Crônica de Cuba, em incerta transição

Vida simples e moradia precária – mesmo para médicos e administradores. Desigualdade, mínima. Há cultura e tempo livre: a lógica neoliberal não invadiu as almas. Grandezas e impasses da ilha, vistas a partir de alguns de seus habitantes

Agromercado em La Habana Vieja, Havana (Foto de Simone Paz)
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Pascoal Spencer tem 65 anos e mora no mais belo boulevard de Cuba, o Paseo Martí (ou Paseo del Prado), próximo ao centro histórico de Havana. É farmacêutico e trabalha na indústria farmacêutica estatal. Para chegar ao trabalho, toma um único ônibus para um trajeto de cerca de 15 minutos. Sua família — irmãos, tios e pais — mora no interior do país. Não é casado e vive sozinho. Tem uma filha adotiva de 10 anos, que também mora no interior com a mãe. Todos os dias Pascoal desce até o Boulevard para se sentar nos bancos públicos e olhar as pessoas. Esse é um costume comum em Cuba: as ruas estão sempre cheias de pessoas, os jovens passeiam até bem tarde da noite e as crianças têm liberdade para andar sozinhas nas proximidades de casa.

Paseo Martí ou Paseo del Prado (Foto de Simone Paz)

Quando cheguei em Havana, esperava conhecer um mundo diferente. Evidentemente, sabia que o país estava se abrindo e procurando formas de flexibilizar sua experiência comunista. O que eu queria ver era uma sociedade livre dos vícios de consumo e dos sonhos de riqueza que no meu país parecem tão naturais. Um dos grandes desafios que tive foi aprender a me libertar dos preconceitos para enxergar, fossem eles os da romantização do comunismo ou os de sua condenação.

Nosso olhar acaba sendo domesticado por filtros cognitivos e a mesma paisagem pode parecer pobreza extrema ou um luxo, dependendo da vontade de quem olha.

A primeira coisa que vi do avião que sobrevoava a porção oeste da ilha foram muitos campos cultivados, muitos pivôs centrais ponteando extensas áreas de cultivo. Dali eu vi poucos rios e pouquíssimas áreas de floresta preservada. Cuba é uma ilha muito plana, a única área com montanhas fica no extremo leste, a Sierra Maestra, de onde Fidel Castro e Che Guevara partiram com sua guerrilha para fazer a revolução em 1959.

Mas, seguindo a crônica, voltemos a outro dos cubanos que conheci: Sergio Reis. É médico, esteve em Marabá (PA) por três anos trabalhando no programa Mais Médicos. Essa foi a sua terceira missão internacional. Também esteve em Gana e Venezuela. Mora em Punta Brava, periferia oeste de Havana, perto da divisa com a província de Artemisa. Para chegar na sua casa, temos que atravessar os bairros ricos da cidade. Um primeiro bairro de casarões do período das usinas açucareiras, região dos hotéis mais luxuosos da cidade. Depois, o bairro das mansões e embaixadas, chamado Miramar. Esses bairros e casas dão testemunho de que a Cuba revolucionária preservou a rica arquitetura de diferentes décadas pré 1960.

Prédio onde mora Sérgio Reis, na periferia de Havana (Foto de Gerson Neto)

Sergio é administrador de uma das Policlínicas da região e mora com Belkis, com quem é casado há 30 anos, em seu segundo matrimônio. Têm dois filhos: Tania, a mais jovem, se interessa pouco por trabalhar ou estudar, repetindo um fenômeno comum para a juventude no mundo inteiro.

Belkis, ginecologista, mulher de Sergio (Foto de Gerson Neto)

Já Manuel, de 30 anos, está desempregado e procura uma atividade como cuentapropista. A abertura promovida pelo governo cubano autorizou a criação de pequenos negócios privados, para os quais parte da juventude volta a sua atenção: pequenos restaurantes, táxis, salões de beleza, cafeterias, mercearias. Assim, cuentapropistas nada mais são do que trabalhadores autônomos, pessoas que trabalham por conta própria e não recebem o pagamento dos salários do Estado.

Belkis, a esposa de Sérgio, também é médica. Suas especialidades são ginecologia e atenção primária. Atende em um consultório que fica dentro do próprio prédio, ao lado da porta de seu apartamento. Ali ela acompanha a saúde de 1.194 pessoas que moram nas proximidades e que conhece com muita intimidade. Em um quadro informativo, atualiza a lápis todas as informações básicas da saúde das suas 323 famílias: 1 gestante, 4 lactantes, 87 diabéticos, 89 asmáticos, 360 fumantes, 46 alcoólatras, 23 obesos, 65 cardiopatas, 11 epiléticos. A enfermeira que trabalha junto com ela mora em outro apartamento do mesmo prédio.

