A deturpação liberal do anarquismo indigenista

Rejeição à ideia de Estado é marca de povos originários, sugeria o antropólogo Pierre Clastres. A figura do líder não é coercitiva, para gerar excedentes, mas entrega ao vínculo comunal – muito diferente de antipatias ao poder de parte do anarquismo moderno

Foto: Ednilson Aguiar/AE/publicada no site da Câmara dos Deputados
.

Em sua magnum opus – “A Sociedade contra o Estado” – o antropólogo francês Pierre Clastres situa, com efeito, o surgimento da instituição Estado a partir do estabelecimento de relações societárias marcadas pela antonímia comando-obediência. Frisa-se, todavia, que o modelo societário analisado por Clastres é o de povos autóctones ou, como ele os concebe, o de sociedades primitivas. O termo “primitivo” não deve ser entendido aqui como uma depreciação evolucionista, sinônimo de atraso e arcaísmo rudimentar. Clastres o emprega para se referir aos povos ameríndios, os quais, diga-se, ele admirava. A ideia de primitividade está mais ligada em sua obra à de originalidade, de preservação de um modo de ser e de aversão à autoridade. São essas sociedades “primitivas” que, segundo ele, rebelam-se contra a nossa concepção de Estado centralizado, expurgando-o da vida social.

Essa é uma digressão relevante, tendo em vista o propósito do autor. A filosofia política de Clastres é indigenista, não-ocidental. Portanto, estender sua teoria anti-estadocêntrica a sociedades não-indígenas, como as judaico-cristãs e anglo-saxônicas, é abrir brechas a incorrência de comparações irrazoáveis, quando não descabidas. O evolucionismo que olha para história humana de modo linear e unidirecional e que divide as sociedades entre primitivas e modernas tendo como marco civilizatório o advento do Estado constitucional é, sob qualquer aspecto, rejeitado com veemência por Clastres. Definir o outro pelo que lhe falta é o jogo do etnocentrismo. Sem rei, lei, sem escrita: primitivos, involuídos, inferiores. Não é o jogo de Clastres.

A definição clássica weberiana de Estado, o monopólio do uso legítimo da força dentro de um determinado território, não se aplica aos Guayakis do Paraguai com os quais Clastres trava contato e convive. Estes não são primitivos por não terem Estado (tal como o identificamos) – e se não o têm, é porque não carecem. Sua organização política é caracterizada não por um poder coercitivo que visa a manutenção da ordem social, mas pelo gosto em disseminar a igualdade entre os membros, aplainando o ímpeto competidor. Coerção e subordinação não são os baluartes do poder em todo e qualquer lugar, afirma Clastres. Há outras formas de organização societária. Algumas das quais dispensam o poder que para tantos é tão caro.

A experiência histórica mostra que só se extrai excedentes do trabalho com emprego da força. É esta força que inexiste, segundo Clastres, nas sociedades primitivas com pendor igualitário. São sociedades que negam o trabalho não por indolência, mas porque não precisam dele. Quando os indígenas sul-americanos se apropriaram do machado do homem branco na agricultura não foi para aumentar a produção, mas para produzir a mesma quantidade de antes em menos tempo. Em nenhum momento associaram a inovação tecnológica – o machado – à maior eficiência na produção de bens materiais. Eles não viam necessidade em produzir mais. Se geram excedentes – e de fato os geram – não é para ganhos comerciais, mas para utilizá-los com fartura ao longo do ano em ocasiões distintas, como festas e rituais.

Na ausência de ambição por posse, não há acumulação privada de bens; ninguém quer ter mais do que o vizinho e todos têm suas necessidades materiais atendidas. E por inexistir desejo por propriedade, inexiste também o desejo pelo poder. No entanto, seria falso supor que são sociedades que vivem de subsistência. A ideia de que o nativo passa a maior parte do tempo angustiado atrás de alimentos é uma falácia. O homem para quem tudo era escasso e cuja vida resumia-se a uma batalha eterna pela sobrevivência, este homem, se existiu, foi nos primórdios da humanidade; não condiz com o modo de vida dos ameríndios. Sociedades índias, em geral, recusam o trabalho por que não o têm como condicionante à realização pessoal. A ideia de pertencer-se ao grupo e por ele sentir-se aceito e admirado, como os demais, é-lhes mais alvissareira.

