Viagem à guerra contra os povos do Paraguai

Perguntas que 150 anos não calaram. Como negros brasileiros e camponeses argentinos foram jogados contra o jovem país que se erguia. O que isso revela sobre nacionalismos oligárquicos e mercantis. Que heranças nos oprimem até hoje

Tela de Pedro Américo retrata batalha em que 19 mil brasileiros massacraram 5 mil paraguaios. Mas o faz apresentando como agressor o povo dizimado pela Tríplice Aliança
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Por Roberta Traspadini* | Imagem: Pedro Américo, A Batalha do Avaí (detalhe)


Quem cria a memória? A memória, essa operação coletiva
dos acontecimentos e das interpretações do passado
que se quer salvaguardar, se integra (…)
em tentativas mais ou menos conscientes
de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento. (…)
A referência ao passado serve para manter a coesão
dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade,
para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade,
mas também as oposições irredutíveis.

O memoricídio, termo sustentado pelo venezuelano Fernando Báez em A destruição cultural da América Latina, é uma arma de destruição em massa secular que apaga, silencia e desconstrói trajetórias ao longo de sua produção hegemônica. Em tempos de velocidade técnico-científica e de memórias artificiais, nas nuvens, relembrar as histórias dos genocídio, torna-se fundamental para o processo geracional formativo. Assim, é na convicção da não neutralidade da História que propomos uma viagem no tempo das dores e das lutas de contestação presentes em mais um dos sanguinários capítulos violentos sobre o povo da América latina.

Essa viagem rumo à recuperação histórica está assentada na dignidade rebelde presente no nosso continente. Suas histórias, mesmo que não contadas pela história oficial ou por parte do pensamento crítico, são narradas nos cantos musicais, e nas esquinas dialógicas das resistências. Na América Latina pulsa vida em meio à propagação do mar de sangue.

Uma viagem ao tempo da Guerra da Quadruple Aliança contra o Paraguai

Data: 16 de agosto de 1869. Território atual: Eusébio Ayala (Paraguai). Batalha: Acosta Ñu (Acosta das crianças). Cenário: A guerra contra o povo paraguaio iniciada em 1864. Em 1865, crianças de Eusébio Ayala tiveram que cumprir a função de defesa nacional no lugar dos adultos. Do lado paraguaio da trincheira, crianças. Do lado da “aliança”, negros que lutavam em nome de uma possível alforria, ou ganho de terras. Na saga da guerra, os filhos dos povos latinos encontravam-se com os adultos em processo de alforria condicionada. Entre os dois, corria um mundo de perversidades.

Segundo os relatos históricos, na batalha de Acosta Ñu, 20.000 homens cercaram 3.500 crianças entre 5 e 15 anos que assumiram a defensa do país contra a invasão do Império brasileiro e a República Argentina. A perseguição dos exércitos brasileiros, argentinos e uruguaios ao Marechal Francisco Solano López, apresentava sua face mais avançada de violência, desumanidade, pelo lado do capital; e da defesa da soberania nacional de uma produção de um imaginário coletivo que assentava-se sobre a dignidade, o território e a liberdade mercantil, por parte do povo paraguaio em luta. Os relatos comoventes do recorrido das vidas e lutas das crianças, das suas mães, de cada habitante desse território em guerra, é apenas um capítulo de uma história que completa, em 2020, 150 anos.

A guerra “em aliança” contra o Paraguai, reconfigurou o sentido de progresso e desenvolvimento até então produzido naquele país. Dentro da lógica mercantil reinante, o Paraguai figurava como potência. A violência sobre seu território colocava em xeque a constituição de sua nacionalidade.1 A dizimação do seu povo e a invasão-ocupação militar brasileira e argentina por mais de 7 anos após a guera, que culminou na perda territorial de mais de 50% do país, é um recordar latino-americano nada agradável ante o vivido. Narrar parte das histórias dessa história é tirar do esquecimento não somente as tragédias, mas dar voz àqueles e àquelas que a história oficial insiste em ocultar.

A guerra ocorrida no território paraguaio foi, em realidade, contra os povos da América Latina. No caso brasileiro, parte expressiva dos combatentes eram ou escravos na luta pela alforria, ou camponeses pobres na luta pelo direito a um pedaço de terra. No entanto, a produção generalizada, no continente, de um imaginário de defesa nacional – enquanto o combate ocorria, de fato, entre trabalhadores – dificulta analisar a história real. Em especial, quando as dores físicas-psíquicas foram vividas pelos próprios sujeitos que, por diferentes motivos, e uma pseudo-defesa comum dos patriotismos lutavam por outros, na busca de suas liberdades.

Em cada um dos nascentes Estados nacionais da América Latina, ao longo do século XIX, a Guerra contra o Paraguai significou mutilações físicas, psíquicas e a conformação de uma disputa nacional que não se resolverá na história do capitalismo industrial no continente. Entre os sentimentos concretos das perdas, apresentam-se, com justeza, os ressentimentos de uma história mutiladora.2

No capitalismo, a guerra é sempre contra e sobre os povos e seus territórios. Na América Latina do século XIX, pleno período das independências formais e da chegada do capitalismo na Europa a sua fase imperialista (1890), materializou-se a guerra contra crianças, homens e mulheres indígenas, negros e camponeses empobrecidos.

Entre 1864 e 1870, definia-se um sentido territorial de apropriação sobre as fronteiras vizinhas, por parte do Brasil, do Uruguai, da Argentina, assessorados e financiados pela Inglaterra-EUA. Forjava, no continente, um sentido de Pátria alicerçado nos mandamentos mercantis, a exemplo da revolução francesa e da independência dos Estados Unidos.

No caso do Brasil, por exemplo, à luz do decreto imperial .371, de chamado e criação à constituição dos voluntários da Pátria, o então Estado imperial prometia terras, empregos públicos, títulos, alforrias, concomitante com o processo de mercantilização das terras e “liberação” para a venda do até então trabalho escravo – Lei de Terras e Lei Eusébio de Queiroz, ambas de 1850. Em nome da construção material da Pátria-Brasil, forjava-se, no seio da classe trabalhadora ainda escravizada formalmente, uma ideia de liberdade condicionada à defesa da nação.3

A luta contra o Paraguai apresentava um lado ideo-político que não será apagado do que-fazer político latino-americano: o condicionamento à liberdade mercantil, à fraternidade das armas, à igualdade meramente formal dos títulos, em meio à manutenção da desigualdade estrutural. José Luís Chiavenato, em 1979, ao publicar em plena ditadura militar Genocídio americano: a guerra do Paraguai, reforça os números da atrocidade do capital sobre a independência paraguaia:

– Uma população de aproximadamente 800 mil pessoas, antes da guerra, reduziu-se a somente 194 mil após a guerra. Ou seja, 75,75% da população paraguaia foi dizimada neste conflito cuja produção de territorialidade contra um povo foi demarcada também pelas estruturas internas – coloniais e escravistas – do Brasil, da Argentina e do Uruguai, somadas às mudanças internacionais de uma hegemonia inglesa entrando em agonia frente ao esplendor de sua ex-colônia – os Estados Unidos, agora o império em ascensão no controle dos recursos minerais e na exploração da força de trabalho no plano internacional.

– Sobreviveram apenas 14 mil homens, dos quais 9 mil eram crianças com até 10 anos de idade; Saldo negativo, desumano, destrutivo da guerra em termos de pessoas: 606 mil mortos e mortas.

A isso é preciso somar a perda do território paraguaio, entregue ao Império do Brasil e à República Argentina, e a ocupação militar dos exércitos invasores no Paraguai até 7 anos depois da guerra, criando os principais partidos políticos do país e dirigindo os governos na disputa de saque contínuo de sua terra e riquezas.

O extermínio somado à apropriação territorial, conduziram, segundo Oscar Creyd4, a economia paraguaia a um processo de recolonização, tornando-a praticamente semi-feudal. Se de desenvolvimento capitalista se trata, a guerra contra o Paraguai significou o aniquilamento de uma possível potência econômica industrial. Daí definir como soberana, democrática e popular, levam-se muitos necessários e comedidos passos no entendimento da história.

Viagem ao passado com os pés no presente

Se é certo que o capital externo promove
a integração econômica da América Latina,
não é menos certo que esta integração
não conduz à superação da dependência externa,
nem abre a possibilidade de um desenvolvimento compartido,
que assegure maior equidade nas relações
entre os próprios países latino-americanos.
Sem a superação da dependência
e sem uma relativa equidade nas relações
entre os próprios países latinoamericanos,
não é possível aspirar a uma verdadeira interdependência
no plano internacional.
E sem esta inderdepenência,
a integração será apenas subordinçaão

Ruy Mauro Marini,
La inversión extranjera: dependencia e interdependencia, 1977

Tempo percorrido do final da guerra contra o Paraguai e os povos até o momento: 150 anos. História real: as batalhas das elites contra os projetos nacionais populares no continente. Cada país vivia, para dentro de suas formações, evoluções insurgentes contra a ordem hegemônica. Os conflitos para fora não aniquilaram a dificuldade militar de organização nacional para dentro. Isto vale para a Argentina, o Uruguai, o Brasil e os Estados Unidos, em se tratando de ex-colônias. Memória geral: a resistência dos povos na defesa do seu território e suas dores como povo, decorridas das derrotas generalizadas nas guerras. Saldo político: mortes, mutilações, imaginários distorcidos sobre o inimigo principal e a vitória dos nacionalismos republicanos mercantis. Estratégia de rebeldia digna: Rememorar a luta dos povos para explicitar as armadilhas da história e consolidar, à luz das resistências, os registros sobre nossos mundos necessários e possíveis.