Quadro de informações do consultório de Belkis (Foto de Gerson Neto)

Visitei Havana no final de julho de 2019, apenas um mês depois de que o presidente dos EUA, Donald Trump, proibisse os cruzeiros norte americanos de aportarem na cidade. Todas as semanas, a passagem de dois cruzeiros derramava um rio de dinheiro no Centro Histórico de La Habana Vieja, o bairro antigo onde estão os monumentos mais importantes.

A abertura conquistada no diálogo com os Estados Unidos durante a era Obama trouxe a suspensão de parte do bloqueio econômico e a retomada das relações diplomáticas, mas esfria agora no governo Trump e arrasta Cuba para a crise.

Em minha viagem, a cidade já sentia duramente a falta daqueles recursos e as pessoas que exploram o setor turístico pareciam bastante ávidas por dinheiro. Mas a cidade é muito segura. Não se veem moradores de rua ou assaltantes.

Pra quem quer fazer turismo, recomendo Havana fortemente. Não é diferente de nenhuma cidade turística, com bastante assédio na rua para vender quinquilharias, oferecer táxis, vender cds e amendoim frito. Há também alguns poucos pedintes.

É uma cidade imensa, com mais de 2 milhões de habitantes e mais de 500 anos de fundação. É injusto vê-la apenas como a capital da experiência comunista latinoamericana. Ela tem muitas histórias desde que foi fundada com o intuito de ser o porto de chegada dos corsários espanhóis em 1520, sob o nome de Villa de San Cristóbal de La Habana. Todas essas histórias estão gravadas em suas casas, em suas fortificações medievais, em suas muralhas, igrejas e palácios.

Detalhe de um museu no Centro Histórico de Havana (Foto de Simone Paz)

Porém, em Havana, o que mais chocou foram as condições de vida dos cubanos que visitei: Pascoal e Sérgio. O médico Sérgio vive de maneira simples, em um apartamento parecido com nossos projetos brasileiros de moradia popular. Sua casa não tem luxos e não lhe sobra dinheiro para levar a família para comer em um restaurante no centro da cidade.

Mas Pascoal, o farmacêutico de 65 anos, vive ainda de forma mais simples. Seu apartamento é uma sala de um antigo casarão. A escada de mármore que leva ao terceiro andar, onde ele mora, não é segura. O mármore se quebrou em muitos lugares e alguns degraus perderam o revestimento. O corrimão não existe, em seu lugar passa um cano de água feito de metal amarrado de forma improvisada com arames. O luxo de Pascoal é que seu apartamento tem um belo balcão com vista para o Paseo Martí, onde ele cultiva algumas ervas e guarda uma tina de água, com a qual toma banho, lava as roupas e cozinha. No cômodo único, uma televisão de tubo, uma pia velha com louça muito desgastada, um sofá sobre o qual pendurou um poster de propaganda de perfume com a foto do rosto de uma bela mulher. Em cima do sofá, a cerca de 1,80 metros de altura, sua cama, bem próxima do teto. Às vezes ele dorme no sofá. Todos os dias pela manhã Pascoal passa o café, que retira na mercearia do governo, em uma quantidade para apenas uma xícara. Quando não toma café, tem dores de cabeça. É um homem alegre, receptivo e conversa sobre todos os assuntos. Seu objeto de maior valor é uma toalha com a estampa do Messi, que me mostra com orgulho.

Edificações do Paseo Martí (Foto de Simone Paz)

Percorri outras cidades e minha visita a Santa Clara foi uma grande alegria. Santa Clara é a capital da província de Villa Clara. Sua importância histórica vem da conquista da cidade pela coluna de Che Guevara, a qual abriu caminho para a chegada da revolução a Havana. Em um último esforço para parar a revolução, o presidente Fulgêncio Batista enviou 400 soldados com armas, munições e provisões para combater Fidel Castro em Sierra Maestra, sem saber que Che Guevara já havia chegado a Santa Clara. Quando a composição ferroviária chegou à cidade, Che Guevara havia usado um trator para desalinhar os trilhos da ferrovia. O trem descarrilhou e foi emboscado por apenas 18 soldados. Depois dessa vitória, em apenas 24 horas Fidel Castro já entrava na capital para tomar o Hotel Havana, de onde Fulgêncio Batista fugiu abandonando seus amigos mafiosos norte americanos para trás. Che Guevara está sepultado em um mausoléu suntuoso, nesta cidade.

