Educação: um convite à poética da curiosidade

A trajetória de uma intelectual brasileira por meio do seu cotidiano em salas de aula. O caminho árido da teoria à prática. A batalha contra as lógicas utilitaristas. A busca de novo horizonte docente: a “busca desinteressada” por conhecimento

Imagem: : Aryanna Oliveira/Revista Magma
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Iná Camargo Costa em entrevista a Carlos F. B. Martin

Propus à professora Iná Camargo Costa uma entrevista que desdobrasse falas de outras entrevistas concedidas por ela nos últimos anos. Infelizmente a conversa não foi presencial. Como a pandemia não acabou, todo o cuidado é pouco e, por isso, Iná anuncia que, até segunda ordem, dada pelo Butantã ou pela Fiocruz, está em “prisão domiciliar voluntária”.

Ela é professora aposentada da FFLCH da USP e autora de vários ensaios e livros sobre o teatro brasileiro. Suas pesquisas sobre a obra de Bertolt Brecht são emblemáticas. Costa também militou em vários grupos de teatro de São Paulo e também assessora o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na área de Cultura (leia aqui seus textos publicado em Outras Palavras). Embora não tenha ficado de fora, o teatro não foi o centro. A entrevista girou em torno dos eixos formação, educação e ensino.

Em depoimento sobre o movimento “Arte contra a barbárie”, você diz que vem de uma família de professores. Gostaria de começar por aí. Poderia falar sobre esse ambiente? Como se refletiu em sua formação?

Minha avó materna era professora primária, formada em Itapetininga; minha mãe e duas de suas irmãs também eram, todas formadas na então Escola Normal de Botucatu. Nas nossas casas havia livros de todos os tipos e a conversa (não se ouvia rádio nem havia televisão, é bom lembrar) sempre acabava envolvendo poesias, romances etc. Declamar ou ler “poemas favoritos” era muito comum. Minha mãe costumava reunir as filhas e crianças da vizinhança e lia histórias (Monteiro Lobato, por exemplo) para nós após o jantar. O efeito em mim foi produzir uma vontade louca de aprender a ler, para não precisar depender daquelas sessões para saber o fim das histórias. Dois desdobramentos adicionais. Primeiro, eu mesma queria ser alfabetizadora e, para isso, após o ginasial, fiz o Curso Normal de Formação de Professores Primários. Segundo, tornei-me uma leitora voraz para sempre e, por isso, sempre gostei de estudar, independente do conteúdo.

A atmosfera da leitura era criada por mulheres. Há uma ancestralidade em torno da educação. Avó, mãe, irmãs. Há outras referências não menos decisivas para você?

No capítulo magistério entram todas as professoras que tive no Grupo Escolar e também o ambiente caseiro, muito frequentado por outras professoras, normalistas e professoras recém-formadas que trabalhavam nas chamadas “escolas isoladas”, que eram as escolas existentes nas fazendas do município, vinculadas ao Grupo. Minha mãe, chamada de “vó” por estas últimas, costumava recebê-las para ajudar na elaboração dos chamados “resumos” mensais. Eu achava aquelas reuniões muito animadas e acabei participando delas, inclusive para ajudar as moças. Quando este trabalho apareceu no curso normal como matéria, eu já sabia do que se tratava. Enfim, acho que minha relação com o magistério acabou tendo um caráter de tipo “corporação de ofício”.

Chama a atenção, em sua formação, a clareza de visão desde o curso normal até a graduação em Filosofia. Por clareza de visão quero dizer a consciência do que fazer. Do caminho que deveria seguir. Você quis, por exemplo, ser alfabetizadora. Como despertou para isso?

Em parte já respondi à pergunta, mas posso detalhar. A experiência de ler por conta própria foi tão decisiva em minha vida que achei que deveria socializá-la. Isso porque, como minha família é de trabalhadores (classe média baixa), todas nós teríamos que ter uma profissão e começar a trabalhar o mais cedo possível. Meus pais só tinham condição de nos financiar até o nível colegial. Na época, as opções eram magistério, secretariado, contabilidade etc. Fazer colegial com vistas à universidade (clássico e científico) era opção descartada para gente como nós numa cidade que só tinha escola pública até o ginasial. Assim, fui para o magistério tanto por disposição mental quanto por necessidade. Mas, como já expliquei mais de uma vez, quando terminei o curso Normal não havia escola onde eu pudesse lecionar. Então fui fazer Letras com o novo plano de ser professora de língua portuguesa, ao mesmo tempo que procuraria algum emprego que, pelo menos, pagasse um salário para cobrir minhas despesas básicas. E comecei a trabalhar ao mesmo tempo em que estudava na faculdade. Só consegui ser professora de língua portuguesa alguns anos depois de formada, quando já estava na graduação de Filosofia.

