É crime ser pobre neste país?

Bolsonaro não quer “punir” os ricos com mais impostos, mas acontece o oposto: subtributados, eles enriquecem sem limites. Se o Brasil taxasse grandes fortunas — 60 mil pessoas — arrecadaria o suficiente para transformar a vida de milhões

Ilustração: Matt Mahurin
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Repercutiu bastante na mídia a declaração do presidente de que é contra tributar as fortunas porque, segundo ele, ser rico não é crime. Ora, se não devemos tributar a riqueza porque ser rico não é crime, por que tributamos tanto os mais pobres, os trabalhadores e a classe média? Tem razão o presidente, ser rico, realmente, não é crime. Sonegar tributos, sim, é crime. Superfaturar o preço das vacinas também é crime. Roubar é crime. Matar é crime. Expor a vida ou a saúde dos outros a perigo direto ou iminente é crime. Ser rico, obviamente, não é crime.

Embora se saiba que boa parte das riquezas acumuladas possa ter tido origem de atividades de legalidade duvidosa, como superexploração do trabalho, sonegação de tributos, apropriação de terras indígenas, privatização do patrimônio público, desrespeito às regras ambientais e aos direitos dos trabalhadores, por exemplo, ser rico, de fato, não é crime. Mas não é esse o ponto. A questão central é que a opção por não tributar os mais ricos constitui uma opção por uma sociedade mais desigual e disfuncional do ponto de vista da economia, mas com oportunidades para ampliação da concentração das riquezas.

Por outro lado, temos que ter em conta que tributo não é penalidade, portanto não tem nada a ver com crimes. Crimes são punidos com prisão, com perdimento de bens ou valores, ou com multas qualificadas, mas não com tributos. Então, por que relacionar uma coisa com a outra? Parece clara a intenção de amplificar, na sociedade, a rejeição aos tributos. Aliás, quem não lembra daquela declaração, também do presidente, “eu sonego tudo o que for possível”? A rejeição aos tributos leva de carona a rejeição ao Estado, às políticas públicas e aos direitos sociais, que são financiados pelos tributos.

Outro dia, o empresário Flávio Rocha, dono da Riachuelo, também se declarou contrário à taxação das grandes fortunas porque esse imposto, disse ele, empobreceria os ricos. Imagino que tenha sido apenas força de expressão, de sua parte, uma brincadeira ou uma piada, pois como é que alguém pode pensar que um imposto de 0,5% incidindo apenas sobre a parcela das grandes riquezas que ultrapassarem R$ 10 milhões, fosse suficiente para tornar pobres, os ricos? Esse é o significado do verbo empobrecer. Só para termos uma ideia do montante, uma pessoa que tenha um patrimônio de R$ 12 milhões, por exemplo, pagaria R$ 10 mil por ano de imposto, e isso corresponderia a apenas 0,083% do valor total dos seus bens. De fato, ou aquele empresário estava de brincadeira, ou ele não tem nenhuma noção do que significa ser pobre no Brasil.

É bom que se diga que ser contra a taxação das grandes fortunas não é um problema em si. A razão de cada um para ser contra, sim. Tanto o presidente quanto aquele empresário, e, certamente, muitos outros representantes dos setores mais ricos da população pensam da mesma maneira, são contra a tributação das grandes fortunas pelos efeitos que essa tributação promete produzir, de redistribuição de renda e riqueza e de redução das desigualdades sociais. Para eles, a concentração de riquezas não deve ser desestimulada pelo Estado.  

Já aqueles que desejam o contrário podem até entender que a taxação das grandes fortunas não seja o instrumento mais adequado e que a desejada redução das desigualdades e da concentração das riquezas poderia ser obtida de forma mais eficaz por uma tributação fortemente progressiva sobre a renda e por uma tributação elevada sobre as grandes heranças, por exemplo. O ex-presidente Lula manifestou também sua opinião de que o “problema não é tributar as grandes fortunas (….). O problema é ter uma política de imposto de renda que seja justa, que as pessoas paguem de acordo com o que ganham”.  

Portanto, há uma diferença fundamental entre as motivações que mobilizam as opiniões. Entre os que defendem o Estado social, ou seja, a construção de uma sociedade justa, livre e solidária, a promoção do desenvolvimento econômico, a redução das desigualdades sociais, o fortalecimento do papel do Estado, os debates e eventuais divergências estão localizados no campo instrumental, ou seja, nos meios. Receios de que a tributação das fortunas possa promover fuga de capitais, desinvestimento na atividade econômica, ou mesmo de que este tributo possa ser complexo demais ou tenha baixa potencialidade de arrecadação já estão superados por inúmeros estudos acadêmicos e, também, por experiências internacionais, mas ainda são manifestados com alguma frequência.

Além disso, é preciso ter em conta que a redução das desigualdades não pode ser atribuída a um único instrumento, mas sim à combinação de vários instrumentos tributários, de natureza progressiva, com gastos públicos bem orientados e com uma política ativa de emprego e de valorização dos salários dos trabalhadores. 

Em relação àqueles outros, que rejeitam a tributação das riquezas porque defendem, contrariamente ao que diz a Constituição Federal, a manutenção ou o aprofundamento da desigualdade, a redução do Estado, a precarização das condições de trabalho e a perpetuação da uma economia primário-exportadora, a disputa real não está no campo da tributação, mas nas finalidades relacionadas ao modelo de Estado e de sociedade. Aliás, a sua rejeição à tributação das grandes fortunas confirma a importância deste instrumento para quem defende um Estado mais justo.                

No Brasil, mais da metade de tudo o que arrecadamos vem de tributos que incidem sobre o consumo e é por isso que a tributação acaba pesando muito mais sobre os mais pobres, aprofundando, portanto, a desigualdade social. Além disso, esse tipo de tributação onera demais a produção e reduz o poder de compra dos consumidores, prejudicando, dessa forma, a própria atividade econômica e a geração de empregos. Se quisermos promover o desenvolvimento e reduzir as desigualdades sociais, mais cedo ou mais tarde, teremos que enfrentar esse problema, mas não podemos embarcar no simplismo de reduzir da tributação sobre o consumo sem que, antes, tenhamos promovido uma elevação da tributação sobre os mais ricos, sob pena de prejudicarmos ainda mais os mais pobres pela redução da capacidade do Estado na promoção das políticas públicas essenciais.

Para quem defende uma sociedade mais justa, tributar mais os mais ricos é uma necessidade, não apenas porque temos uma enorme carência de recursos para fazer frente às demandas reprimidas em decorrência da crise, mas também porque é uma questão de justiça, pois o nível de sacrifício que a tributação impõe aos mais pobres é infinitamente maior do que o que impõe aos mais ricos. Além disso, a própria Constituição estabelece a obrigatoriedade de a tributação respeitar a capacidade contributiva e não há nada mais representativo de capacidade contributiva do que a riqueza acumulada.

Para os muito ricos, é evidente que o Imposto sobre as Grandes Fortunas é pouco expressivo em termos de valor, mas seria, sem dúvida alguma, extremamente importante para melhorar as condições de vida para milhões de pessoas. De acordo com os documentos da campanha TRIBUTAR OS SUPER-RICOS, estima-se que esse imposto promoveria uma arrecadação de aproximadamente R$ 40 bilhões ao ano, atingindo somente 60 mil pessoas, cujo patrimônio supera R$ 10 milhões.

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