Brasil: do bom e do mau uso da ciência

Como retomar a pesquisa pública e independente, em defesa das maiorias e do meio ambiente. Quais estratégias para evitar a ingerência de mercado e governos. Examinar atraso das vacinas e questão dos transgênicos no país dá pistas sobre o desafio

Employees work on the production line of CoronaVac, Sinovac Biotech’s vaccine against COVID-19 coronavirus at the Butantan biomedical production center, in Sao Paulo, Brazil, on January 14, 2021. – Sao Paulo state is due to begin immunizing its 12 million citizens from January 25. Beijing has already sent 10.7 million Coronavac doses and the supplies needed to make another 40 million doses. The health ministry, though, has yet to divulge when it will launch a nationwide immunization program. (Photo by NELSON ALMEIDA / AFP)
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Durante estes anos de pandemia de covid a opinião pública ficou saturada com as controvérsias entre o presidente Bolsonaro e a comunidade científica a respeito 1) da utilidade da cloroquina no tratamento da doença e 2) a importância das vacinas para controlar a pandemia.

Bolsonaro é um ignorante arrogante, que desdenha quem sabe mais do que ele e desafia o conhecimento científico. Suas convicções não são informadas por outra coisa a não ser o que acha serem seus interesses políticos. Por achar que as medidas recomendadas pela OMS e pelos cientistas brasileiros poderiam levar a um retrocesso na economia e, portanto, aumentar a sua rejeição política, ele se opôs a elas.

Ao decidir ser contra o isolamento social e as quarentenas para preservar a economia (que já ia bem mal das pernas, diga-se) ele foi buscar argumentos que dessem suporte à sua posição. Começou com a teoria do “efeito de rebanho”, ou seja, do controle natural da pandemia pela contaminação da ampla maioria da população. Confrontado pelo ministro da Saúde, Mandetta, indicando que esta opção poderia levar a 5 milhões de mortos por covid e mais um número impreciso de outros óbitos provocados pelo colapso dos serviços de saúde pública do SUS, ele nem pestanejou. Era um preço a pagar. Por outro lado, Bolsonaro pegou carona nas falácias de outro negacionista, Donald Trump, e adotou a proposta do “tratamento precoce” com o uso de cloroquina e outros medicamentos tão inócuos como o primeiro. Tipicamente, Bolsonaro nem se preocupou em se assegurar da eficácia destes medicamentos. Apostou neles porque esta “solução” era útil para a sua intenção de impedir qualquer restrição à circulação das pessoas.

A maior parte da comunidade científica brasileira confrontou o presidente e convenceu governadores e prefeitos a adotarem medidas de limitação da circulação de pessoas, fechamento de escolas, casas de espetáculo, museus, igrejas, restrição de festas e todo tipo de aglomeração. Bolsonaro tentou impedir estas medidas, mas o STF garantiu a legitimidade de governadores e prefeitos nas decisões para enfrentar a pandemia. Furioso, o presidente passou a desmoralizar ativamente estas decisões e a responsabilizar os entes federativos pelo impacto na economia. Também tentou se opor a decisões propostas pelo Congresso para criar um auxílio emergencial para os mais pobres sobreviverem à paralisação da economia e à perda de seus precários meios de subsistência. Atropelado pelo Congresso, ele fez uma manobra de última hora aumentando o valor do auxílio básico de 500 para 600 reais. Não era uma preocupação com a sobrevivência dos mais pobres, mas a tentativa de escapar do risco de ser visto como um obstáculo para a distribuição dos recursos. Sempre um cálculo político.

Quando começou a guerra das vacinas Bolsonaro levantou todo tipo de objeção à vacinação em massa. Objetou contra a Coronavac por ser uma vacina “comunista”. Na verdade, seu problema com esta vacina é que ela estava sendo produzida pelo Instituto Butantã, com forte apoio do governador de São Paulo, seu inimigo maior naquele momento, visto como eventual concorrente para a reeleição. O Ministério da Saúde travou a compra da vacina paulista/chinesa enquanto pode e a Anvisa foi mais que lenta na autorização do seu uso no Brasil. Estaria ainda sensível às pressões de Bolsonaro?

Mas e as outras vacinas? Como entender a reação contra as vacinas da AstraZeneca e da Pfizer? Afinal, até Trump engoliu suas objeções e promoveu o uso das vacinas e abandonou a promoção da cloroquina. Bolsonaro adotou a postura de criticar os grandes laboratórios farmacêuticos que estavam usando as técnicas avançadas da engenharia genética na produção de suas vacinas. Segundo ele, nas suas imagens infantilizadas, elas poderiam “transformar o vacinado em jacaré” ou provocar “mudanças de sexo”. Sendo Bolsonaro, não se trata de qualquer dúvida científica sobre os riscos eventuais de uma tecnologia ainda em seus primeiros passos, mas de argumentos alinhados para apoiar uma posição à priori. Mas porque? Afinal, a vacinação em massa e a toda pressa, com ativa coordenação do Ministério da Saúde, aceleraria o retorno à normalidade e à reativação da economia. Guedes, apesar de capacho submisso do presidente, enxergou este caminho e apoiou a vacinação. O ministro Pazuello, ainda mais capacho, fez o que pode para travar e atrapalhar a campanha de vacinação, sob clara orientação de Bolsonaro (“um manda e o outro obedece”). É tão contraditório que só uma explicação pode ser avançada. Bolsonaro não quis a Pfizer porque aceitá-la implicaria em ter que aceitar também a Coronavac “do Dória”, que tinha muito mais vacinas para distribuir no início do que a Pfizer. Para não dar terreno para a capitalização política de Dória, Bolsonaro preferiu abrir fogo contra todas as vacinas.

A Anvisa, apesar da lentidão nas suas decisões, acabou liberando o uso da Coronavac e da Pfizer no início de 2021, mas só a primeira estava disponível. Bolsonaro ainda tentou uma manobra desesperada tentando impedir a vacinação sem o controle do Ministério da Saúde. Dória comprou a briga e anunciou que iniciaria a vacinação em 25 de janeiro. Bolsonaro teve que engolir, embora tenha conseguido, a posteriori, centralizar a distribuição das vacinas no MS. Atrapalhou ativamente esta distribuição, em um país que já foi capaz de vacinar 90% da população em três meses, em passado não tão remoto. Ou seja, Bolsonaro não se move por convicções, mas por interesses e, muitas vezes, suas ações só se explicam como resultado de erros de cálculo.

No choque entre a boçalidade e a ciência, ganhou a ciência. Há que se assinalar também o papel dos meios de comunicação no apoio aos argumentos científicos e no combate ao negacionismo bruto do energúmeno. Assistimos horas e horas de debates de entrevistadores com infectologistas e outros especialistas, dia após dia em todos os canais mais respeitáveis de TV. Aprendemos a conhecer e respeitar personagens como Margaret Dalcomo e Natália Pasternack, só para citar duas das mais embasadas e eficientes nas suas explicações. Foi um momento importante na guerra de informação e o resultado foi um apoio generalizado do público à vacinação (acima de 90% no auge) e os maiores índices de rejeição a Bolsonaro em todo o seu governo. Ficou muito forte junto ao público a ideia da ciência como algo a ser respeitado e acatado nas tomadas de decisão governamentais.

Tudo isto seria um relato de novela com final feliz se não fosse por algumas considerações que não cabiam no contexto da grande crise da pandemia de covid. Senão vejamos.

Em primeiro lugar, todo mundo que acompanha a evolução da ciência sabe que não existe “ciência absoluta”. A ciência evolui continuamente e o que hoje é verdade amanhã pode deixar de ser pelo próprio movimento de aprimoração do conhecimento. Por outro lado, como vimos em escala local no caso da pandemia, a ciência não é neutra ou, pelo menos, nem toda a ciência é neutra. Desde que o capitalismo se apropriou em muitas áreas, dos processos de geração do conhecimento, a lógica do lucro passou a ser muitas vezes mais importante do que qualquer consideração científica mais rigorosa.

São inúmeros os casos, amplamente reconhecidos em todo o mundo, onde cientistas apoiados por e apoiando empresas de todo tipo defenderam posições que muitos de seus colegas consideravam entre duvidosas e criminosas. O caso mais notório foi a chamada guerra do tabaco. Por mais de 30 anos a indústria dos cigarros financiou “campanhas científicas”, “provando” que fumar não implicava em risco de câncer no pulmão. No final, as empresas capitularam e foram obrigadas a pagar indenizações bilionárias e a adotar uma série de medidas advertindo o público dos riscos do consumo de cigarros. Mas houve muitos outros casos, todos com as mesmas características: empresas poderosas pagaram cientistas para comprovar que seus produtos eram inócuos e usaram estes mesmos cientistas em campanhas milionárias para ganhar a opinião pública.