O caminho dos estudos está ligado a isso: Normal, Letras e depois Filosofia, sempre em função de continuar ou aprofundar o que já havia estudado.

Havia em seus pais uma consciência de classe que os fazia ao mesmo tempo se situar em meio à luta político-social e orientar os filhos para a vida? Quando você fala que vem de uma família de classe média baixa parece que traz uma consciência de berço.

Nada disso! Minha mãe vinha de uma família (os Camargo) ligada à política estilo República Velha. Meu avô, que não conheci, foi uma espécie de funcionário do antigo PRP (Partido Republicano Paulista) e, pelas histórias que ouvi, era extremamente conservador. Meu pai era “apolítico” por razões práticas: quando descobriu que era “desertor” do exército português (por ser imigrante e não ter se apresentado – vá saber a que instituição! – para o serviço militar), decidiu não se naturalizar brasileiro. Sendo estrangeiro, ora pois, não precisava se envolver em política e se orgulhava disso. Com isso, ficava “bem” com os políticos da cidade e assegurava os trabalhos que podia prestar à prefeitura, por exemplo, independente do partido no poder. Resumindo: pai e mãe mantinham uma distância prudente das questões políticas.

Eu só comecei a entender um pouco de política a partir dos confrontos com a ditadura de 1968 em diante e, por isso mesmo, me inclinei para a esquerda. Minha autoclassificação sociológica decorre de uma compreensão da estratificação de classes no Brasil que só alcancei depois de me tornar marxista. Independente disso, era fácil de perceber na minha cidade que não fazíamos parte da classe dominante, pois não éramos ricos, nem éramos tão pobres quanto, por exemplo, os trabalhadores das fazendas (que eram intermitentes). Logo, éramos classe média. Mas só vim a conhecer “cientificamente” a segmentação da classe média quando tive contato com pesquisas de mercado, já trabalhando em São Paulo.

Imagino que a leitura da obra de Paulo Freire tenha sido decisiva quando o desejo de ser alfabetizadora estava na ordem do dia. A despeito da censura, houve esse contato?

Ao contrário: só vim a saber de Paulo Freire quando morava em São Paulo. Lembre-se de que me formei no ginasial em 1966 e comecei o Normal em 1967, em plena vigência da ditadura, com Paulo Freire no exílio. Ele não era uma referência para gente como nós naquele fim de mundo. Claro que, quando li os livros dele, me identifiquei bastante com o que ele propunha, especialmente com a noção de respeito ao repertório dos alunos. Mas isso eu já tinha aprendido com minha mãe e minhas tias professoras. Uma delas costumava nos ensinar as gírias que aprendia com seus alunos, como “berro” para designar revólver e “teco” para designar tiro. Outra informação relevante são as disciplinas do curso Normal voltadas para a experiência de dar aulas. Além de Psicologia, tínhamos Prática de Ensino nos três anos. Nesta última, aprendíamos até como usar a lousa e a treinar a mão para ter a chamada “letra didática”, um pouco mais exigente que a mera caligrafia, pois os alunos precisavam ler o que escrevêssemos sem nenhuma dificuldade. Havia as aulas teóricas, nas quais se falava da importância de se fazer entender pelas crianças. Além disso, fazíamos estágio. No primeiro semestre do primeiro ano, era apenas estágio de observação. Fazíamos as anotações, depois os relatórios e depois discutíamos com a professora. A partir do segundo semestre, já começávamos a experiência de dar aulas. Primeiro, aulas rápidas e, depois, aulas mais aprofundadas, dependendo do assunto e da classe. Como o meu objetivo na vida era fazer aquilo profissionalmente, minha dedicação a esta parte dos estudos era completa. E eu gostava mesmo de fazer tudo aquilo. Por último: havia uma espécie de pacto entre a professora de Prática de Ensino e as professoras de primeiro a quarto ano, pois estas sempre nos tratavam com extrema boa vontade e nos ajudavam em tudo, sem parecer que estávamos atrapalhando o seu trabalho. Isto aconteceu no Instituto de Educação Horácio Soares de Ourinhos (IEHS), no ano de 1967. Quando passei a estudar em Botucatu, em 1968, na mesma escola em que minha mãe se formou, mas agora com o nome de Instituto de Educação Dr. Cardoso de Almeida, o IECA, cheguei a dar até aula de Educação Física para as crianças!

