Comuns, a nova fronteira da luta anticapitalista

Que são os territórios, recursos naturais, bens e saberes que todos usufruem — mas ninguém possui. Por que o sistema quer capturá-los a todo custo. Que futuro projetam

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Que são os territórios, recursos naturais, bens e saberes que todos usufruem — mas ninguém possui. Por que o sistema quer capturá-los a todo custo. Que futuro alternativo eles podem projetar

Por Mary Ann Manahan e Shalmali Guttal, do Focus on The Global South | Tradução: Inês Castilho | Imagem: Ricardo Levins Morales

As cercas foram apropriadamente chamadas

de revolução dos ricos contra os pobres

Karl Polanyi, A Grande Transformação, 1944

Nosso território tradicional cobre não apenas nossa terra ancestral

mas toda a flora e fauna dentro dele, a vida selvagem, o ar,

os mineirais embaixo dele, a água que corre através dele,

os espíritos que contém, que são passados de uma geração a outra

Nena “Bae Rose” Undag-Lumandong, líder indígena das Filipinas

Introdução

O cercamento dos comuns na Grã-Bretanha, sobre o qual Karl Polanyi escreveu em 1944, continua acontecendo em todo o mundo, hoje, por meio de uma série alarmante de leis, políticas, tratados e acordos, frequentemente com uso de força bruta. Em um mundo arrasado pelo aprofundamento das crises climática, econômica, ambiental e social, o capital reconhece o potencial dos comuns para alimentar e recriar “as condições necessárias para a vida e sua reprodução.” (De Angelis, n.d.)

O termo comuns (commons) refere-se a diferentes espécies de riquezas, espaços, valores, relações sociais, sistemas, processos e atividades que “pertencem” a comunidades, sociedades e em alguns casos a todos nós. São ativamente declarados, (re)criados, protegidos e restaurados para fins coletivos e o bem coletivo, para as gerações presentes e futuras.

Os melhores exemplos de comuns são os naturais. Por exemplo: ar, água, terra, florestas e biodiversidade. Mas, no decorrer dos anos, estudiosos dos comuns expandiram o conceito para as esferas social, intelectual, cultural e mesmo política. Estas incluem saúde, educação, conhecimento, ciência, tecnologia, a internet, literatura, música, direitos humanos, justiça etc. Noções de comuns sociais e políticos, que requerem intervenções políticas, não são bem vistas por acadêmicos. Argumentamos, contudo, que valores e equipamentos cruciais para a vida, a dignidade, a equidade e a igualdade deveriam ser reconhecidos como comuns, mesmo que ainda não tenhamos, para governá-los, regimes de não-estado e não-mercado.

Os comuns podem ser “herdados”, por um grupo ou comunidade, de gerações anteriores — e passados para gerações futuras. Eles podem ser inventados, criados, adaptados, protegidos e reconstituídos por meio de regras coletivamente acordadas e em evolução, como por exemplo sistemas de irrigação, música, jardins urbanos, bacias hidrográficas recuperadas, sementes, conhecimento tradicional, portais de conhecimento online, cooperativas de trabalhadores etc. A tecnologia da internet possibilitou comuns virtuais, que por sua vez levaram a novas formas de relações sociais. A troca de sementes é um dos comuns mais antigos praticados pelas comunidades. Assegurando que as sementes estejam disponíveis para a população (por meio de bibliotecas de sementes, por exemplo), promove-se a capacidade das comunidades locais para adquirir soberania e resiliência alimentar, gerando um sentido compartilhado de lugar, interdependência e responsabilidades locais.

