Perry Anderson: O neoliberalismo, este zumbi
Desde a crise de 2008, sistema nega a si mesmo e adota parte do que propugnam seus adversários – apenas para conservar-se vivo e manter sua essência. A causa crucial é falta de uma alternativa. Mas a História, às vezes, preenche esta lacuna…
Publicado 15/04/2025 às 19:42 - Atualizado 15/04/2025 às 20:08

Por Perry Anderson, na London Review of Books | Tradução: Antonio Martins
Título original:
Mudança de regime no Ocidente?
Passado um quarto deste século, “mudança de regime” tornou-se uma expressão canônica. Significa a derrubada em todo o mundo — normalmente, mas não apenas, pelos Estados Unidos — de governos que não são do agrado do Ocidente; empregando-se, para esse propósito, força militar, bloqueio econômico, erosão ideológica ou uma combinação de tudo isso. No entanto, originalmente o termo significava algo bem diferente: uma mudança generalizada no próprio Ocidente. Não a transformação súbita de um Estado-nação pela violência externa, mas a instalação gradual de uma nova ordem internacional em tempo de paz. Os pioneiros desta concepção foram os teóricos norte-americanos que desenvolveram a ideia de “regimes internacionais”, vistos como acordos que asseguravam relações econômicas de cooperação entre os principais Estados industriais, que podiam ou não assumir a forma de tratados. Estes, como se afirmava, desenvolveram-se a partir da liderança dos EUA após a Segunda Guerra Mundial, substituída mais tarde pela formação de um quadro consensual de transações mutuamente satisfatórias entre os principais países. O manifesto desta ideia surgiu em Power and interdependence, uma obra em coautoria de dois pilares do establishment da política externa da época, Joseph Nye e Robert Keohane, cuja primeira edição – houve várias, depois – apareceu em 1977. Embora apresentado como um sistema de normas e expectativas que ajudava a assegurar a continuidade entre os diferentes governos em Washington, introduzindo “maior disciplina” na política externa americana, o estudo de Nye e Keohane não deixava dúvidas quanto aos benefícios para os EUA. “Regimes normalmente são do interesse da América porque os Estados Unidos são a principal potência comercial e política do mundo. Se muitos regimes já não existissem, os Estados Unidos certamente buscariam inventá-los, tal como fizeram”1. No início da década de 1980, os livros que seguiam esta linha estavam saindo das impressoras: um simpósio intitulado International regimes, e editado por Stephen Krasner (1983); o tratado do próprio Keohane, After hegemony (1984); e uma série de artigos eruditos.
Na década seguinte, esta doutrina reconfortante passou por uma mutação, com a publicação de um volume intitulado Regime changes: macroeconomic policy and financial regulation in Europe from the 1930s to the 1990s, editado por Douglas Forsyth e Ton Notermans – um norte-americano, o outro holandês. O livro reteve, mas acentuou, a ideia de um regime internacional, especificando a variante que prevaleceu antes da guerra, baseada no padrão-ouro; depois, a ordem forjada em Bretton Woods, que lhe sucedeu após a guerra; e, finalmente, explicitando o desaparecimento deste sucessor na década de 1970.2 O que substituiu o mundo instituído em Bretton Woods foi um conjunto de restrições sistêmicas que afetam todos os governos, independentemente de sua compleição, consistindo em pacotes de macropolítica de regulação monetária e financeira que fixam os parâmetros de possíveis políticas trabalhistas, industriais e sociais. Enquanto a ordem do pós-guerra tinha sido conduzida pelo objetivo de assegurar o pleno emprego, a prioridade em sua sequência foi a estabilidade monetária. O liberalismo econômico clássico chegou ao fim com a Grande Depressão. O keynesianismo do pós-guerra esgotou-se com a estagflação da década de 1970. O novo regime internacional marcou o reinado do neoliberalismo.
Tal era o significado original da fórmula “mudança de regime”, hoje praticamente esquecida, apagada pela onda de intervencionismo militar que confiscou o termo na virada do século. Uma olhada em seu N-grama3 conta essa história. Sem expressão antes de sua chegada, nos anos 1970, a frequência do termo disparou subitamente no final dos anos 1990, multiplicando-se sessenta vezes e tornando-se, como observou John Gillingham, um historiador econômico ligado a seu sentido anterior, “o eufemismo atual para derrubar governos estrangeiros”.
