Esperançar e a banalidade do otimismo

Expressão de Paulo Freire foi vulgarizada, sob um progressismo ingênuo, onde o enfrentamento dá lugar à resiliência. Novo livro inspira outra visão: deslocar a esperança do repertório emocional, inserindo-a no vocabulário crítico do século XXI

Grafite no Centro de Vitória. Foto: Século Diário
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Esperançar! As lutas políticas construídas no período de governo de Jair Bolsonaro, notadamente orientadas por uma postura neofascista, levaram a um novo conjunto de demandas e reivindicações sociais em todo o Brasil. No campo da Educação, tais lutas adquiriram um caráter fundamental, seja para demandar uma melhor distribuição política dos insumos para o funcionamento das escolas, seja para fortalecer a gramática das diferenças, tão amplamente atacada por aquele viés conservador que lhe dava consistência. Tornava-se emblemático naquele momento, inclusive, defender Paulo Freire – o patrono da educação brasileira – como referência teórica fundamental para quem pensa a pedagogia crítica na América Latina. Foram tempos duros na militância e no enfrentamento político que ainda foram acompanhados, nos diferentes sistemas de ensino de nosso país, pela implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e pela – problemática – reforma do Ensino Médio.

A eleição de Lula, após alguns meses de intensa mobilização dos setores progressistas, renovou nossas expectativas pela promoção de novos direcionamentos para a educação brasileira; sobretudo, por meio de uma possível suspensão dos direcionamentos políticos neoconservadores e também pela renovação das possibilidades formativas de nossas escolas. Transcorrido o primeiro ano de seu mandato, creio que – enquanto coletivo de educadores e educadoras – necessitamos nos engajar na promoção de balanços críticos, não somente na agenda governamental; mas, principalmente, dos modos como estamos construindo nossa relação com as possibilidades transformativas do futuro. Para fins deste breve texto, em perspectiva de diálogo com as teorias educacionais contemporâneas, gostaria de interrogar nossa disposição a refletir sobre outros futuros educacionais, em perspectiva progressista.

Para começar esse exercício de problematização, necessito iniciar com uma confissão: nos últimos anos construí uma relação bastante desconfortável com o uso indiscriminado (e intenso) da palavra ‘esperançar’ nos discursos das lideranças educacionais. Esse neologismo, muitas vezes posicionado em aproximação com Freire e outros pensadores e pensadoras do campo crítico, passou a incomodar-me pelo vazio de pensamento e de potencialidade crítica que sua mobilização coloca em evidência. Em um momento inicial, sinalizava em minha compreensão o advento de mais um destes muitos clichês que utilizamos nos discursos educacionais que, como lembrava o professor Flávio Brayner há alguns anos, oferecem-nos uma espécie de ‘nostalgia uterina’. Oferecem um lugar seguro às críticas e constroem uma relação de fidelidade com os interlocutores.

Todavia, a leitura recente do livro Esperança sem otimismo, do professor Terry Eagleton (Editora Unesp, 2023), proporcionou-me uma abordagem mais ampliada e me possibilitou entender um pouco mais a respeito dos meus incômodos com os usos do ‘esperançar’. Objetivamente, essa postura política (com marcas pedagógicas incontornáveis) está nas fronteiras de uma banalidade do otimismo. Explico: de acordo com Eagleton, o problema do otimismo é sua autossuficiência: é difícil contestá-lo e, principalmente, pode ser reduzido a uma questão de crença, de peculiaridade de temperamento ou de percepção sobre a vida. Diferentemente desta tendência otimista, Eagleton dedica algumas páginas, recheadas de grande erudição, para nos mostrar que a esperança – diferentemente do que ocorre com o otimismo – “precisa ser sustentada por motivos”, caso contrário poderia ser reduzida a mero pressentimento.

Na condição de estado de espírito, esta forma de otimismo inviabiliza nossa capacidade de análise crítica da realidade, bem como o próprio exercício do pensamento. Explica Eagleton que “o otimismo espalha uma cobertura monocromática sobre o mundo todo, insensível às nuances e às diferenças”. Sob esta banalidade do otimismo é que considero importante diagnosticar esses usos do ‘esperançar’ nas abordagens pedagógicas recentes. Assemelha-se a um ‘progressismo ingênuo’ que reduz o pensamento crítico a questões de mudança, crescimento, inovação, resiliência, abertura ou aceitação (com alguma ironia: gratidão!). Ensaia-se, em minha leitura, um perigoso entrecruzamento entre uma linguagem emocional e uma retórica moral.

O estado atual de nossas políticas educacionais requer de nossos educadores e educadoras novas disposições intelectuais para produzir enfrentamento e resistência. A matriz política do ‘esperançar’ precisa ser ultrapassada: para não ficarmos buscando os recursos para a esperança em um passado idealizado, nem mesmo apostando ingenuamente em um futuro mais ‘gratificante’. Há que se romper com a defesa melancólica da escola do passado (que ‘formava’, que ‘educava de verdade’) – porque trata-se de um argumento idealista e conservador. Mas também precisamos superar os discursos messiânicos da modernização, da inovação e outras formas de fetichizar o futuro. Terry Eagleton, com bastante perspicácia, provoca-nos a recolocar a esperança – de modos distintos – no vocabulário crítico do século XXI.

Os argumentos finais do livro Esperança sem otimismo levaram-me a revisitar Paulo Freire e sua hipótese de uma ‘esperança crítica’, desenvolvida na obra tardia Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Neste texto bastante conhecido, Freire definirá a esperança como uma ‘necessidade ontológica’, ou seja, enquanto uma disposição existencial e histórica para compreender e enfrentar as questões de nossas vidas. Todavia, ao seu melhor estilo argumentativo, elucida: “minha esperança é necessária, mas não é suficiente. Ela, só, não ganha a luta, mas sem ela a luta fraqueja e titubeia. Precisamos da esperança crítica como o peixe necessita de água despoluída”. A esperança ingênua é fatalista e desloca-se das condições históricas da transformação. Por outro lado, acrescenta o educador brasileiro, “enquanto necessidade ontológica, a esperança precisa da prática para tornar-se concretude histórica”.

Enfim, no decorrer deste texto, procurei estabelecer uma reflexão sobre nosso potencial de crítica em relação à educação contemporânea, particularmente a partir da disseminação – no vocabulário progressista – daquilo que Eagleton nomeou como ‘banalidade do otimismo’. O uso indiscriminado da expressão ‘esperançar’, que vem me causando estranhamento, pode revelar um estreitamento de nossas capacidades coletivas para pensar o futuro da escola. A partir de uma releitura da esperança crítica elaborada por Paulo Freire em seus escritos tardios, considero que se torna importante um revigoramento de nossas ferramentas intelectuais e políticas para enfrentarmos a monotonia que predomina em nossa agenda educacional!


Referências:

BRAYNER, Flávio. Para além da educação popular. Campinas: Mercado de Letras, 2018.

EAGLETON, Terry. Esperança sem otimismo. São Paulo: Editora Unesp, 2023.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

SILVA, Roberto Rafael Dias da. Disposições curriculares para uma agenda formativa direcionada ao comum: uma renovação pedagógica em curso?. Revista Latinoamericana de Estudios Educativos, v. 53, p. 47-72, 2023. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/366916401_Disposicoes_curriculares_para_uma_agenda_formativa_direcionada_ao_comum_uma_renovacao_pedagogica_em_curso

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