Você destaca um ponto que me parece fundamental e, hoje em dia, tem sido cada vez mais discutido: a importância de considerar o repertório do aluno. E a prática de ensino a que você se refere é outro. Ela leva em conta a sala de aula. Em tais ações estaria o segredo de um ensino que não seja utilitarista porque baseado no trabalho que pensa a sua materialidade?

Acredito que sim. Salvo por ilusão retrospectiva, minha impressão como estudante sempre foi a de que estávamos sendo preparados para uma vida em que a cultura (portanto a leitura) era muito valorizada. Uma das coisas que me impressionavam era o empenho das professoras do grupo escolar em não deixar nenhum aluno “para trás”. Isso fazia parte de uma relação não “utilitarista” que, embora de modo sutil, caracteriza a materialidade do trabalho do bom professor tal como pensado naqueles longínquos anos de 1950 e início da década de 1960.

Você menciona em entrevista à revista Opiniães que leu a obra de Antonio Candido por sua conta, uma vez que no curso de Letras em Botucatu, com exceção da professora da disciplina de literatura portuguesa, não se falava em Antonio Candido. Por que ele “não era assunto”?

Por simples ignorância de intelectuais provincianos. Já a professora de Literatura Portuguesa e de Teoria Literária, Maria Lúcia Dal Farra, era uma espécie de integrante do fã clube dele e, quando havia oportunidade, fazia alguma referência que tratei de verificar. Mas eu já gostava do trabalho dele desde 1969, quando estava no segundo ano do curso Clássico e fui procurar na biblioteca algum livro de história da literatura brasileira. Foi quando li Presença da literatura brasileira, organizado por ele e Aderaldo Castello. Acho que foi amor (intelectual) à primeira vista. Depois disso, passei a ler qualquer coisa dele que encontrasse, dos Parceiros do Rio Bonito (que fica perto de Botucatu) a Formação da literatura brasileira.

Quais outros nomes não eram assunto?

Autores marxistas, por exemplo, não podiam nem entrar em bibliografia de trabalhos (mesmo quando lidos por nossa conta – geralmente os trabalhos eram feitos em grupo). Literatura moderna, de Mário e Oswald de Andrade em diante, não fazia parte do repertório dos nossos professores. Em compensação, havia uma espécie de enxurrada de estruturalistas, existencialistas e outras correntes que então estavam na moda. Líamos Saussure, Foucault, Todorov…

Não quero desanimar, mas a voga estruturalista e pós-estruturalista está na crista da onda. Aliás, se pensarmos o lugar da teoria crítica, para fazer uma comparação em termos de recepção, tem sido cada vez mais enfático o olhar enviesado para ela. O que você pensa desse estado de coisas?

Sem querer escrever um ensaio sobre os nossos retrocessos mentais, começaria dizendo que, ao contrário do que dizem os integrados (muita esquerda aí incluída), a ditadura venceu em todos os âmbitos. A destruição do sistema educacional, que ameaçava se democratizar no final dos anos 1950, é um dos capítulos menos examinados da nossa história. Mais ainda: neste capítulo, o Estado de São Paulo sempre esteve na vanguarda da barbárie capitalista. Sou testemunha do processo de analfabetização introduzido em nosso Estado ainda antes da ditadura começar a dar as cartas neste âmbito, o que só ocorreu com a elevação da Dra. Esther de Figueiredo Ferraz (reitora do Mackenzie) a Ministra da Educação. Afirmo, sem correr o risco de ser acusada de adepta de teorias da conspiração, que a ditadura generalizou para o Brasil um processo iniciado no Estado de São Paulo, em que o objetivo da educação passou a ser o de formar pessoas incapazes até mesmo para o pensamento logicamente organizado.

Isto posto, não me admira a sua informação de que até hoje os estruturalismos e conexos são hegemônicos na vida acadêmica. Até porque também está provado que países como o Brasil estão classificados entre os que apenas consomem a produção intelectual importada (qualquer que seja o nível) e depois a ficam simplesmente papagueando. É sina de país que nunca saiu da condição de colonizado. Lamento informar que isso também vale para muita coisa que se apresenta como adesão às teorias críticas.