No entanto, a relevância de seu significado original mantém-se. O neoliberalismo não desapareceu. Suas características são agora familiares: desregulamentação dos mercados financeiros e de produtos; privatização de serviços e indústrias; redução da tributação das corporações e do patrimônio; enfraquecimento dos sindicatos, às vezes levando-os à impotência. O objetivo da transformação neoliberal, que começou nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha sob os governos de Carter e Callaghan e atingiu seu auge sob os governos de Thatcher e Reagan, era restaurar as taxas de lucro do capital – que tinham caído praticamente em todos os lugares a partir do final da década de 1960 – e vencer a combinação de estagnação e inflação que se instalou após a queda dessas taxas.
Durante um quarto de século, os remédios do neoliberalismo pareceram funcionar. O crescimento retornou, embora a um ritmo claramente inferior ao do quarto de século que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. A inflação foi controlada. As recessões foram curtas e reduzidas. As taxas de lucro recuperaram-se. Economistas e especialistas saudaram o triunfo daquilo que o futuro presidente do Banco Central dos Estados Unidos [Federal Reserve, ou Fed], Ben Bernanke, exaltou como a Grande Moderação. O sucesso do neoliberalismo como sistema internacional não se baseou, contudo, na recuperação do investimento aos níveis do pós-guerra no Ocidente: isso teria exigido um incremento da demanda econômica, impossibilitado pela repressão salarial, que foi central para o sistema. Em vez disso, foi construído com base numa expansão maciça do crédito – isto é, na criação de níveis sem precedentes de dívida privada, empresarial e, eventualmente, pública. Em Buying time, sua obra pioneira de 2014, Wolfgang Streeck descreve isso como reivindicações sobre recursos futuros, que ainda precisam ser produzidos; Marx chamou-lhe, de forma mais direta, “capital fictício”. Eventualmente, tal como previsto por mais de um crítico do sistema, a pirâmide da dívida cedeu, causando o crash de 2008.
A crise que se seguiu representou, como Bernanke confessou, “um risco de vida” para o capitalismo. Em magnitude, foi totalmente comparável ao crash de Wall Street de 1929. No ano seguinte, a produção global e o comércio mundial caíram mais rapidamente do que durante os primeiros doze meses da Grande Depressão. No entanto, o que se seguiu não foi outra grande depressão, mas uma grande recessão – há uma grande diferença. Um ponto de partida para compreender a posição política em que o Ocidente se encontra hoje é olhar para trás, para a sequência de acontecimentos da década de 1930. Quando a Segunda-Feira Negra atingiu o mercado de ações americano, em outubro de 1929, governos conservadores estavam no poder nos Estados Unidos, França e Suécia, enquanto havia governos social-democratas na Grã-Bretanha e na Alemanha. Todos, no entanto, eram mais ou menos indistintamente fiéis às ortodoxias econômicas da época: um compromisso com a moeda sólida – ou seja, o padrão-ouro – e orçamentos equilibrados, políticas que simplesmente aprofundaram e prolongaram a Depressão. Só no outono de 1932 e na primavera de 1933, ou seja, durante três anos ou mais, começaram a ser introduzidos programas não convencionais para combater a situação, primeiro na Suécia, depois na Alemanha e, por fim, na América. Estes países correspondiam a três configurações políticas bem diferentes: a chegada ao poder da social-democracia na Suécia, do fascismo na Alemanha e de um liberalismo atualizado nos Estados Unidos. Por trás de cada um deles, havia heterodoxias pré-existentes, que estavam prontas para serem aplicadas caso os governantes decidissem adotá-las, como fizeram Per Albin Hansson na Suécia, Hitler na Alemanha e Roosevelt nos Estados Unidos. Elas eram: a escola de economia de Estocolmo, descendente de Knut Wicksell a Ernst Wigforss na Suécia, a valorização das obras públicas por Hjalmar Schacht na Alemanha e as inclinações reguladoras neoprogressistas de Raymond Moley, Rexford Tugwell e Adolf Berle – o “grupo de especialistas” original de Franklin Delano Roosevelt – nos Estados Unidos. Nenhum destes foi um sistema totalmente elaborado ou coerente. Schacht, na Alemanha, e Keynes, na Grã-Bretanha, estiveram em contato um com o outro desde a década de 1920, mas o keynesianismo propriamente dito – A teoria geral do emprego, do juro e da moeda só apareceu em 1936 – não foi uma contribuição direta para estas experiências, embora todas envolvessem o reforço do papel do Estado. Estas eram as caixas de ferramenta técnicas, dispersas, da época.