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Monumento e mausoléu onde está enterrado o corpo de Che Guevara e também o de outros guerrilheiros da revolução, em Santa Clara

Santa Clara tem 200 mil habitantes. É bela e bucólica. Sua praça central, Parque Leoncio Vidal, está sempre cheia de pessoas. A praça é repleta de bancos que são lavados e escovados com água todas as manhãs. Além de muitas pessoas, a praça tem muitos pássaros, que deixam suas marcas nos bancos. O cuidado da cidade com esse espaço é retribuído pela população. No domingo em que eu estive ali, a praça parecia uma festa: no coreto, apresentação da Orquestra Sinfônica Municipal. Os bares em volta são proibidos de vender cerveja. Por onde passei em Cuba notei esse desestímulo ao consumo exagerado de bebidas alcoólicas. Para nós brasileiros, foi uma surpresa incômoda, já que estamos acostumados a beber muito para depois comer. Alguns restaurantes chegaram a negar cerveja, dizendo que havia acabado, e teve um que não nos aceitou mais por causa do muito tempo que eu e meus amigos ficávamos bebendo e conversando antes de pedir a comida.

Próximo ao Parque Leoncio Vidal há uma filial da famosa Bodeguita Del Medio, o bar estatal mais famoso de Cuba. O lugar é uma festa o dia todo. Ali até os músicos são funcionários públicos. No final de suas apresentações eles assinam uma tabela de presença junto com o gerente para garantir o pagamento de seus salários. Também têm liberdade para vender CDs e, como dizemos no Brasil, passar o chapéu. Nesses lugares, cantam a música tradicional cubana, canções como Chan Chan, Candela e Guantanamera acompanhados de violões e maracas.

A alegria e a educação do povo cubano cativam. Mas o que eu fui mesmo ver foi o que sobrou e o que pode nos ensinar a experiência socialista que vivem.

Pessoalmente, me incomodou um pouco o culto às personalidades. Achei exagerado. José Martí, Che Guevara, Camilo Cienfuegos… os heróis nacionais ganham muitos monumentos e menções. De longe, o mais reverenciado é José Martí, que dá nome ao aeroporto de Havana, a avenidas e que ganhou muitos monumentos. Martí era poeta e jornalista e morreu em 1895. Organizou a Guerra Necessária (ou Guerra de 95), uma ação para independizar definitivamente Cuba da Espanha. Por isso, é conhecido como o Apóstolo da Independência. Vi muito poucas menções a Fidel Castro e a Raúl Castro, o que considero sabedoria desses líderes, ao não encorajarem o culto a suas personalidades enquanto vivos.

No dia em que cheguei, um homem me chamou de lado num dos passeios que fiz pelo cais da cidade, sempre cheio de gente passeando com suas famílias. Ele me perguntou de onde eu era e me disse: “Estamos melhor agora, nesse sistema socialista, do que antes, quando Cuba era comunista.”

Ainda assim, muitas pessoas pedem que as mudanças sejam mais rápidas.

O famoso Paseo Martí, em Havana (Foto de Simone Paz)
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3 comentários para "Crônica de Cuba, em incerta transição"

  1. Ilmar disse:

    Sensacional. Belíssima crônica!

  2. Paulo de Almeida Farias disse:

    Seu texto Gerson, definitivamente está consolidando em mim a experiência de que há saída para todos os povos oprimidos pelo imperialismo do capitalismo financeiro com todas as suas mazelas ludibriantes e viciantes, com sua cantiga enebria, que enfraquece o que de mais sublime há em nós seres humanos. Desejo que em todas as partes da terra, a solidariedade e a coragem de ser livres, dê ao homem a capacidade de construir um viver em bases que respeite a nossa dignidade. Espero que nos organizemos para que os embargos e a negacão do acesso a relações justas entre os povos sejam neutralizadas, e tenhamos um mundo onde a liberdade, a igualdade e o amor entre os seres humanos possa florescer.

  3. Washington Almeida disse:

    Adorei, seu trabalho Gerson. Sempre lembrar de Cuba, totalmente excluída de seu envolvimento num regime louco que não a levou a lugar nenhum, que ela existe e continuará existindo me traz muita alegria,
    me alimentando dia pos dia o sonho de poder lá voltar. Lá estive em março deste ano mas, de tanta ansiedade que estava, não aproveitei o quanto deveria. Criei assim, uma cruel dívida comigo. É o encantamento que veio atrasado ficando meio perdido no ar.
    Mas lá voltarei, Deus há de me permitir, e logo, tenho certeza disso.

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