Os comuns não são governados pelo regime de propriedade privada, mercado ou Estado, mas por um ou vários grupos de pessoas, que podem ser social, econômica e culturalmente diversos. Por exemplo, um território pode incluir uma área de floresta, rio ou costa que poderia ser compartilhada e protegida por comunidades pastoris ou de pescadores por meio de um sistema de governança coletivamente elaborado com regras, obrigações, penalidades para sobreuso ou danos etc. Plataformas online para compartilhar informação e conhecimento engajam múltiplos usuários de todo o mundo. Mas, para que um recurso, espaço, conhecimento ou instalação seja comum é necessário que seja identificado e delimitado como tal. Suas fronteiras, usuários, regras de acesso, uso e controle, inclusões e exclusões, e sistema de governança devem ser desenvolvidos e reconhecidos pelos usuários dos comuns. Os comuns evoluem na prática e não há comuns sem “comunar” — isto é, sem as ações e práticas de criação dos comuns (Linebaug, 2010). Como construções sociais, os comuns envolvem, portanto, negociações de relacionamentos sociais e políticos entre pessoas que são parte de um comum, bem como entre elas e atores de fora do comum. Por exemplo, membros de uma floresta comum frequentemente têm de negociar com autoridades estatais e/ou cidades vizinhas que podem desejar controlar a floresta.

Neste artigo, limitamos nossa discussão a comuns naturais. Eles ncluem terras, corpos d’água e recursos associados que não são governados por regimes estatais, de mercado ou de propriedade privada. Podem incluir, por exemplo, terras agrícolas/culturas, zonas úmidas, florestas, lotes de madeira, pasto aberto, pastagens, encostas de colinas e montanhas e acidentadas, córregos e rios, lagoas, lagos e outros corpos d’água, mares e oceanos, litorais etc. Em muitas comunidades rurais, terras agrícolas, cultivadas e de pastagem, pertencem à comunidade, embora os direitos de posse de famílias para cultivar lotes específicos de terra sejam reconhecidos e respeitados. A noção de comum não nega a ação ou responsabilidade individual; ao contrário, proteger e administrar recursos coletivos requer uma coletividade de atores individuais trabalhando juntos em torno de objetivos comuns. Em muitas regiões de montanha na Ásia, campos itinerantes são reivindicados por famílias individuais, mas a encosta mais ampla é protegida por toda a comunidade. As vidas e os meios de subsistência dos pescadores são muito dependentes de rios, lagos e oceanos comuns, e suas culturas e tradições definem práticas, regras e limites para a extração como forma a protegê-los.

Argumentamos que os comuns naturais estão ameaçados pelo modelo dominante de desenvolvimento capitalista neoliberal – o que leva a sua comercialização, privatização e mercantilização, destruindo não apenas práticas de compartilhar, usar, gerir e proteger testadas pelo tempo, mas também ameaçando a sobrevivência de comunidades que dependem desses comuns. Esses processos são sistêmicos e perpetuados por instituições de governança global tais como Instituições Financeiras Internacionais (IFIs) e mecanismos voltados ao mercado. Mas as comunidades e populações locais estão reagindo. Há muitas lutas pelo mundo que ilustram sua decisão de defender, proteger, recuperar, restaurar e criar os comuns. Essas lutas não só desafiam diretamente o capitalismo como oferecem melhores maneiras de organizar nossas sociedades com base no compartilhamento de responsabilidades, benefícios, prestação de contas e relações socioculturais igualitárias.

Comercialização, mercantilização, privatização

A expansão do capitalismo global e do neoliberalismo acelerou enormemente os cercamentos, que transformam os comuns em propriedade privada e regimes de mercado, demarcando e delimitando zonas de uso exclusivo por atores ou grupos particulares, fracionando e parcelando espaços geridos conjuntamente para a pesca, pastagem etc. De modo a torná-los de propriedade individual.

Contextos e políticas orientadas ao mercado, tais como “livre” comércio e acordos de investimento, financeirização, regimes de propriedade privada e privatização de bens e serviços públicos destroem noções de governança e responsabilidade coletiva, e pavimentam o caminho para a destruição dos comuns. Numa cínica manipulação da crise climática, a atmosfera e o ar são definidos como bens comuns globais, mas capturados através de mecanismos de mercado. O comércio de emissões, mecanismos de desenvolvimento limpo (CDM, na sigla em inglês), Redução de Emissões do Desmatamento e Degradação Florestal (REDD, na sigla em inglês) e “Carbono Azul” possibilitam aos poluidores e operadores financeiros monopolizar recursos vitais para o planeta e a sociedade, mas não fornecem garantias de que as mudanças climáticas antropogênicas serão efetivamente verificadas.