Três anos de desemprego em massa tinham gerado forças ideológicas poderosas em cada país: um reformismo social-democrata muito mais ousado na noção de Folkhemmet, a Casa do Povo, na Suécia; o nazismo, autodescrito como die Bewegung, o Movimento, na Alemanha; e, nos Estados Unidos, o papel dinâmico dos comunistas nos sindicatos e entre os intelectuais, forçando reformas trabalhistas e da seguridade social num governo democrata que, por sua própria vontade, dificilmente as teria promulgado. Por último, como pano de fundo destes três desenvolvimentos no mundo capitalista, surgia o sucesso sem precedentes alcançado pela União Soviética ao evitar completamente a recessão, com pleno emprego e taxas de crescimento aceleradas, tornando atrativa a ideia de planejamento econômico em todo o mundo capitalista. No entanto, seria necessário um choque muito maior e mais profundo do que o crash de Wall Street para pôr fim à depressão global produzida, e institucionalizar a ruptura com as ortodoxias do liberalismo econômico clássico. Foi o abismo da Segunda Guerra Mundial que fez isso. Quando a paz foi restabelecida, ninguém podia duvidar de que um sistema internacional diferente havia sido estabelecido. Ele cominava o padrão-ouro, políticas monetárias e fiscais contracíclicas, níveis elevados e estáveis de emprego e sistemas oficiais de proteção social. Nem se questionava o papel que as ideias de Keynes haviam desempenhado em sua consolidação. Depois de 25 anos de sucesso, foi a eventual degeneração deste regime em estagflação que desencadeou o neoliberalismo.
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O cenário era totalmente diferente na sequência do crash de 2008. Nos Estados Unidos, as ambulâncias políticas entraram imediatamente em ação. Sob Obama, os bancos e companhias de seguros praticantes de fraudes e as empresas de automóveis falidas foram resgatados com enormes injeções de fundos públicos nunca disponíveis para cuidados de saúde decentes, escolas, pensões, ferrovias, rodovias, aeroportos, e muito menos para apoiar a renda dos mais desfavorecidos. Promoveu-se um estímulo fiscal maciço, com a disciplina orçamentária sendo ignorada. Para sustentar o mercado de ações, sob o eufemismo bem educado de Quantitative Easing, a o banco central liberou dinheiro em escala gigantesca. Sorrateiramente, e desafiando seu mandato, o Fed socorreu não só os bancos norte-americanos em dificuldades, mas também os bancos europeus, em transações ocultas ao Congresso e ao escrutínio público, enquanto o Tesouro assegurava – em estreita ligação nos bastidores com o Banco Popular da China – que não haveria qualquer hesitação chinesa na compra de bônus do Tesouro (T-bonds). Em suma, uma vez que as instituições centrais do capital estavam em risco, todos os preceitos da economia neoliberal foram lançados aos ventos, com mega-doses de remédios keynesianos, muito além da imaginação do próprio Keynes. Na Grã-Bretanha, onde a crise rapidamente se refletiu nos países da Europa, estes chegaram ao ponto de nacionalizar temporariamente aquilo a que o dom norte-americano para o eufemismo burocrático chamou de “ativos problemáticos”.
Tudo isto significou um repúdio do neoliberalismo e uma guinada para um novo regime internacional de acumulação? De modo algum. O princípio central da ideologia neoliberal, cunhado por Margaret Thatcher, sempre residiu no atraente acrônimo com sonoridade feminina TINA: There Is No Alternative. Por mais que as medidas para controlar a crise parecessem quebrar tabus, e em boa parte faziam isso, se consideradas a partir dos cânones neoclássicos, elas essencialmente equivaliam ao quadrado, ou ao cubo, da dinâmica subjacente à época neoliberal. Dito com todas as letras, a expansão contínua do crédito acima de qualquer aumento da produção, naquilo a que os franceses chamam uma fuite en avant – uma fuga para a frente. Assim, uma vez que as medidas exigidas pelo risco de vida do sistema o estabilizaram, a lógica do neoliberalismo avançou novamente, país após país.