Em quase todos os casos as indústrias perderam, mas depois de uma longa resistência. Em outros casos a guerra continua. Atualmente, a mais notória das guerras opõe o IPCC, o Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas e as indústrias ligadas à exploração e uso de combustíveis fósseis. Embora poucos sejam os cientistas que, hoje, negam o aquecimento global ou o impacto das atividades humanas no mesmo, em particular o impacto do uso de combustíveis fósseis na geração de gases de efeito estufa, a pequena minoria de negacionistas, com apoio dos massivos recursos das empresas, é capaz de ter um enorme efeito nos meios de comunicação e, portanto, no público. O resultado é que, em um país como os Estados Unidos, praticamente a metade dos eleitores está entre os negacionistas e isso tem um efeito deletério entre os eleitos, presidentes, governadores, prefeitos e parlamentares, fazendo com que se travem as medidas necessárias para conter e mitigar os impactos do aquecimento global.

Outro exemplo de mau uso da ciência é o emprego de engenharia genética na agricultura. Plantas ditas transgênicas foram desenvolvidas por empresas poderosas, sendo que a primeira a levar seus produtos para um amplo emprego na agricultura foi a Monsanto, americana recentemente comprada pela alemã Bayer.

As empresas da transgenia fizeram milhares de estudos e pesquisas “comprovando” que seus produtos são inócuos para a saúde de consumidores e para o meio ambiente. No entanto, os cientistas trabalhando para as empresas publicaram pouquíssimos artigos científicos em revistas especializadas.

É bom lembrar quais são os mecanismos do universo científico para legitimar as pesquisas que vão sendo realizadas em todo mundo. Existem revistas científicas para cada especialidade e elas só publicam artigos apresentando pesquisas após o que se chama em inglês de “peer review” ou revisão pelos pares. Os pares são cientistas consagrados que emitem separadamente opiniões sobre a seriedade e rigor das pesquisas apresentadas. Em outras palavras, quem não tem seus artigos publicados em alguma das revistas elencadas como respeitáveis simplesmente não tem seus trabalhos validados e aceitos pela comunidade científica. As empresas e seus cientistas publicam poucos artigos porque, segundo elas mesmas, não querem revelar aos concorrentes seus segredos industriais. Seja qual for a razão, o fato é que os tão citados milhares de estudos da Monsanto, Syngenta, Bayer, Dupont e outras empresas de biotecnologia não servem como suporte científico para a inocuidade dos seus produtos.

Outro argumento usado pelas empresas é o fato de que seus produtos foram liberados pelas agências públicas de avaliação de risco, no caso americano a Food and Drug Administration (FDA), equivalente da Anvisa, e a Environmental Protection Agency (EPA), equivalente do Ibama. Ocorre que estas agências sofrem forte influência do Executivo americano. Quando os primeiros pedidos de liberação dos transgênicos foram levados pelas empresas a estas agências houve um enorme impasse entre os cientistas que delas participavam. Segundo documentos obtidos por processos legais de pedido de transparência feitos por uma entidade da sociedade civil intitulada Union of Concerned Scientists (UCS), a maioria dos cientistas das agências consideraram que não existiam protocolos científicos de avaliação dos riscos de uma tecnologia inteiramente nova e que estes deveriam ser estabelecidos e aplicados para que as deliberações sobre liberação pudessem ser tomadas. A pressão das empresas sobre o Executivo americano fez com que fosse designado para a presidência do FDA um ex-advogado da Monsanto e este acabou criando uma fórmula que foi um verdadeiro ovo de Colombo.

Declarou-se que os produtos transgênicos deviam ser considerados como “substancialmente equivalentes” aos produtos naturais. Em outras palavras, que uma variedade transgênica de soja era mais ou menos igual a uma variedade desenvolvida por métodos tradicionais. Eureka! Mas ficou uma pergunta no ar: quais os critérios de avaliação para garantir esta equivalência? Isto nunca foi definido e simplesmente a definição virou um axioma que não precisa ser provado. Foi uma resolução política e econômica de uma questão científica. Não era necessário fazer nenhuma avaliação e os transgênicos passaram a ser liberados sem problemas.

Foram poucas, relativamente, as pesquisas independentes das empresas que foram publicadas em revistas científicas e isto tem uma explicação. As empresas proibiram pesquisas sobre seus produtos sem a sua autorização e poucos foram os cientistas que afrontaram os riscos de processos para estudar os produtos transgênicos. Entretanto, estes relativamente poucos estudos indicaram falhas nas pesquisas divulgadas pelas empresas e constataram vários riscos graves para a saúde humana.

Por outro lado, pessoas que se consideraram afetadas por esses produtos começaram a entrar na justiça americana pedindo indenizações e, apesar do imenso poder do exército de advogados das empresas, estas começaram a perder seus casos. No momento a Bayer, que comprou a Monsanto há pouco tempo, está negociando o pagamento de 11 bilhões de dólares em indenizações, reconhecendo que seus produtos têm, sim, problemas e riscos. É a repetição da batalha do tabaco e com o mesmo desenlace. É mais um exemplo significativo do mau uso da ciência.