Fazendas, florestas, pastos, pântanos, rios e outras fontes de água são capturadas para uma variedade de propósitos: desmatamento, plantação de matérias-primas industriais, indústria extrativista, desenvolvimento imobiliário, produção de energia, turismo, etc. A agricultura industrial (que inclui enormes monocultivos e o processamento dos produtos) estimula a concentração de recursos produtivos, terra e trabalho nas mãos de corporações e elites locais. Vários acordos de investimento internacionais preveem o acesso das corporações privadas e instituições de pesquisa à biodiversidade agrícola e natural, assim como ao conhecimento tradicional/local, com a possibilidade de declarar direitos de propriedade intelectual (IPR, na sigla em inglês) de produtos dele derivados. Os lucros dessas patentes revertem para as empresas e instituições de prospecção, não para as pessoas que cultivaram esses bens comuns durante gerações. Essa biopirataria é motivo de grande preocupação para as comunidades rurais em todos os lugares e povos, especialmente indígenas. As mulheres, que são as protetoras de sementes na maioria das comunidades camponesas, são geralmente as primeiras a ser desalojadas das novas produções agrícolas com base em sementes “melhoradas”.

Os comuns estão em risco também pelas condições políticas ligadas ao financiamento do desenvolvimento das instituições financeiras internacionais, e doadores bilaterais e multilaterais. Estes arranjos tendem a favorecer a liberalização do comércio, regulação privada favorável aos investidores, e a comercialização e privatização de recursos naturais e bens e serviços públicos. A agricultura industrial, químico-intensiva e orientada à monocultura e as agroflorestas, a indústria extrativa e a aquicultura comercial de larga escala transformam os comuns em propriedade privada e regimes baseados no mercado. São pontos centrais na agenda dos IFIs e até mesmo da FAO, a organização da ONU para Alimentação e Agricultura. Não somente recursos de terras, florestas e água são entregues a empresas privadas por longos períodos (arrendamentos de 25 a 99 anos), mas também são poluídas, contaminadas, degradadas e esgotadas pelo uso ultra-intensivo, aplicação extensiva de químicos e os materiais descartados.

Para ir além na ilustração do ponto acima, o Banco Mundial está firmemente comprometido com regimes de propriedade privada, direitos agrários “de mercado” individualizados e “redução de barreiras para transações de terra”. Na linguagem do Banco Mundial, “boa governança da terra” pode incluir o fortalecimento do acesso das mulheres à terra e ao capital, mas também inclui facilitar aquisição de terra em larga escala para investimento privado, maximizando o potencial de mercado da terra, usando-a como garantia para empréstimos etc. [1] A Corporação Financeira Internacional (IFC, na sigla em inglês) oferece financiamentos para investimentos em energia e agricultura industrial que frequentemente resultam no deslocamento das populações locais de seus territórios. O Banco de Desenvolvimento Asiático (ADB, na sigla em inglês) promove crescimento econômico rápido através de operações de setores privados, que repetidamente resultaram em poluição do ar e da água, degradação da terra e a redução dos recursos naturais. Os governos são obrigados a fornecer a empresas privadas acesso irrestrito à terra, à água e, naturalmente, a outros recursos, e adotar políticas e normas “amistosas ao mercado” (em vez de amistosas à comunidade ou à sociedade). Há pouco reconhecimento da relação complexa e interdependência entre o bem-estar humano e os produtos e funções que os ecossistemas saudáveis proporcionam – especialmente nas áreas rurais.

Em janeiro de 2010, o Banco Mundial, a FAO, o Fundo Internacional para o Desenvolvimento da Agricultura (IFAD) e a Conferência da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) propuseram os “Princípios para o Investimento Responsável na Agricultura e Respeito aos Direitos, Modos de Vida e Recursos” (PRAI, na sigla em inglês). Contudo, os PRAI são voltados a facilitar o acesso dos investidores agrícolas (geralmente corporações grandes e ricas) às terras agrícolas e aos recursos naturais que eles cobiçam, em vez de empoderar as comunidades rurais para defender os seus direitos de comuns cruciais para as gerações presentes e futuras.