Na Grã-Bretanha, que foi a primeira no processo, a imposição implacável da “austeridade” reduziu as despesas dos governos locais a níveis mendicantes e cortou as aposentadorias universitárias. Na Espanha e na Itália, a legislação trabalhista foi revista para facilitar a demissão sumária de trabalhadores e aumentar o emprego precário. Nos Estados Unidos, foram mantidas as reduções drásticas dos impostos sobre as empresas e os ricos, enquanto a desregulamentação se acelerou nos setores de energia e serviços financeiros. Na França, historicamente retardatária na corrida ao neoliberalismo, mas agora candidata a um lugar na vanguarda, foi posto em marcha algo como um programa thatcheriano completo: privatização de indústrias públicas, legislação para enfraquecer os sindicatos, benefícios fiscais para as empresas, redução do número de funcionários públicos, cortes nas aposentadorias, redução do acesso às universidades – tudo parecendo encaminhar-se para um confronto social na linha do esmagamento dos mineiros por Margaret Thatcher, um ponto de inflexão nas relações de classe do qual o capital britânico nunca se arrependeu.
Como tudo isto foi possível? Como um choque tão traumático para o sistema como a crise financeira global, e o descrédito em que suas principais agências e receitas milagrosas inevitavelmente caíram, foram seguidos por uma reversão tão completa aos negócios como de costume? Duas condições foram fundamentais para este resultado paradoxal. Em primeiro lugar, ao contrário do que aconteceu na década de 1930, não havia paradigmas teóricos alternativos à espera nos bastidores, para desalojar o domínio da doutrina neoliberal e substituí-la. O keynesianismo, que depois de 1945 se tornou o denominador comum do que tinha sido peneirado pela máquina debulhadora da guerra a partir das três tendências em disputa na década de 1930, nunca se recuperou de sua derrocada nos conflitos de classe da década de 1970. A matematização anestesiou durante muito tempo boa parte da disciplina econômica contra qualquer tipo de pensamento original, deixando anomalias como a Escola da Regulação na França, ou a Escola da Estrutura Social de Acumulação nos EUA, completamente marginalizadas. Os teoremas neoliberais das “expectativas racionais” ou da “compensação de mercado” podiam agora parecer disparatados, mas não havia muita coisa para substituí-los.
Por trás dessa ausência intelectual – e esta foi a segunda condição para a aparente imunidade do neoliberalismo diante da desgraça – estava o desaparecimento de qualquer movimento político significativo que apelasse vigorosamente quer à abolição, quer à transformação radical do capitalismo. Na virada do século, o socialismo, nas suas duas variantes históricas, revolucionária e reformista, tinha sido varrido do palco na zona atlântica. A variante revolucionária: ao que parece, com o colapso do comunismo na URSS e a desintegração da própria União Soviética. A variante reformista: ao que parece, com a extinção de qualquer vestígio de resistência aos imperativos do capital nos partidos social-democratas do Ocidente, que agora se limitavam a competir com os partidos conservadores, democratas-cristãos ou liberais, em sua implementação. A Internacional Comunista foi encerrada logo em 1943. Sessenta anos depois, a chamada Internacional Socialista contava em suas fileiras com o partido governante da brutal ditadura militar de Mubarak no Egito.
Nada disto significa, ou poderia significar, que depois de reinar durante um quarto de século e cair de joelhos, de repente, o sistema neoliberal tinha ficado sem oposição. Depois de 2008, suas consequências sociais e políticas acumuladas começaram a fazer-se sentir. Consequências sociais: uma escalada acentuada e, em alguns casos (sobretudo nos Estados Unidos e no Reino Unido), assombrosa da desigualdade; estagnação salarial a longo prazo; um precariado em expansão. Consequências políticas: corrupção generalizada, crescente permutabilidade dos partidos, erosão de uma escolha eleitoral significativa, declínio da participação dos eleitores – em suma, o apagamento crescente da vontade popular por uma oligarquia endurecida. Este sistema gerou então seu anticorpo, deplorado em todos os órgãos reputados de opinião e em todos os quadrantes políticos respeitáveis como a doença da época: o populismo. As revoltas enquadradas neste rótulo, muito diferentes entre si, têm em comum sua rejeição do regime internacional em vigor no Ocidente desde a década de 1980. Não se opõem ao capitalismo enquanto tal, mas à sua versão socioeconômica atual: o neoliberalismo. Seu inimigo comum é o establishment político que preside à ordem neoliberal, constituído pelo duo alternado de partidos de centro-direita e de centro-esquerda que monopolizaram o governo sob seu domínio. Estes partidos ofereceram muitas vezes, embora nem sempre, duas variantes ligeiramente diferentes de neoliberalismo: uma é disciplinar, e tipicamente mais inovadora em suas iniciativas, como Thatcher e Reagan; a outra é compensatória, oferecendo aos pobres pagamentos secundários que a variante disciplinar retém, como Clinton ou Blair. Ambas as versões, no entanto, têm estado inabalavelmente empenhadas em promover o objetivo comum de fortalecer o capital contra quaisquer choques inconvenientes.