Feliz ou infelizmente não posso falar muito sobre isso, pois estou afastada dessa lama há tempos.

Numa das últimas entrevistas, Antonio Candido disse que “a clareza é um respeito pelo próximo, um respeito pelo leitor”. Seria arriscado dizer, nesse sentido, que a falta de clareza, sendo um desrespeito pelo leitor, é sinal de conservadorismo de quem escreve?

Acho que sim, mas convém acrescentar que a falta de clareza expressa também confusão e às vezes ignorância por parte de quem escreve.

Além da clareza, sobressai em seus textos o humor. Por assim dizer, você apresenta uma língua tão afiada quanto a de Oswald de Andrade. Haveria parentesco com ele?

O primeiro modernista que li foi Mário de Andrade, Macunaíma. Ainda estava no Clássico. Achei uma delícia! Já perdi a conta das vezes que reli. Oswald apareceu depois e adorei também. Quem pode resistir a um dos menores e mais fulminantes poemas da língua portuguesa como amor (título) humor (o poema)? Mas, se houver parentesco, a explicação deve ser encontrada em pelo menos dois planos. O primeiro é a minha adesão ao “espírito modernista” desde a primeira leitura de Macunaíma, seguida das obras de Mário, Oswald, Guilherme de Almeida e outros. E o segundo é o espírito de contradição, que gosto de chamar de “espírito de porco”, e Hegel explicou ser a essência do pensamento dialético. Desde o próprio Hegel, mas sobretudo desde Marx e Engels, o humor é ingrediente obrigatório na escrita de quem se interessa por todo tipo de contradição. A poesia de Oswald de Andrade é incompreensível para quem não tem senso de humor. Alguns exemplos: “a matraca alegre da semana santa”; “Ide a São João del Rei/ de trem/ Como os paulistas foram/ a pé de ferro”; “– Qué apanhá, sordado?/ – O quê?/ – Qué apanhá?/ Pernas e cabeças na calçada.” Ele mesmo tem um texto sobre sátira na literatura brasileira que eu adoro. Mas se começarmos a falar da minha paixão por Oswald, não vamos nunca mais acabar esta conversa!

É mais comum ouvir dizer que Nelson Rodrigues é o responsável pela criação do teatro moderno no Brasil e menos comum ou mesmo incomum ouvir que Oswald de Andrade foi o ponta de lança. Oswald teria sido o precursor? Ou haveria outro nome que deveríamos lembrar?

Você pode não acreditar, mas um dos pontas de lança do teatro moderno no Brasil foi Joracy Camargo. Ele deve ter sido excluído desta história por ser ligado ao Partido Comunista. Outro ponta de lança de extremo interesse é Álvaro Moreyra. Também ninguém fala a respeito do trabalho dele, assim como ninguém fala nos textos moderníssimos de Sérgio Buarque de Holanda e Mário de Andrade. Oswald só entra no páreo na década de 1930. E, como se sabe, suas peças ficaram no limbo. Só se começou a falar nele como dramaturgo depois que o teatro Oficina encenou O rei da vela. Mas ele ainda escreveu peças em francês, acho que antes da Semana de 22.

Sobre a clareza de visão de que falei anteriormente, creio que ela também se observa na postura diante do estudo, que nunca esteve em você associada a qualquer utilitarismo. Em outras palavras, o motivo que a leva a se integrar, por exemplo, ao grupo de pesquisa coordenado pela professora Otília Beatriz Fiori Arantes foi participar do debate. Foi o eixo em torno do qual você se orientou em sua formação? Ou seria exagero dizer?

Acho que sua impressão pode ter fundamento. Por exemplo: quando fui para a graduação em Filosofia, já trabalhava e não tinha nenhuma pretensão de vir a ser professora universitária. Minha ideia era entender melhor os fundamentos lógicos da gramática e as origens do pensamento marxista, ou socialista, para incluir Antonio Candido. A única certeza era que nunca iria parar de estudar. Por isso aproveitava todas as oportunidades para estudar matérias do meu interesse. Para você ter ideia da variedade, cheguei a fazer parte de um grupo, tão informal quanto o da Otília, de professores e alunos que se reuniam regularmente para ler a Crítica da razão pura, de Kant, pelo simples interesse em continuar estudando este filósofo, que também é uma das minhas paixões até hoje.

