que chegou a conclusões semelhantes, pode ser encontrado aqui. Um relatório do Observatório Fiscal da UE, que constata que os países de renda mais baixa perderiam receita tributária se forem aplicadas as propostas da OCDE, pode ser encontrado aqui.
  5. Esta é uma estimativa conservadora. O prejuízo fiscal futuro, na prática, provavelmente será maior do que o projetado, devido, entre outras razões, às tendências de aumento de lucro e riqueza entre as empresas multinacionais e indivíduos mais ricos. Consulte a página 20 do relatório para mais informações.
  6. Está disponível aqui um relatório que esclarece como o padrão de relatório país a país da OCDE foi diluído para manter anônimos quem transfere lucros corporativos. Está disponível um relatório (aqui) que informa como a alíquota mínima de imposto global da OCDE foi distorcida para recompensar, em vez de restringir os paraísos fiscais corporativos. Está disponível um relatório (aqui) de como a reforma do pilar da OCDE minimizou a aplicação e o impacto do imposto unitário.
  7. Leia mais sobre a histórica resolução da ONU aqui e aqui.
  8. A ONU tem uma rica história de estabelecimento e supervisão de alguns dos mais impactantes órgãos especializados, acordos comerciais e convenções que lidam com questões técnicas altamente complexas. Os exemplos incluem: o secretariado do DESA da ONU para objetivos de desenvolvimento sustentável; Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento; o Centro de Comércio Internacional, uma agência conjunta da Organização Mundial do Comércio e da UNCTAD; a Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial; o Acordo de Facilitação do Comércio; a Rodada Uruguai (1986-1994) e o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, que levou à criação da Organização Mundial do Comércio.
  9. A OCDE teria usado uma linguagem sem precedentes em cartas aos embaixadores para questionar a capacidade da ONU de supervisionar as discussões fiscais internacionais. Fontes disseram à Tax Justice Network que o tiro saiu pela culatra em alguns setores, pois foi visto como “pouco diplomático” e “altamente incomum” atacar outra instituição internacional dessa maneira e pode, na verdade, ter reforçado o apoio à resolução da ONU. As cartas que a OCDE enviou aos embaixadores foram discutidas com a Tax Justice Network por várias pessoas que as viram. A OCDE não respondeu aos pedidos da mídia na época para tornar as cartas públicas.
  10. Veja o relatório dos painéis FACTI de Alto Nível da ONU aqui. Veja um projeto de convenção tributária da ONU aqui.
  11. Mais informações sobre o apoio do Parlamento Europeu a uma convenção tributária da ONU estão disponíveis aqui.
  12. Assista à declaração do chefe interino da divisão de política econômica da Comissão da União Africana aqui.
  13. Leia mais sobre a cúpula latino-americana aqui.
  14. O Financial Times confirmou neste mês que a OCDE fez forte lobby para impedir que a Austrália aprovasse uma legislação que teria proporcionado o maior avanço em transparência sobre os impostos de corporações multinacionais até o momento. A legislação exigiria que 1 em cada 5 corporações multinacionais em todo o mundo publicasse relatórios país a país, incluindo algumas das empresas mais conhecidas do mundo. Relatórios de lobby da OCDE foram trazidos à tona pela primeira vez pelo CICTAR e pela Tax Justice Network. A OCDE emitiu uma declaração em resposta ao artigo do Financial Times. Veja a resposta da Tax Justice Network expondo imprecisões na declaração da OCDE aqui.
  15. Veja a reportagem do Financial Times sobre o FMI usando renegociações de dívida para pressionar o Sri Lanka a adotar as regras fiscais da OCDE aqui. Os renomados economistas Joseph Stiglitz, Jayati Ghosh, Gabriel Zucman e outros comissários do ICRICT publicaram um carta aberta condenando as ações do FMI como “alarmantes” e “inaceitáveis”.
  16. Ver nota 4.
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