O culto ao trabalho é próprio das sociedades estatais, haja vista ser o trabalho uma métrica do grau de desenvolvimento social. Os estoques, isto é, o excedente da produção, são um elemento central da produção capitalista, coordenada pelo Estado. Capital e Estado se igualam e cooperam para manterem cada qual sua fração de poder coercitivo. O que Clastres nos diz é que, em contradição com esse modelo organizacional impositivo, a sociedade primitiva desenvolve mecanismos internos que impedem o surgimento das relações coercitivas, de comando e obediência. A própria figura do chefe destoa da liderança que alguém pode imaginar, despido de autoridade para fazer valer interesses que não sejam os da comunidade.

Se se desponta um candidato com tal pretensão, o grupo o repele. Aquele ou aquela a quem todos reverenciam como exemplo de entrega à coletividade, se instrui, é seguido sem comando, sem ordem, sem obrigação, sem medo de ser punido. Se mandasse, não teria o respeito adquirido. Seu prestígio depende da sua generosidade. A despeito do regime econômico, voltado à agricultura, à pesca ou à caça, mais ou menos aberto às trocas externas, não há um poder centralizado numa só liderança. Se a ausência de Estado é o que as define primitivas, também faz delas abundantes, destemidas ante a ameaça da violência. Impressiona que a ausência de normas definidas não impeça o todo de manter-se coeso e funcional conforme os próprios parâmetros. É que o gosto pela distinção não lhes foi incutido e o sentimento de semelhança que aflora do vínculo comunal contribui com as impressões dos que os veem de fora com tamanho estupor e distinção.

Analogias contemporâneas a este modelo de rebeldia estatal hão de ser identificadas em experimentos anárquicos dispersos – todos, pode-se dizer, envolvendo grupos não muito extensos e numerosos. A antipatia ao poder é um sentimento que se comunga, embora parece-me que cada vez menos, não só por hippies e apologistas do amor-livre, como por utópicos do mundo real. Por gente que se permite idealizar um estado de coisas mais compartilhável e disseminado, ou menos degradante, do que o que temos logrado alcançar. É para o que as utopias prestam: não desacreditar. Luigi Fabbri escreveu sobre uma colônia anarquista em Claude Hill na Inglaterra do final do século XIX. Nos EUA de hoje, pululam tentativas libertárias que prometem livrar o indivíduo do grilhão estatal. Entretanto, são muito centradas no indivíduo; associam resquícios de senso comunitário ao socialismo que odeiam.

Num desses experimentos, um grupo de libertários se instalou na pequena cidade de Grafton, no Massachusetts, na divisa com o Canadá, e pôs em prática seu plano de ações anti-estado com base na premissa de que imposto é roubo e de que a sociedade é capaz de se autorregular. Regras e tarifas foram derrubadas. A Prefeitura foi desmantelada. A educação pública virou uma sociedade anônima. A polícia se absteve de perseguir e prender. E os indivíduos puderam, finalmente, respirar em paz sem a coação de achacadores.

O resultado, por fim, foi trágico: a desestruturação dos serviços públicos desencadeou uma onda de assaltos e violência doméstica sem precedentes no município onde até então nada acontecia tamanha calmaria e imobilidade no tempo. Como se não bastasse, ursos-negros começaram a atacar moradores que invocavam seus direitos individuais para despejar lixo à vontade dentro de suas propriedades. Dezenas de feridos foram implorar atendimento na saúde privada, rogando por comiseração e piedade para com os miseráveis os quais não têm a quem recorrer.

O exemplo, é claro, não poderia ser pior se a intenção fosse aludir à teoria de Clastres. Serve, todavia, como alerta sobre o quanto as ideias podem ser deturpadas nas mãos e mentes de seres mal-intencionados.


Bibliografia

CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. Edições Afrontamento. Porto, 1979.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *