Conversas entre a psicanálise e a terapia psicodélica

Disponível no streaming, minissérie documental fornece pista sobre as experiências de cura com os alucinógenos. Ao dissolver a rigidez do Eu, eles permitem elaborar novos sentidos – religiosos ou literários – para experiências e traumas

Ilustração: Caramurú Baumgartner/Superinteressante
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Antes de me dedicar à psicanálise e mesmo durante o exercício de minha função, participei de terapias heterodoxas, que iam desde a Respiração Holotrópica, criada pelo casal de pesquisadores Christina Grof e Stanislav Grof, até a Terapia de Vidas Passadas. Mas as experiências mais interessantes para mim ocorreram quando participei de rituais com bebidas enteógenas. É por esse motivo que celebro o lançamento de uma minissérie na plataforma da Netflix.

Em 12 de julho, foi lançada na Netflix uma minissérie documental a respeito da terapia psicodélica. Intitulada “Como mudar sua mente” (do original em inglês How to change your mind), a minissérie é constituída de quatro episódios. Cada um dos episódios aborda uma droga psicodélica específica (LSD, psilocibina, MDMA e mescalina), o histórico de suas pesquisas, os obstáculos políticos e sociais e seus possíveis usos psicoterapêuticos. A minissérie foi baseada na obra homônima de Michael Pollan, um jornalista muito simpático que também é o apresentador e guia nessa jornada pelo universo psicodélico.

Provavelmente, as informações transmitidas nessa minissérie sejam já conhecidas de muitos usuários de drogas psicodélicas, seja pela sua história, seja pelos seus efeitos neurofisiológicos, ou ainda pelos seus efeitos psíquicos. Também não podemos ignorar que vem se desenvolvendo no Brasil uma longa tradição no uso religioso e psicoterapêutico de drogas psicodélicas e de enteógenos.

No âmbito religioso, podemos mencionar, por exemplo, o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal e o Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra, cujos rituais de ambas as associações incluem a ingestão da ayahuasca, uma bebida enteógena composta de duas plantas amazônicas. Já no âmbito psicoterapêutico, não podemos nos esquecer do Instituto Phaneros, que vem assumindo uma importante função na promoção da pesquisa e do desenvolvimento da Psicoterapia Assistida por Psicodélicos (PAP).

Vale lembrar que existe uma discussão a respeito das coincidências e diferenças entre essas duas terminologias, apesar de a mesma substância poder ser definida como droga psicodélica ou como enteógeno. A meu ver, uma diferença essencial reside na inserção da substância em um contexto laico ou religioso. As drogas psicodélicas fazem alusão ao psiquismo humano e, portanto, a uma experiência psíquica, enquanto os enteógenos nos remetem a experiências espirituais ou religiosas. Sejam como for, se mencionei neste artigo os enteógenos, foi no sentido de sublinhar uma longa tradição brasileira no uso de substâncias que, de alguma forma, alteram a percepção da consciência. Como o tema principal do artigo são as drogas psicodélicas, a partir de agora vou me referir somente a elas.

Os usos e pesquisas com drogas psicodélicas não são uma novidade no Brasil. Qualquer um pode ter acesso a uma bibliografia especializada sobre o assunto, com informações precisas e confiáveis. Mas os relatos de dois pacientes em um dos episódios da minissérie me chamaram a atenção pela possibilidade de trazer um diálogo entre a psicanálise e a terapia psicodélica. A esses dois relatos, acrescento alguns estudos que realizei e algumas experiências que escutei a respeito do uso de drogas psicodélicas. Pretendo, portanto, trazer uma pequena contribuição a um diálogo frutífero entre aqueles dois campos: a psicanálise e a terapia psicodélica.

Em um dos episódios, dois pacientes narraram suas experiências com o uso de psilocibina. Em ambos os relatos, vivências pessoais que haviam sido esquecidas por conta de sua forte carga afetiva negativa eram recordadas pelos pacientes. Em um caso, um aborto praticado há quarenta anos. No outro caso, a morte de um conhecido na adolescência. Sabe-se que a recordação de vivências que haviam sido esquecidas não é incomum naqueles que participam de experiências com psicodélicos. Além disso, essa recordação viria acompanhada de uma sensação de bem-estar e mesmo de experiência que poderia ser chamada de “cura” do sofrimento.

Talvez, a explicação mais imediata para essa associação entre recordação de uma vivência esquecida e experiência de cura aponte para aquilo que foi praticado por Sigmund Freud antes do surgimento da psicanálise e que ficou conhecido como método catártico. O objetivo desse método era conduzir o paciente a recordar experiências que, por serem traumáticas, haviam sido esquecidas. Com essa recordação, os afetos associados a essas experiências eram descarregados, trazendo alívio para o paciente. Apesar da semelhança, haveria uma diferença fundamental entre a experiência psicodélica e o método catártico.

Diferentemente do método catártico, a experiência psicodélica não conduz exclusivamente à recordação de uma vivência esquecida, mas essa vivência esquecida é incluída em uma nova narrativa. De maneira emocionante, os relatos daqueles dois pacientes que fizeram uso da psilocibina não apenas apresentavam recordações de vivências esquecidas, mas integravam essas recordações em uma nova narrativa, muitas vezes permeada de elementos religiosos ou literários fascinantes. A experiência de cura desses dois pacientes passava pela inclusão de uma recordação isolada em uma história maior e mais ampla.

Em alguma medida, para a psicanálise (quando o método catártico já havia sido abandonado por Freud), a experiência traumática aponta para aquela experiência isolada e destacada e, portanto, não integrada na narrativa que cada um faz da história de si mesmo. A intensidade da experiência e a ausência ou carência de recursos do Eu para lidar com ela a conduziriam para aquele ostracismo, para a perda de cidadania. No entanto, a mera recordação da experiência traumática não conduziria efetivamente para uma “experiência de cura”, mas é necessário que essa experiência possa ser contada, possa ser incluída em uma narrativa, estabelecendo vínculos com outras experiências e, consequentemente, adquirindo um novo lugar no tesouro de experiências do indivíduo.

Parece-me, portanto, que as chamadas recordações tão frequentes nas experiências psicodélicas possam ser lidas como esforços de produção de novas narrativas com materiais que haviam sido recalcados. Não se trata pura e simplesmente de (re)integrar no Eu experiências traumáticas que haviam permanecido esquecidas. Trata-se justamente de, por meio de uma experiência de dissolução parcial do Eu com o uso de psicodélicos, permitir que novas narrativas, até então impossíveis em um Eu rigidamente estabelecido, possam ser elaboradas, trazendo um novo sentido a velhas experiências – ou, na melhor das hipóteses, reduzindo-se a importância de um sentido da vida para que então se possa viver.

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