No Brasil esta batalha foi travada, ainda no governo FHC, pela Monsanto pedindo a liberação do uso da soja transgênica resistente ao uso do agrotóxico glifosato e da posição assumida pela Anvisa e pelo Ibama. Estas agências queriam a aplicação da legislação brasileira que lhes dava a palavra final sobre a liberação, enquanto a empresa queria que fosse aplicado o princípio da “equivalência substancial”. Este impasse foi resolvido no governo Lula pela apresentação de uma lei de biossegurança que atribuía o poder de liberação à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), alijando a Anvisa e o Ibama. A CTNBio foi definida nesta lei como o espaço de avaliação dos riscos, admitindo que eles existem e que, portanto, o princípio mandrake da “equivalência substancial” não era válido. Ficou mais complicado para as empresas, inclusive porque a pressão da sociedade civil forçou o governo e o Congresso a incluir cientistas representando a sociedade civil na CTNBio. Mas no Brasil, país onde existe a lógica conhecida popularmente como “para inglês ver”, a CTNBio ficou com uma composição amplamente majoritária favorável aos produtos transgênicos. A opção brasileira deu mais trabalho para a provação dos transgênicos, mas a maioria (que no começo era para ser de dois terços e depois foi ajustada para maioria simples, para evitar eventuais percalços) dos cientistas simplesmente nem discute as objeções fundamentadas apresentadas pelos cientistas independentes representando a sociedade civil e vota a aprovação de tudo que lhe é apresentado.

O que a sociedade civil pediu sempre foi que a ciência fosse respeitada e que os riscos já identificados em várias partes do mundo fossem avaliados. Mais ciência, e não menos ciência. Ciência independente e não ciência aprisionada pelos interesses das empresas.

Tudo isto nos leva de volta à questão da liberação das vacinas produzidas com tecnologia do RNA recombinante (vulgarmente chamadas de transgênicas) no controle da pandemia de covid. Embora as vacinas fossem “transgênicas”, elas não foram avaliadas pela CTNBio, mas pela Anvisa, e ninguém questionou esta anomalia legal. A agência não questionou riscos oriundos da transgenia, mas apenas a eficácia das vacinas e a inexistência de efeitos negativos imediatos provocados pela sua aplicação nos testes com humanos. Ficou fora do quadro o risco que o uso de um produto transgênico possa produzir nos vacinados, em particular no longo prazo. As empresas farmacêuticas multinacionais, chamadas de Big Pharma, não tem um histórico muito bom em termos de seus procedimentos de segurança, mas não foi por isso que Bolsonaro fez objeções. Como já foi dito antes, ele poderia centrar a vacinação no uso da Coronavac, produzida por metodologia convencional e sem estes riscos não avaliados dos transgênicos. Mas Bolsonaro não queria uma vacina do Dória e se opôs a todas elas.

Deveríamos questionar o uso da AstraZeneca ou da Pfizer? A resposta está em outro lugar. Todo risco de um produto tem que ser avaliado em confronto com os riscos que podem ocorrer com o seu não uso. No caso da pandemia é evidente que era preferível correr o risco de médio e longo prazo, que não conhecemos, do que correr o risco conhecido do descontrole total da pandemia. Se eu estivesse a frente do Executivo teria jogado todas as fichas na Coronavac, mas no quadro em que nos encontrávamos não é absurdo correr o risco do uso das vacinas transgênicas. Este mesmo raciocínio não é válido para as plantas transgênicas que não estão sendo usadas para enfrentar alguma emergência nacional ou internacional e que poderiam esperar até que a boa ciência avaliasse que riscos elas acarretam.

O que todos nós defendemos é a ciência independente, sem vínculos com interesses econômicos, a exemplo dos 2500 pesquisadores que colaboram com o IPCC. Ou os pesquisadores que militam na ONG americana Union of Concerned Scientists que questionam as bases científicas das empresas de produção de produtos transgênicos. Trata-se de movimentos que somam excelência científica na sua busca da verdade sobre as afirmações de empresas que usam pesquisadores comprometidos com interesses econômicos para campanhas defendendo produtos questionáveis. É preciso retornar aos financiamentos da pesquisa pública e isenta das intervenções do capital e do poder do Estado, defendendo o interesse superior da população e do meio ambiente.

Em resumo, o que precisamos é mais ciência e menos ingerência da busca por lucros.

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