O neoliberalismo, como já afirmei, forma um regime internacional: isto é, não é apenas um sistema replicado dentro de cada Estado-nação, mas um sistema que une e ultrapassa os diferentes Estados-nação das regiões avançadas, e menos avançadas, do mundo capitalista no processo que veio a ser chamado de globalização. Ao contrário das várias agendas nacionais do neoliberalismo, este processo não foi originalmente conduzido pela intenção política dos detentores do poder, mas seguiu a explosiva desregulamentação dos mercados financeiros desencadeada pelo chamado Big Bang de Margaret Thatcher, em 1986. No devido tempo, a globalização tornou-se uma palavra de ordem ideológica dos regimes neoliberais em todo o mundo, uma vez que resultou em duas enormes vantagens para o capital em geral. Do ponto de vista político, a globalização assegurou a expropriação da vontade democrática que o fechamento oligárquico do neoliberalismo estava impondo internamente. Agora, o TINA não significava apenas que a conivência política entre a centro-direita e a centro-esquerda em nível nacional. Ele eliminava em grande medida qualquer escolha eleitoral significativa, mas também significava que os mercados financeiros globais não permitiriam qualquer desvio das políticas oferecidas, sob pena de colapso econômico. Este foi o bônus político da globalização. Não menos importante foi o bônus econômico: o capital podia agora enfraquecer ainda mais o trabalho, não só através da dessindicalização, repressão salarial e precariedade, mas também realocando a produção para países menos desenvolvidos com custos trabalhistas muito mais baixos, ou simplesmente ameaçando fazer isso.
Outro aspecto da globalização teve, no entanto, um efeito mais ambíguo. Os princípios neoliberais estipulam a desregulamentação dos mercados: a livre circulação de todos os fatores de produção, ou seja, a mobilidade transfronteiriça não apenas de bens, serviços e capitais, mas também de força de trabalho. Logicamente, portanto, isso significa imigração. Faz muito tempo que as empresas da maior parte dos países recorrem aos trabalhadores migrantes como exército de reserva de força de trabalho barata, sempre que a oferta é necessária e as circunstâncias o permitem. Mas, para os Estados, as considerações de ordem puramente econômica tinham de ser ponderadas em relação às de ordem mais social e política. Neste ponto, Friedrich von Hayek – a maior mente do neoliberalismo – tinha introduzido significativamente, desde cedo, uma reserva, uma ressalva. A imigração, ele advertia, não podia ser tratada como se fosse uma simples questão de mercado de fatores, pois, se não fosse rigorosamente controlada, poderia ameaçar a coesão cultural do Estado acolhedor e a estabilidade política da própria sociedade. Era aqui que Margaret Thatcher também traçava a linha. Entretanto, é claro que as pressões para a importação ou aceitação de força de trabalho estrangeira barata persistiram, mesmo quando a produção era cada vez mais terceirizada para o estrangeiro, uma vez que muitos serviços de tipo braçal ou degradante, evitados pelos habitantes locais, não podiam, ao contrário das fábricas, ser exportados, pois tinham que ser executados no próprio lugar. Ao contrário de praticamente todos os outros aspectos da ordem neoliberal, nunca se chegou a um consenso estável no establishment sobre esta questão, que permaneceu um elo fraco na cadeia do TINA.
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Se olharmos para as revoltas populistas contra o neoliberalismo, elas dividem-se, grosso modo, como todos sabem, em movimentos de direita e de esquerda. Nesse sentido, repetem o padrão das revoltas contra o liberalismo clássico após seu fracasso na Grande Depressão: fascistas à direita, social-democratas ou comunistas à esquerda. O que diferencia as rebeliões atuais é não terem ideologias ou programas articulados de forma comparável – nada que corresponda à consistência teórica ou prática do próprio neoliberalismo. Elas são definidas por aquilo a que se opõem, muito mais do que por aquilo que propõem. Contra o que protestam? O sistema neoliberal de hoje, como o de ontem, incorpora três princípios: escalada dos diferenciais de riqueza e renda; revogação do controle e representação democráticos; e desregulamentação do maior número possível de transações econômicas. Em suma: desigualdade, oligarquia e mobilidade de fatores de produção. Estes são os três alvos centrais contra os quais se voltam insurgências populistas. O ponto em que essas insurreições se dividem é quanto ao peso que atribuem a cada elemento – ou seja, contra que segmento da paleta neoliberal dirigem mais hostilidades. É notório que os movimentos de direita se agarram ao último deles, o fator mobilidade, jogando com as reações xenófobas e racistas em relação aos imigrantes para ganhar um apoio generalizado entre os setores mais vulneráveis da população. Os movimentos de esquerda resistem a este direcionamento, apontando a desigualdade como o principal mal. A hostilidade contra a oligarquia política estabelecida é comum aos populismos de direita e de esquerda.
Historicamente, há uma clara divisão cronológica entre estas diferentes formas do mesmo fenômeno. O populismo contemporâneo surgiu na Europa, que ainda continua sendo o continente com a maior e mais diversificada variedade de movimentos. As forças populistas de direita remontam ao início da década de 1970. Na Escandinávia, assumiram a forma de revoltas ultraliberais [“libertarian”] contra os impostos por meio dos Partidos do Progresso na Dinamarca e na Noruega, fundados em 1972 e 1973, respectivamente. Na França, o Front National foi fundado em 1972, mas só no início da década de 1980 conseguiu uma modesta força eleitoral como partido de direita nacionalista e anti-imigração, com um certo apelo à classe trabalhadora e fortes conotações racistas. No final dessa década, a liderança do Partido da Liberdade na Áustria foi conquistada por Jörg Haider, que adotou uma plataforma semelhante, enquanto, mais ao norte, os Democratas da Suécia surgiram como um grupelho de extrema direita com uma base xenófoba muito semelhante. Na gênese das três formações, havia literalmente elementos neofascistas, que – uma vez alcançada uma presença eleitoral significativa – se desvaneceram gradualmente. A década de 1990 assistiu à eclosão da Liga do Norte na Itália, que, ao contrário, tinha raízes antifascistas; ao aparecimento do Ukip na Grã-Bretanha e à conversão dos partidos dinamarquês e norueguês, outrora “libertarian”, em forças anti-imigração. No início da década seguinte, os Países Baixos criaram seu próprio Partido da Liberdade, que combinava perspectivas “libertárias” e islamofóbicas. Dez anos mais tarde, a Alternative für Deutschland repetiu o modelo holandês na Alemanha. Todos estes partidos de direita insurgiram-se contra a corrupção política e o fechamento de suas instituições nacionais e contra os ditames burocráticos da União Europeia a partir de Bruxelas. Todos, com a única exceção do AfD (fundado em 2013), são anteriores ao crash de 2008.
As forças populistas de esquerda são muito mais recentes, tendo surgido apenas após a crise financeira global de 2008. Na Itália, o Movimento Cinco Estrelas data de 2009. Na Grécia, o Syriza, ainda um pequeno grupo quando o Lehman Brothers entrou em colapso em Nova York, surgiu como uma força eleitoral significativa em 2012. Na Espanha, o Podemos foi criado em 2014. Jean-Luc Mélenchon criou La France Insoumise em 2016. O momento desta onda deixa claro que foram as desigualdades socioeconômicas do neoliberalismo, e não o enfraquecimento das fronteiras étnico-nacionais, que estimularam o surgimento do populismo de esquerda. Esta é uma distinção fundamental entre os dois tipos de revolta contra a ordem atual. Não se trata, porém, de um abismo intransponível, uma vez que não há apenas uma sobreposição geral na repulsa comum ao conluio e à corrupção dos establishments políticos de cada país, mas também, em alguns casos, uma contiguidade na defesa comum de sistemas de bem-estar ameaçados e, em outros, na preocupação com as pressões da imigração. Sob o comando de Marine Le Pen, o Front Nacional esteve consistentemente à esquerda do Partido Socialista francês na maioria das questões de política interna e externa, com exceção da imigração, apresentando críticas ao regime de François Hollande muitas vezes indistinguíveis das de Mélenchon. Por outro lado, o Movimento Cinco Estrelas, na Itália, cujo registro de votação no parlamento foi, em geral, impecavelmente radical, expressou repetidamente seu alarme diante do crescente afluxo de refugiados à Itália. Outro gesto comum a praticamente todos os matizes do populismo na Europa foi a rebelião contra o confisco flagrante da democracia pelas estruturas da União Europeia em Bruxelas.