Problemas com a governança

Embora muitos governos, IFIs e instituições regionais e globais reconheçam a importância do ambiente natural para o bem-estar e sobrevivência das populações rurais, eles não reconhecem a importância e a viabilidade do gerenciamento coletivo do ecossistema com centros locais de governança e tomada de decisões. Seus modelos de governança preferidos priorizam a propriedade individualizada e direitos de acesso e posse que podem ser livremente negociados nos mercados. Os Estados tendem, de modo geral, a adotar modelos de governança que favorecem os interesses de mercados e corporações sobre os interesses de seus cidadãos, especialmente aqueles que mais dependem dos comuns naturais para alimentação, saúde e modos de vida. Em vários países asiáticos, territórios e corpos de água que não estão sob a propriedade privada legal são designadas como “propriedade pública” e os governos reivindicam autoridade máxima para alocar/usar esses corpos para propósitos de segurança e economia nacional. Então, florestas, pastagens e terras agriculturáveis são convertidas em fazendas de monocultura industrial; lagos e pântanos são preenchidos para projetos imobiliários; rios são represados; e terras e corpos d’água são sequestradas para mineração, extração de petróleo e outras indústrias extrativistas. Estabelecem-se áreas exclusivas de preservação de florestas e de conservação da biodiversidade que restringem ou negam acesso às comunidades locais, mas permitem que empresas privadas façam o registro e a colheira de recursos por meio de concessões de uso.

A privatização e mercantilização dos comuns têm impactos profundos e de longo prazo nas sociedades rurais e urbanas. Elas transferem a governança dos territórios naturais e ecossistemas das populações locais para empresas privadas e instituições de livre mercado, retirando as economias do controle da sociedade e priorizando lucros de curto prazo sobre sustentabilidade de longo prazo. Práticas de compartilhamento, uso e gestão de recursos naturais testadas pelo tempo dentro de e entre comunidades e diferentes grupos de usuários são desmanteladas, aumentando o potencial de conflitos, enfraquecendo a coesão social e reduzindo a qualidade dos ecossistemas. A população local é excluída de espaços e recursos cruciais para a sustentação da vida, e o ambiente natural é degradado em razão do desmatamento, mudanças no uso da terra, contaminação química, desvio dos cursos d’água e superexploração. Tudo isso, por sua vez, afeta negativamente a disponibilidade e a segurança dos alimentos selvagens, de forragem e dos bens coletados. A privatização e mercantilização desempoderam especialmente as mulheres, uma vez que elas são responsáveis pela maioria das atividades de forrageamento e dependem (mais que os homens) de seu ambiente imediato para garantir o sustento de suas famílias.

Comunidades de todo o mundo relatam que seus sistemas informais tradicionais de gerir recursos naturais e territoriais eram muito mais efetivos na conservação de regeneração das terras, solos, florestas, água e biodiversidade do que os sistemas formais modernos introduzidos pelos Estados. Contudo, as ações das comunidades para defender seus comuns da expropriação, privatização e mercantilização têm sido geralmente criminalizadas e são frequentemente reprimidas com violência pelos governos.

A governança local, contudo, não é isenta problemas, nem a liderança tradicional é boa e justa em todas as comunidades e sociedades. As estruturas de poder tradicionais são igualmente suscetíveis à corrupção, ao abuso e captura por interesses, tais como as estruturas de poder modernas. As comunidades em muitas áreas rurais da Índia tendem a aderir a práticas discriminatórias profundamente enraizadas no sistema de castas, que proíbem certos grupos de usar os mesmos comuns utilizados por outros, e sequestram alguns recursos para o uso exclusivo de grupos historicamente poderosos. Tal discriminação estende-se por toda a Ásia, mesmo na ausência do sistema de castas, especialmente contra populações nativas e aquelas de etnias diferentes. As comunidades agrícolas sedentárias frequentemente chocam-se com comunidades de povos da floresta e pastores nômades, em torno de direitos de controlar o uso de pastos abertos, florestas e bosques. Comunidades privilegiadas social e economicamente fazem alianças com autoridades estatais para assegurar o acesso e controle sobre a terra, florestas e água. Mesmo em aldeias menos estratificadas, os chefes sentem-se frequentemente à vontade para vender terras comunitárias para ganho pessoal. Os piores problemas surgem onde hierarquias administrativas modernas e formais cooptam líderes tradicionais, causando cisões entre as prioridades do governo e da comunidade. Nas Filipinas e no Camboja, por exemplo, onde projetos de preparação para a REDD são implementados, a promessa de dinheiro e incentivos econômicos levou líderes nativos a aderir a esses projetos sem consulta à comunidade mais ampla. Além disso, na maior parte do mundo, estruturas sociopolíticas patrilineares e patriarcais negam qualquer voz às mulheres na tomada de decisões sobre como terras e recursos comunitários devem ser utilizados e administrados.

As mulheres e os comuns

Historicamente, as mulheres dependem do acesso aos comuns naturais. São as que mais sofreram com seu cercamento, mercantilização e privatização. As mulheres são as mais ferozes defensoras das culturas comunais que os colonizadores europeus tentaram aniquilar e estiveram nas linhas de frente contra o cercamento da terra na Inglaterra e no “Novo Mundo” (Federici, 2004). Essas realidades não mudaram nos tempos modernos. As mulheres continuam a depender dos comuns e de seu ambiente imediato para sua sobrevivência. De acordo com o Relatório Mundial sobre as Mulheres (World Women’s Report 2010), 75% das famílias em países da Ásia – em especial no Camboja, Laos e Nepal – dependem de lenha e biomassa tais como madeira, colheitas agrícolas, sobras e recursos florestais para gerar energia e ter meios de subsistência. Além disso, as mulheres têm papel inigualável como provedoras e produtoras de alimentos, e estão envolvidas e todas as etapas da produção de alimentos – do plantio à capina, adubação e colheita de culturas básicas, que são as principais fontes de dietas dos pobres rurais (FAO, 2011). Organizações de agricultores em todo o mundo reconhecem que as mulheres têm laços profundos com o território e que os comuns de produção de alimentos ficam mais propensos a ser realocados para uso comercial quando o poder de tomar decisões sobre o uso da terra está exclusivamente nas mãos dos homens.

Com a redução dos comuns naturais, tanto a capacidade das mulheres de enfrentar a pobreza com base nesses recursos quanto sua capacidade de administrá-los coletivamente estão cada vez menores. Esses processos levaram a um “deslocamento catastrófico das vidas das pessoas comuns” (Polanyi, 1944:33), porque as incertezas da dinâmica de oferta e demanda do mercado assume o lugar de princípios estáveis de longa data que regem os relacionamentos entre os seres humanos e a natureza.

Contudo, como as fizera as mulheres durante o cercamento dos comuns na Inglaterra, as mulheres de movimentos populares de nosso mundo contemporâneo são líderes na proteção, restauração e defensa os comuns ao menos de dois modos cruciais. Primeiro, na defesa contra os processos que mercantilizam, cercam e privatizam os comuns, a despeito das ameaças de criminalização e hostilidade. Por exemplo, 90% dos manifestantes e líderes no caso de grilagem do lago Boeung Kak, no Camboja. são mulheres. Kun Cha Tha, que deixou seu emprego de vendedora de arroz para dedicar o tempo à luta luta para proteger suas vidas e casas, disse, “Vivo aqui. Tenho direitos e estou trabalhando com as mulheres daqui para que não tenhamos que mudar. Continuarei a lutar aqui” (Lieberman, 2011). Muitas delas argumentam que não há escolha senão protestar e estar no front da luta. Segundo, na reorganização do trabalho reprodutivo, reconstruindo suas vidas e casas como comuns. Há várias narrativas de como as mulheres lideraram a coletivização do trabalho reprodutivo como um modo de partilhar responsabilidades na comunidade e proteger umas às outras da pobreza e da violência do Estado e de homens individuais (Federici, 2010). O Movimento dos Sem Terra (MST) do Brasil, por exemplo, coletiviza o trabalho doméstico em suas lutas pela terra, desde os acampamentos e as ocupações até a construção de suas comunidades. Além disso, muitas comunidades no passado e agora têm um profundo senso de divisão de responsabilidades em termos de trabalho doméstico e cuidados com as crianças. Uma das autoras deste texto cresceu numa situação como essa onde os vizinhos cuidam uns dos outros. Infelizmente, esse sentido de comunidade está sendo cada vez mais erodido sob o modelo de desenvolvimento atual.

Reivindicando e defendendo os comuns

Hoje, as ameaças aos comuns estão significativamente multiplicadas pelo aprofundamento das crises financeira, econômica e climática, usadas como oportunidades pelos Estados, corporações e atores institucionais internacionais para aprofundar o controle sobre recursos preciosos para a sustentação da vida. Ao mesmo tempo, os comuns têm sido sempre arenas de intensa ação, mobilização e organização político-social. À medida em que as ameaças aos comuns naturais multiplicam-se, as lutas das populações locais se intensificam para defender seus direitos coletivos à terra, água, florestas e territórios compartilhados. Isso inclui advocacy para abordagens inovadoras de governança, zeladoria e gestão dos territórios naturais. No coração dessas lutas para reconquistar e defender os comuns estão princípios de direitos humanos, gênero, justiça social e ecológica, sustentabilidade, democracia, autodeterminação e equidade intergeracional.

Os bens comuns proporcionarm um quadro para a governança no qual o benefício individual está inextricavelmente ligado à segurança de longo prazo da coletividade e é preferido, em relação aos ganhos de curto prazo. O próprio ato de comunizar é político, no sentido em que desafia as hierarquias do poder estabelecido e a noção de que os interesses de uns poucos podem minar as necessidades da maioria.

Os comuns são sistemas não mercantilizados de produção — e, portanto, um desafio direto para o capitalismo. Práticas de comunização são cada vez mais visíveis no centro de crises recorrentes — porque oferecem opções de sobrevivência criativas em tempos difíceis e ao mesmo tempo possibilitam às pessoas resistir efetivamente à destruição do desenvolvimento, crescimento econômico e expansão capitalista. É crucial que não apenas defender a existência dos bens comuns, contra os cercamentos e a cooptação, mas também ajudar a construir novos comuns, para responder aos desafios e crises e dar expressão às capacidades regenerativas das pessoas e da natureza.

Como um componente essencial para forjar um outro mundo, melhor, a defesa, proteção e (re)construção dos comuns, assim como os múltiplos atos de comunização permanecem um projeto político e social coletivo urgente, do qual todos devem participar.

Referências

De Angelis, Massimo “Crises, Capital and Co-optation: does capital need a commons fix?” http://wealthofthecommons.org/essay/crises-capital-and-co-optation-does-capital-need-commons-fix (última consulta: 29 Junho 2016)

Federici, S. (2004) The Caliban and the Witch, Brooklyn, Autonomedia, 1ª edição.

Federici, S. (2010) “Feminism and the Politics of the Commons” http://wealthofthecommons.org/essay/feminism-and-politics-commons (última consulta: 23 Junho 2016)

Food and Agriculture Organization (2011) “The role of women in agriculture” http://www.fao.org/docrep/013/am307e/am307e00.pdf (última consulta: 25 Junho 2016)

Liberman, A. (2011) “Cambodia: Women fight land grab around Phnom Penh’s contested lake” http://news.trust.org//item/20111228223200-wtp7l?view=print (última consulta: 27 Junho 2016)

Linebaugh, P. (2010) “Some Principles of the Commons” http://www.counterpunch.org/2010/01/08/some-principles-of-the-commons/ (última consulta: 29 Junho 2016)

Polanyi, K. (1944) The Great Transformation: the political and economic origins of our time, Boston, Beacon Press.

United Nations (2010) The World’s Women 2010: Trends and Statistics, New York, United Nations.

[1] http://www.responsibleagroinvestment.org/rai/node/254

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2 comentários para "Comuns, a nova fronteira da luta anticapitalista"

  1. C.Poivre disse:

    Depois da invenção das “armas de destruição em massa de Sadam” para justificar a invasão do Iraque, agora os EUA forjarão um “ataque químico de Assad” para invadir a Síria:
    https://blogdoalok.blogspot.com.br/2017/06/moon-of-alabama-casa-branca-diz-que.html

  2. Congratulations. Marvellous!

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