Para a reconstrução desse importante processo latino-americano, pretendemos trazer à luz temas-problemas que reverberam em nosso tempo como esquecimentos. Afinal, passados tantos anos, de formação geracional se trata no âmbito da política.

No próximo texto sobre a guerra contra os povos no Paraguai, trabalharemos as lutas de independências na América Latina em geral, o caso paraguaio em particular e os legados que esta história nos deixa na resolução dos dilemas no século XXI. Partimos, de antemão, de algumas premissas sobre os equívocos analíticos intencionais e propagados sobre a história desta guerra:

  1. O equívoco da narrativa histórica assentada sobre o tema Guerra “do Paraguai”. Foi uma guerra contra o Paraguai, especificamente contra o povo paraguaio e seu processo de produção da independência. Foi uma guerra contra os povos da América em geral, onde os povos do Brasil, da Argentina e do Uruguai, ao lutarem em uma guerra que beneficiava a Inglaterra e as classes dominantes dos seus respectivos países, fomentavam, no continente, muitas arestas difíceis de dissiparcom o tempo.
  2. O equívoco da conformação imagética de que o inimigo principal dos paraguaios ou foi o negro brasileiro, ou foi o camponês brasileiro-argentino-uruguaio. O inimigo foi o capital internacional. As guerras foram protagonizadas pelos populares de cada território, porque estes dependiam, literalmente, de uma carta-aval para terem o direito a viver. Eles foram também vítimas da Guerra, e lutavam por suas diversas alforrias, ou direitos a ter terra, em sociedades que transitavam da era colonial à era nacional. Nesse sentido, se a guerra foi entre os povos, a pergunta que se abre é em nome de quem, e de que os mesmos lutavam.
  3. O equívoco de não perseguirmos as pistas das resistências. A guerra foi sanguinária sem dúvida, mais foi também de resistência popular e de confirmação, na prática, dos discursos de “libertação”, que na prática não ocorreram no interior dos nossos países. Nos relatos dos/das lutadores, na história oral, cantaram-se os dramas, as sagas, as dores, as incompreensões e as tristezas-alegrias sobre a situação ora vivida. A história não é imparcial. Tampouco seu apagamento. Ano: 2020. Contexto: epidemias e vírus diversos.

Em plena era de pandemia, as violências proliferam-se. Entre elas, apagar a história como forma de manter a dominação. São 156 anos do início de uma guerra que tem muito a nos ensinar. Entre as perguntas que ficam, temos uma em especial: na memória e na história dos nossos povos, quem ganhou e quem perdeu essa guerra?

Tese: a intencional lógica de destruição em massa dos povos da América Latina. Antítese: a história das resistências e da criação-produção coletiva da riqueza e do mundo. Síntese: a contradição.

É na esteira da conformação do capitalismo dependente que analisaremos a história dessa guerra à luz dos dilemas geracionais do nosso tempo. Em 16 de outubro de 1864 deflagrava-se a guerra contra os povos no Paraguai.



* 1O texto conta com os aportes e debate de Cecilia Vuyk, paraguaia e latino-americana (1986).

1 Sobre a questão do Estado bacional paraguaio e sua independência em 1811, há diversos debates e defesas que vão desde uma concepção democrática-nacional e popular do significado da independência paraguaia, afirmada pelas teses de Oscar Creydt, até as teses que definem, à luz do debate das independências em meio à transição do capitalismo concorrencial para o monopolista, das independências formais constitutivas de dependências reais para a América Latina.

2As realidades concretas dos países e as disputas políticas entre os movimentos-partidos políticos de esquerda definirão as interpretações factíveis acerca da formação histórica e social de cada país. Nesse sentido, olhando a história da América Latina a partir do Brasil, como em uma fotografia em preto-branco do cenário regional daquela época, a tese da soberania nacional e popular apresenta-se com muita dificuldade de ser digerida. Talvez porque tenhamos vivido processos muito diferentes no Brasil. Talvez por interpretações históricas divergentes no interior da esquerda sobre o contexto histórico mundial do século XIX.

3 Ver os depoimentos dos “voluntários” e/ou de seus familiares recuperados dos arquivos de jornais da época por Marcelo Santos Rodrigues, em sua tese de doutorado, defendida em 2009: Guerra do Paraguai, os caminhos da memória entre a comemoração e o esquecimento.

4 Ver: Creydt, Oscar. Formación histórica de la nación paraguaya (2011).

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3 comentários para "Viagem à guerra contra os povos do Paraguai"

  1. José Mário Ferraz disse:

    De grande interesse para quem se liga na eterna submissão do Brasil, além de mais sucinto, o texto devia ser também de leitura accessível a quem não é intelectual.

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