Por outro lado, a ida para a Filosofia ainda assim tinha um componente utilitário (de segundo grau, digamos): eu queria estudar Lógica, por exemplo, para poder ensinar gramática aos meus alunos de quinta a oitava séries, isto é, queria saber do que eu mesma estava falando quando precisasse explicar a verdadeira diferença, que é de ordem lógica, entre as orações coordenadas. Nenhum dos professores que tive, e olhe que alguns eram excelentes, foi capaz de me explicar isso. Por ter estudado um pouco de Lógica no Clássico, desconfiava que o fundamento era a teoria aristotélica do silogismo. Pois até a leitura da obra de Kant me ajudou a resolver o problema (me refiro ao capítulo da Crítica, acima referida, em que ele trata diretamente das categorias de Aristóteles), uma vez que na graduação tive que ler Aristóteles por conta própria, já que a disciplina em que me inscrevi começava diretamente pelo cálculo proposicional, ou pelas modernas teorias da lógica.

Deveríamos estudar a lógica aristotélica para resolver – de uma vez por todas – as deficiências nos estudos de língua portuguesa no Brasil?

Uma vez, participando de um seminário com professores de língua portuguesa da rede pública, disse com todas as palavras que os cursos de Letras deveriam ter, pelo menos, um semestre de aulas de Lógica. Penso que não faria mal a leitura bem orientada do Organon, que são os tratados de Lógica de Aristóteles, pelo menos até os “Primeiros analíticos”, onde está a exposição do silogismo. Mas acho que não é perda de tempo ler a parte final, a dos “argumentos sofísticos”… E para entender questões ainda mais básicas, como predicação verbal e congêneres, alguns autores modernos também ajudariam bastante, como Bertrand Russell.

Pergunto-me se a busca desinteressada (no melhor sentido da palavra) pelo conhecimento seria um traço da estudante Iná Camargo Costa, ou seria um traço do estudante nos anos 1970.

A estudante a que você se refere tinha inúmeros colegas, de clássico, científico, e mesmo das faculdades que havia em Botucatu, que também se dedicavam à “busca desinteressada” por conhecimento. Eu me lembro de conversas infindáveis com um desses amigos, já estudante de Física na USP, sobre pesquisas com fótons e outros tópicos relativos a partículas atômicas. Outro exemplo: uma colega de Clássico era tão fanática por mitologia grega que me contaminou e passamos a estudar assuntos relativos a tragédias gregas. Como resultado, hoje ela é professora de grego na França e se formou em Letras Clássicas na USP. Mas não sei se nossa experiência é generalizável, embora entre os estudantes de nível colegial no IECA a disposição para o estudo, até mesmo de questões que não faziam parte do currículo, fosse mais ou menos comum – pelo menos essa era a minha impressão.

Qual seria o perfil do estudante entre os anos 1980 e 2000? Poderia falar um pouco da experiência em sala de aula quando foi professora na Universidade de São Paulo?

Para ser capaz de responder a sério esta pergunta, precisaria ter eu mesma um perfil mais sociológico, digamos assim. Em todo caso, foi possível perceber uma gradual mudança para pior ao longo dos anos de 1990: para lembrar de um episódio que me traumatizou para sempre, em um dos anos em que lecionei IEL (Introdução aos Estudos Literários), o programa incluía Macunaíma de Mário de Andrade. Duas ou três semanas depois de iniciado o tópico, me dei conta de que nem metade da classe havia lido o livro! Até hoje não entendo como alguém pode entrar para o curso de Letras sem se dispor a ler um romance que é assunto de aula. Desconfio que a situação só piorou de lá para cá.

Na educação básica o problema não é diferente. Como lutar contra isso?

Quando atuava na rede pública, tinha algumas ideias a respeito. Mas passei para o terceiro grau (universidade) em meados da década de 1980. Faz muito tempo! Não vou opinar sobre uma realidade da qual estou afastada há mais de quarenta anos…

O que faltava aos alunos? E o que não faltava? Penso os desdobramentos do neoliberalismo na educação brasileira e na relação dos alunos com a sala de aula.

