A teoria química da depressão está em xeque

Doença não é causada apenas por fatores fisiológicos, mostra novo estudo. É preciso entender os traumas, história íntima e as estresses sociais – como crise econômica e tensões políticas – em vez de só enriquecer a indústria farmacêutica

Ilustração: SAÚDE é Vital/Editora Abril
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Título original: Para uma nova abordagem da depressão

A publicação de um artigo na revista científica Molecular Psychiatry, no último dia 20, deu o que falar. De acordo com os autores do estudo, não existem evidências seguras a respeito da associação entre depressão e desequilíbrio químico cerebral, mais especialmente baixos níveis de serotonina. Apesar de haver um certo discurso psiquiátrico que faz uma verdadeira apologia dessa tese e, consequentemente, do consumo de medicamentos psicotrópicos, a associação entre depressão e níveis de serotonina deve ser questionada.

A avaliação crítica conduzida pelos autores do artigo, contudo, não conduz a um completo abandono de qualquer relação entre depressão e fisiologia orgânica. Ainda podemos verificar, por exemplo, se outros neurotransmissores ou componentes químicos estão em jogo na causação da depressão. Para lidar com depressões resistentes ao tratamento, por exemplo, alguns psiquiatras têm receitado aos seus pacientes a escetamina intranasal. Diferentemente dos psicotrópicos tradicionais, a escetamina não age nas monoaminas, como a serotonina e a dopamina, e sim no glutamato, aumentando ou restaurando as conexões sinápticas. Tanto as monoaminas como o glutamato são neurotransmissores, mas têm havido resultados interessantes quando a medicação é dirigida para o glutamato.

Por outro lado – e isso é o mais importante –, a crítica incide mais decisivamente na exclusividade da explicação química da depressão. Tanto as monoaminas como o glutamato são neurotransmissores. Não se trata pura e simplesmente de ajustar a medicação, substituindo um neurotransmissor por outro, para preservar a teoria química da depressão. Fatores pessoais, ambientais e sociais, apenas para mencionar três exemplos, também devem ser levados em consideração para o entendimento do estado depressivo. Dito de maneira clara e direta: depressão não é uma doença exclusivamente fisiológica, química ou neurocerebral.

Dessa maneira, o artigo fundamenta algumas questões que já vem sendo levantadas há algum tempo. Em primeiro lugar, a associação entre o diagnóstico exclusivamente químico da depressão e o enriquecimento das indústrias farmacêuticas. Cada vez mais fica escancarado de que modo o capital farmacêutico financiou e se beneficiou da chamada teoria química da depressão. Em segundo lugar, ao se tornar exclusiva para a explicação da depressão, a teoria do desequilíbrio químico cerebral excluía do entendimento desse adoecimento fatores que passavam ao largo do biológico. A depressão volta a ser entendida em sua relação com a história mais íntima de um paciente, como o término de um relacionamento ou a morte de um filho, mas também em sua relação com as interações sociais, como o aumento crescente do desemprego e o estreitamento da experiência política e coletiva.

Outra consequência importante do artigo é a desconstrução do estereótipo de culpabilização do depressivo. É verdade que a teoria química contribuía para eliminar o estigma de que a depressão fosse uma falta moral para se tornar uma carência química. Por outro lado, continuava desconsiderando as relações do paciente com sua história, com o ambiente e com a sociedade. Reconhecer, por exemplo que determinado estado depressivo estava associado, de certa maneira, com as péssimas condições de trabalho estava fora de cogitação. Ao contrário: o uso muitas vezes indiscriminado da medicação visava muitas vezes manter a funcionalidade e a produtividade do trabalhador, ainda que em situações profissionais degradantes.

Notem que, dessa maneira, ao reduzir a depressão a um desequilíbrio químico, o paciente podia se ver desencorajado a vislumbrar que, em alguma medida, seu sofrimento também estava associado com um contexto que demandava submissão cega a exigências profissionais indignas. O mesmo pode ser aplicado em situações um pouco diferentes, como a convivência em um ambiente familiar desorganizado. Seja num caso, seja no outro, cai por terra o estigma que culpabiliza o depressivo pelo seu adoecimento. Por outro lado, indica que sua participação no processo terapêutico é fundamental. E essa participação pode ser feita de diferentes maneiras, como o engajamento em atividades físicas, a transformação do ambiente familiar, a mudança de trabalho, mas, acima de tudo, a escuta de suas queixas.

As queixas daquele que sofre de depressão e as explicações fornecidas por ele para explicar esse mesmo estado devem ser levadas em consideração. Essa participação vai desde a escolha dos métodos terapêuticos (medicamentos psicotrópicos, enteógenos, psicodélicos, psicoterápicos, corporais etc.) até mesmo a forma de engajamento nesses mesmos métodos.

Vale lembrar que os próprios autores do artigo não recomendam a interrupção imediata da medicação naqueles que fazem uso dela. Na verdade, a medicação continua sendo ainda um aliado importante no tratamento de algumas depressões – sim, no plural, pois a depressão é uma entidade clínica que não pode ser desvinculada do histórico biológico, individual e social do paciente e do seu entendimento a seu respeito. Mas mostra também que existe algo na depressão que deve ser levado em consideração para além de sua mera fundamentação química, algo que não pode ser reduzido a fatores puramente bioquímicos.

Muito provavelmente, não haja aqui muita coisa além daquilo que já foi dito em outros meios de comunicação a respeito das conclusões do artigo que comentamos. No entanto, a importância desse artigo é fundamental para que o entendimento da depressão possa finalmente se emancipar do exclusivismo fisiológico e incluir o paciente em sua própria melhora, em sua própria cura. Muitos profissionais já fazem isso, mas, agora, outros tantos, resistentes a uma abordagem mais ampla da depressão, poderão ser levados a fazê-lo.

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