O que um provérbio pode tirar de nós

“O não você já tem”, diz o dito popular, tão ao gosto neoliberal. Cria a ilusão de que nada nos falta, mas podemos “conquistar” algo mais. Mas então por que essa angústia? Por que é tão difícil expor o íntimo desejo que só o outro pode completar?

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Título original: A ilusão neoliberal do provérbio “o não você já tem”.

A sabedoria popular é recheada de provérbios. Marcados pela brevidade e pelo poder de síntese, esses ditos populares frequentemente expressam ensinamentos morais ao mesmo tempo extraídos e aplicados às experiências cotidianas. Se por um lado as vivências pessoais e coletivas tornam possível elaborar algumas modalidades de generalizações morais, por outro lado essas mesmas generalizações são transformadas em princípios que devem atribuir sentido àquelas mesmas vivências, gerando um ciclo de retroalimentação entre provérbio e experiência.

Alguns ditos populares são antigos e foram amplamente difundidos: “a cavalo dado não se olha os dentes”, “em casa de ferreiro, o espeto é de pau”, “filho de peixe peixinho é” etc. Entretanto, existem ditos populares formados mais recentemente e que circulam muitas vezes nas redes sociais. Um desses ditos populares é “o não você já tem”. Pessoalmente, por conta de sua ironia e de seu deboche diante das derrotas da vida, acho muito mais interessante sua variação “o não você já tem, só falta a humilhação”. Entretanto, quero aqui me dedicar a fazer uma breve reflexão sobre sua versão original.

A expressão “o não você já tem” é aplicada naquelas situações em que a dúvida paralisa ou ao menos dificulta a tomada de uma decisão. Não se trata de uma decisão a respeito daquilo que é oferecido pelo outro. Se vou a um bar e o dono do estabelecimento, em virtude de nosso bom relacionamento, que transcende a mera transação comercial, me oferece como saideira mais uma garrafa de cerveja ou uma dose de cachaça, fico em dúvida sobre qual das duas opções devo decidir, mas notem que as opções me foram oferecidas sem que eu as tivesse pedido. O nosso dito popular não é aplicado a essa situação, e sim quando se trata de uma decisão em que devo pedir ou solicitar aquilo que não me foi oferecido.

Vejamos um exemplo profissional e outro pessoal. Uma assistente de produção trabalha há alguns anos em uma produtora. Foi capaz de desenvolver projetos bem-sucedidos e de contribuir para ampliar os horizontes da produtora, porém, em nenhum momento seu coordenador mencionou a ela qualquer possibilidade de promoção ou de reconhecimento. Durante o almoço, ao escutar as queixas da assistente, um colega da mesma produtora pergunta a ela por que ainda não havia pedido uma promoção ao seu coordenador. Diante da hesitação a respeito dessa decisão, o colega carimba a conversa com o dito popular “o não você já tem”.

Agora, vejamos um exemplo mais pessoal. Dois rapazes se conheceram no carnaval. A afinidade foi instantânea, o que os levou a trocarem os números de celular antes de se despedirem. Contudo, nenhum dos dois teve coragem para quebrar o silêncio e iniciar uma conversa virtual. Um deles compartilhou com sua amiga a dúvida que o impedia de tomar uma decisão: escrever para o boy e chamá-lo para sair. A confidente, ao contrário do amigo apaixonado, não teve dúvidas: lançou um “o não você já tem”.

Nesses dois exemplos, a expressão “o não você já tem” é utilizada para mobilizar uma ação no ouvinte (seja a assistente de produção, seja o rapaz apaixonado): tomar uma decisão para fazer aquilo que ele mesmo quer fazer. Essa mobilização considera que o ouvinte quer alguma coisa que não tem, mas uma dúvida profunda o impede de agir para conseguir o que quer. O ouvinte não toma a decisão porque não sabe se a resposta do coordenador ou do boy será sim ou não, ou seja, ao temer receber um não, acaba não pedindo o sim. Contudo, de acordo com o dito popular que estamos analisando, essa dúvida do ouvinte seria motivada por um equívoco. Ao contrário do que supõem, tanto a assistente de produção como o boy apaixonado já possuiriam o “não”: antes de pedir, a assistente “não” foi promovida, assim como o rapaz “não” conversou com seu crush.