Como minhas aulas eram de Introdução aos Estudos Literários para o primeiro ano, essa questão não se colocava, pois partíamos do princípio de que toda a parte teórica seria novidade para alunos saídos do Colegial. Pelo menos nas minhas classes não faltava curiosidade para a poesia (primeiro semestre) ou para as narrativas (segundo semestre). Além disso, eu tratava de contrabandear textos de teatro épico no segundo semestre, mostrando o quanto as explicações de Anatol Rosenfeld eram produtivas para se ler qualquer tipo de texto, desde que abandonadas as expectativas dramáticas, hegemônicas em nossa vida mental até hoje, e houvesse uma aproximação ao texto levando em conta a teoria dos gêneros, não em caráter normativo, mas em caráter explicativo. Assim, um poema pode ter mais de uma voz, um romance pode ter uma única voz e uma peça teatral pode ter um narrador. Ou, para falar na língua da teoria dos gêneros tal como exposta por Anatol Rosenfeld: um poema pode ser dramático, um romance pode ter marcas do gênero lírico (principalmente o moderno) e uma peça teatral pode ser épica. Mais ainda: um texto literário pode ter aspectos de todos os gêneros literários e, quanto mais treinarmos a cabeça para identificar as diferenças, maior será a nossa capacidade analítica.

Como me aposentei em 2003, não deu para perceber se e como o neoliberalismo tomou conta das cabeças, embora na própria instituição ele já estivesse dando as cartas (basta lembrar – de preferência com horror – da tentativa de dividir a FFLCH em várias unidades). Mas nos últimos anos percebi uma onda evangélica ascendente, ainda que fraca. Até hoje tenho arrepios quando me lembro da informação de que havia grupos de estudos bíblicos nas Letras.

Para Antonio Candido, somente os professores mais experientes deveriam se encarregar das disciplinas de Introdução aos Estudos Literários, pois elas se destinam aos alunos do primeiro ano. O foco não seria outro senão o aluno. Ou melhor, a formação do aluno. Ainda havia esse pensamento quando você deu aula na USP?

Embora nenhum de nós que começamos a trabalhar no ano de 1989 tivesse muita experiência, a orientação que recebemos dos colegas veteranos foi claríssima nesse sentido: a prioridade era a formação dos alunos e isto significava prepará-los para as demais disciplinas de Letras e promover o interesse por um repertório literário extremamente exigente, inclusive do ponto de vista teórico. Mas como não sou muito comprometida com processos de avaliação, não posso dizer se cumprimos bem a nossa tarefa.

O que significa dar aula? E o que não significa? Penso os desdobramentos do neoliberalismo na educação brasileira e na relação dos professores com a sala de aula.

Descontando a minha verdadeira paixão pela experiência, acho que dar aula significa transmitir ao aluno aquilo que você sabe, da melhor maneira possível, e ao mesmo tempo estimular nele a disposição para pensar por conta própria, que é outra maneira de designar o espírito crítico. Uma das coisas que mais me encantou na leitura dos textos de Kant foi justamente a resposta que ele deu à pergunta “o que é esclarecimento?”: ele escreveu que esclarecimento é ousar saber. Ousar saber significa inclusive correr riscos, enfrentar autoridades. Quando queria ser apenas alfabetizadora, já era nisso que pensava: ensinar a ler e escrever, ou transmitir o código da escrita, seria proporcionar às crianças a chance de ter as mesmas experiências que eu tive lendo o que caísse na minha mão. Depois que você aprende a ler, o resto fica por sua conta, inclusive pensar por conta própria.

O que fazer quando a falta de interesse predomina? Transmitir ao aluno aquilo que se sabe não parte do princípio de que ele esteja interessado?

Quando trabalhamos com crianças e jovens, falta de interesse se resolve com duas estratégias amplamente ensinadas pela Psicologia Educacional: motivação e incentivos. Esta matéria fazia parte do currículo do Curso Normal desde o primeiro ano. Nunca tive dificuldade para “resgatar” a atenção dos meus alunos.

Quanto aos estudantes universitários, este problema não se colocava para mim: nunca me preocupei com os desinteressados porque partia do princípio de que pelo menos alguns dos alunos tinham interesse. Do contrário, não estariam ali, ainda mais num curso de Letras. Era para eles que eu preparava as aulas com o máximo empenho. Os desinteressados tinham várias opções, a começar por cair fora, que seria a atitude mais honesta. Uma segunda seria “pegar carona” com os interessados e correr atrás do prejuízo. Há muitas outras possibilidades, mas não pretendo dar ideias a vagabundos.

Em entrevista à revista Magma, você diz o seguinte: “E também avisava todo mundo logo no primeiro dia de aula que eu era discípula ortodoxa de Antonio Candido, Anatol Rosenfeld e Roberto Schwarz”. Falar assim tinha alguma intenção? Fazia parte de uma ação pedagógica?

