“Por que acredito que David Graeber morreu de covid”

Companheira do autor de Dívida: os primeiros 5 mil anos e Empregos de Merda relata os últimos meses que passaram em Londres, antes de sua estranha e repentina morte. “Para mim, a culpa é do governo-piada de Boris Johnson”

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Por Nika Dubrovsky, no Dorset Eye | Tradução: Gabriela Leite

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Muitos me perguntam qual foi o motivo da morte de David. O hospital de Veneza apresentou o resultado da autópsia dizendo que a causa foi intensa hemorragia interna causada por necrose pancreática.

Minha teoria da conspiração, sem prova médica, é que foi associada à covid.

Recentemente, assistindo ao noticiário pela primeira vez depois de semanas, descobri que um milhão de pessoas já morreram de covid no mundo inteiro. Espera-se que a segunda onda nos custará outro milhão de vidas.

Gostaria de contar como eu e David passamos a quarentena. Apesar de ser desorganizada e meio punk de coração, tive de dominar algumas habilidades domésticas importantes ao longo dos anos. Criei duas crianças sozinha, afinal de contas.

Bem no comecinho do lockdown, cuidei de comprar máscaras, luvas, remédios, pomadas, desinfetantes — e, por ter crescido na União Soviética e ter familiaridade com a economia da escassez, comprei tudo em dobro. Dominei a arte das compras online para TUDO, e estava determinada em me manter em uma quarentena muito restrita. Mas calhou de eu e David morarmos na rua Portobello (em Londres), no coração de uma metrópole e em um país cujo primeiro-ministro é basicamente um sósia de Donald  Trump. Boris Johnson a toda hora dá conselhos contraditórios a respeito da pandemia. Em geral, dizia “aqueles que morrem teriam morrido de qualquer maneira, então não faça o governo perder tempo com essas ninharias”.

Até que o próprio primeiro-ministro finalmente pegou a covid, e então não ouvimos falar dele por algum tempo. Ele se recuperou, agradeceu aos médicos e enfermeiros do hospital, e logo continuou a tocar a privatização do sistema de saúde britânico e a fazer seus discursos abobados. Enquanto isso, seu principal assistente, também adoecido com a covid, viajava despreocupadamente pelo país como se nada estivesse acontecendo.

O mercado de Portobello continuou aberto como sempre. Londrinos não usavam máscaras ou luvas. A atitude geral a respeito da pandemia foi, com poucas exceções, condescendente.

Quero expressar meu respeito e enviar raios de amor às mulheres: mães e avós. Na maior parte das famílias, são elas as responsáveis pelo bem-estar, segurança, higiene e compras — todos os protocolos mundanos domésticos.

Era difícil para David obedecer às regras de isolamento, não ir ao mercado, não se encontrar com os vizinhos; ele odiava máscaras e insistia em reutilizar luvas descartáveis.

Ele gentilmente reclamava de mim a seus amigos, dizendo como eu o “torturava”. Em geral, David era uma pessoa sincera, e seus resmungos eram de fato bem mais vaidade: “vejam como Nika cuida e se preocupa comigo!”

Mas envio raios de ódio aos idiotas descuidados que riram de meus esforços de isolamento e diziam a David para ignorar minhas reivindicações.

É claro, eu sinto culpa. David era um marido judeu obediente. Eu poderia ter fincado o pé e exigido que partíssemos imediatamente para passar a quarentena inteira se autoisolando em alguma vila remota. Não fiz isso. Não sei por quê. Não queria ser a patroa controladora ou uma esposa rigorosa.

Nós dois começamos a ter sintomas estranhos em março. Mais ou menos uma vez por semana, tínhamos dor de cabeça, dores musculares, formigamentos nos pulmões, cansaço extremo (a ponto de não conseguir nem falar ao telefone). O tempo inteiro com vontade de dormir.

Logo tudo passava, mas depois de cinco a oito dias os sintomas se repetiam. Cuidávamos um do outro com carinho: trazíamos chá com gengibre e limão e vitaminas. Quando estava mal, eu dormia o dia inteiro, e David tomava banhos quentes.

Depois de um tempo, eu me recuperei completamente, mas David desenvolveu novos sintomas estranhos. Tudo começou com um gosto peculiar de sabão na boca. Sentia após as refeições e dizia que o gosto continuava ao longo do dia. Paramos até de usar detergente líquido nas louças. David foi ao dentista para fazer limpeza profunda em suas gengivas várias vezes, para prevenir inflamações. Fez (vários!) tratamentos de canal. Não sabíamos o que mais poderia ser. 

Ele fez um teste de anticorpos. O resultado foi negativo.

Um pouco depois, começou a sentir uma sensação de formigamento nas pontas dos dedos. Atribuiu ao tempo longo que passava praticando violão. Mas o formigamento começou em seus dedos do pé e pernas. Fadiga. Dor abdominal moderada mas constante; problemas digestivos. Mas, acima de tudo, fadiga constante. Consultamos vários médicos. Fizemos vários exames. Primeiro em Londres, depois em Berlim.

Todos os médicos diziam a mesma coisa: não há nenhum sintoma óbvio, mas você tem “síndrome pós-viral”. Espere, que com o tempo isso passa.

Ele esperou.

David foi testado para covid em Veneza, também com resultados negativos. Quando perguntei se sua morte poderia ser relacionada à doença, o médico respondeu “se o resultado do teste é positivo para covid, você tem covid; mas o teste negativo não diz que você não tem”. E eu e ele temos a mesma impressão. Sinto que a covid foi uma razão para ele ter desenvolvido essa doença estranha e bizarra tão rapidamente. Ponho a culpa nesse governo-piada de Boris Johnson e na estupidez e autoconfiança humanas em geral.

David morreu de necrose pancreática e hemorragia interna, mas por que de repente uma pessoa saudável e totalmente abstêmia de álcool como ele desenvolveria algo assim? Por que isso aconteceria tão repentina e aceleradamente? Por que esses sintomas tão estranhos o acompanhavam? Por que começou logo depois que pensamos ter contraído covid?

Aqui, um artigo [em inglês] sobre a relação entre covid e pancreatite (via Steve Keen): https://www.medpagetoday.com/infectiousdisease/covid19/88328#:~:text=COVID%2D19%20patients%20can%20present,a%20New%20York%20health%20system

Por favor, se cuidem,

Nika Dubrovsky

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2 comentários para "“Por que acredito que David Graeber morreu de covid”"

  1. Chico martins disse:

    Pode ser que ele tinha micropedras ( microlitíase) na vesícula, como eu tive, associada com a covid. Se uma dessas pequenas pedras bloquear o canal pancreático, resulta em pancreatite. Pedra na vesícula também provoca sintomas muito estranhos. Um ultrassom abdominal verificaria isso.

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