O ensinamento “o não você já tem” pressupõe que aquele que se encontra mortificado pela dúvida já possui alguma coisa (o “não”) e que, agora, se trata de adquirir mais alguma coisa (o “sim”). Vejam que tanto o “não” como o “sim” são entendidos como algo que se pode possuir, como uma propriedade. Não se perde nada quando se pede uma promoção ou quando se inicia uma conversa com o crush, mas pode-se ganhar mais alguma coisa. Estamos aqui no jogo do invicto: ou se ganha ou não se ganha, mas nunca se perde. Para esse indivíduo completo e para o qual não lhe falta nada, resta-lhe acumular, angariar, conquistar mais e mais posses ao longo de sua existência.

O dito popular “o não você já tem” coloca no mesmo nível de entendimento tanto aquela dúvida diante de duas opções oferecidas pelo outro como aquela dúvida diante de fazer ou não fazer um pedido ao outro. Essa equivalência encobre aquilo que há de mais fundamental na dúvida diante de uma decisão ou de um pedido. Algo da assistente de produção e do rapaz apaixonado entra em jogo quando ambos decidem pedir a promoção ao coordenador ou romper o silêncio com o crush: a falta.

Em primeiro lugar, a dúvida diante da decisão de pedir não é motivada por um equívoco, e sim por uma angústia: quando se pede, não se tem nem o “sim” nem o “não”. É justamente por não saberem se o coordenador vai aprovar ou desaprovar o pedido de promoção e se o crush vai ou não responder à conversa virtual que a assistente de produção e o rapaz apaixonado se encontram nessa angustiante dúvida. A dúvida não é por aquilo que se pode ganhar ou não ganhar, e sim por aquilo que se perde.

Em segundo lugar, o que se perde quando se pede? A ilusão de completude. Para pedir, é necessário expor a própria falta. Para a assistente de produção, falta uma promoção, assim como para o rapaz apaixonado falta o crush conhecido no carnaval. Nesses pedidos, cuja angústia pode ser mais ou menos intensa (dependendo dos fatores envolvidos), deixa-se claro que somente o outro pode oferecer aquilo que não se tem. Nesse sentido, a ilusão de completude é apenas uma maneira de não lidar com a própria falta, de se demitir do lugar daquele que pede.

A ilusão de completude é incansavelmente forjada pelo discurso neoliberal. Sua potência reside justamente em sua capacidade de conformar e sujeitar corpos de quaisquer espectros políticos. A cultura do alto desempenho e a hipermedicalização do indivíduo são suas facetas mais evidentes, mas a crença no equilíbrio amoroso não deixa de pagar sua dívida àquela ilusão, pois substitui o ideal de amor eterno pelo ideal de amor sem falta, constituído por dois (ou mais) indivíduos supostamente completos que decidiram abrir mão de uma pergunta fundamental: o que esse outro quer de mim?

Por fim, em terceiro lugar, não se trata de qualquer pedido. Muitos pedidos podem ser resolvidos sem a mínima dose de angústia, como pedir uma dose de cachaça no bar ou perguntar onde está localizada a seção de ciências humanas numa livraria. Trata-se, portanto, de pedidos que envolvem os desejos mais fundamentais. Se o desejo está associado à falta – e é assim que estou entendendo essa dinâmica –, então a angústia experimentada diante da decisão de fazer grandes pedidos pode justamente apontar para o desejo. E é nisso, a meu ver, que reside a angustiante dúvida diante da decisão que estamos investigando: nesse pedido endereçado ao outro reside a falta da qual se pode extrair o desejo remetido a mim.

Por outro lado, a satisfação de um pedido mais imediato não esgota o desejo, mas o abre para uma infinitude desejante. A falta que a assistente de produção acreditava completar com a promoção e que o rapaz apaixonado também a alcançaria com a conversa virtual com o crush se mostra, na verdade, como uma falta constituinte, uma falta fundamental. Um desejo que não se contenta com aquilo que lhe é oferecido, mas que se dispõe a deslizar infinitamente, permitindo não somente promoções e conversas, mas também realizações e amores mais ricos e mais interessantes.

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2 comentários para "O que um provérbio pode tirar de nós"

  1. KATIA SCAFF MARQUES disse:

    Muito boa reflexão, bem aplicada à modernidade, à sociedade ultracapitalista e urbana.

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