Como a universidade brasileira, por suas características colonizadas, é muito cosmopolita e tende a ser uma verdadeira caixa de ressonância de teorias importadas, a tática (de choque) de avisar os alunos logo no primeiro dia que eu não tinha nada a ver com as pós-modernices que estavam na moda – e tínhamos o compromisso de apresentar a eles –, correspondia à intenção de, pelo exemplo, mostrar que você se desempenha com um pouco mais de coerência e consistência quando sabe quem é a sua turma. Com isto quero dizer que expunha, lealmente, as diversas teorias do cardápio, mas tinha uma opinião crítica sobre elas e esta opinião tinha, entre outros, Antonio Candido e Anatol Rosenfeld como referência. Mas não sei se isso produzia algum efeito.

Quais eram os critérios quando você preparava uma aula?

A preparação de todas as aulas sempre seguiu o exemplo de Antonio Candido no livro Na sala de aula, sem contar que o próprio livro apresenta material para muitas aulas. Sempre trabalhei com o capítulo “Carrossel”, que analisa o “Rondó dos cavalinhos”, um poema de Manuel Bandeira (outra das minhas paixões). Esquematizando, trata-se de ler o poema, fazer o comentário, analisar forma e conteúdo ou temática, e depois interpretar. Para tanto, a preparação da aula envolve pesquisa, muitas leituras paralelas, a começar pelo próprio livro em que o poema foi publicado, muitas anotações e assim por diante.

Este esquema vale para qualquer texto, inclusive os teóricos, e aqui está o “pulo do gato”: no caso de algum autor de que divergia, na fase do comentário sempre tratei de apresentar seus interlocutores, seus antecedentes (ou família teórica) e assim expor as razões das minhas divergências.

Recentemente você publicou dois livros claramente didáticos. De intervenção. O que a motivou (além do que temos visto na última década) a escrevê-los?

Dialética do marxismo cultural atendeu a uma necessidade de tipo militante: tratava-se de lembrar aos camaradas que os fascistas atacam inclusive os liberais acusando-os de comunistas e esta tática de “debate ideológico”, além de antiga, tem o objetivo de calar a boca de qualquer adversário. Por outro lado, era preciso lembrar aos camaradas e aos jovens adeptos da causa socialista que nós temos uma longa história de lutas na frente cultural, bem como um imenso arsenal ao qual podemos recorrer para enfrentar o baixo nível fascista. Em suma: em vez de pedir “desculpas”, explicar que “não é bem assim” etc. e nos submetermos às pautas do inimigo, teríamos que fazer avançar as nossas próprias pautas. Assunto é o que não falta e foi isso que procurei expor.

Lenin e Brecht: duas revoluções tem uma história bem mais complexa. O texto sobre as intervenções de Lenin no processo revolucionário russo em 1917 foi escrito para comemorar os cem anos da Revolução de Outubro. O estudo sobre a peça de Brecht A decisão começou a ser elaborado no ano de 2007. Na ocasião, falei sobre ele para um amigo, o Luiz Renato Martins, que me pediu para ler assim que ficasse pronto, pois ele tinha interesse em publicar. Em parte, o texto sobre Lenin deriva desses estudos, mas ficou pronto primeiro. Mantendo a palavra dada, enviei ao amigo o texto sobre Brecht e foi dele a ideia de juntar os dois num único volume, porque um mais ou menos explica o outro.

Quanto à motivação para apresentar uma visão discrepante da fortuna crítica sobre a peça de Brecht, devo declarar que vem desde a primeira leitura do texto de Adorno sobre o engajamento, e por isso fiz questão de reproduzir no livro o excerto que trata da peça cometendo inclusive imperdoáveis anacronismos. Adicionalmente, por ser trotskista, sempre tive interesse pela revolução chinesa, assunto sobre o qual leio sempre que posso. E, como os próprios chineses, também acho que a revolução vitoriosa em 1949 começou com a proclamação da república por Sun Yatsen e prosseguiu na década de 1920, com a fundação do Partido Comunista da China. Isso explica em parte o comentário e as dicas de análise de alguns momentos mais eloquentes da peça de Brecht. Ao contrário do que afirmam os leitores, tentei mostrar que a peça se refere ao que realmente se passou na China e na Internacional Comunista nos anos que vão de 1925 a 1927.

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