No entanto, durante sete anos após o crash de 2008, o impacto político das revoltas populistas na Europa foi bastante modesto – nada remotamente comparável às tempestades que varreram a Europa e a América na década de 1930. A Liga do Norte e o AfD ficaram abaixo dos 5% dos votos. O Ukip, os Democratas da Suécia, o Partido da Liberdade holandês, o Partido do Progresso norueguês e a Frente Nacional estavam conquistando entre 10 e 18% do eleitorado. Todos eles são populismos de direita. O Partido da Liberdade, na Áustria, e o Partido Popular Dinamarquês, também de direita, e o Podemos, de esquerda, atingiam pouco mais de um quinto dos cidadãos ativos. Os dois populismos mais bem sucedidos eram criações então recentes da esquerda: na Itália, o Movimento Cinco Estrelas obteve um quarto dos votos e, na Grécia, o Syriza mais de um terço.
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O que mudou tudo isto foram quatro outros acontecimentos. Na Grã-Bretanha, o governante Partido Conservador, sob pressão interna e ameaçado de perder eleitores para o Ukip, autorizou um referendo sobre a adesão à União Europeia. Seus líderes imaginaram que se produziria uma vitória fácil para o status quo, dado que três quartos dos membros do Parlamento, a totalidade da alta finança e das grandes empresas, os níveis mais altos da burocracia sindical e as fileiras da intelligentsia e do establishment cultural do país eram favoráveis a que a adesão continuasse. Para espanto geral, uma clara maioria da população votou pela saída da Europa, com uma participação muito mais elevada do que nas eleições gerais. Decisiva para o resultado foi a revolta das regiões e classes mais abandonadas do país contra o establishment neoliberal bipartidário que estava continuamente no poder desde a década de 1990. Foi a primeira vez que uma rebelião populista se tornou a expressão de uma maioria política num país capitalista e, ao fazê-lo, alterou o curso de sua história. Foi uma revolta orquestrada por forças de direita: Ukip, a ala tradicionalista do Partido Conservador e a maior parte da imprensa sensacionalista. Mas seu êxito se baseou na mobilização de vastas camadas da população que, no passado, tinham sido bastiões da esquerda trabalhista.
Poucos meses depois, Donald Trump triunfou nas eleições presidenciais dos Estados Unidos, nas quais tinha saudado o Brexit como um ensaio geral. Sua campanha, obviamente distinta de seu governo, foi de um tom e conteúdo puramente populistas de direita – acordes tocados pela última vez em seu discurso de posse, que combinou denúncias contundentes de involução política, aumento da desigualdade e perda de soberania nacional com hostilidade à imigração. Sua vitória nacional foi, de certa forma, acidental: se os democratas tivessem escolhido praticamente qualquer outro candidato menos impopular do que Hillary Clinton, ele teria provavelmente sido derrotado. Ficando muito aquém de uma maioria absoluta, com menos votos agregados do que Hillary Clinton, a [primeira] vitória de Donald Trump não só não atingiu as mesmas proporções do Brexit, como também dependeu, para seu sucesso, do sequestro de lealdades partidárias reflexas entre aqueles que estavam dispostos a votar em qualquer candidato desde que fosse republicano, independentemente de quão desagradável fosse. No entanto, a vitória de Donald Trump não foi conseguida com base numa única questão de sim/não, como no Brexit, mas numa ampla plataforma político-ideológica, e seu apoio entre os eleitores da classe trabalhadora pode ter sido maior do que o obtido pelo Brexit: cerca de 70% dos que votaram nele não tinham um diploma universitário. Este também não foi o único surto populista nos Estados Unidos nesse ano. Bernie Sanders revelou-se um formidável adversário para a escolha do candidato democrata no campo da esquerda. Se considerarmos os elementos das classes menos privilegiadas que votaram em Donald Trump nas eleições presidenciais e os que votaram em Sanders nas primárias democratas como uma porcentagem proporcional aos que o fizeram por Hillary Clinton em novembro, cerca de um terço dos votantes em 2016 eram suscetíveis a um populismo de direita e um quinto a um populismo de esquerda.
A surpresa seguinte foi o desempenho do Partido Trabalhista britânico nas eleições gerais de 2017, sob a liderança de seu novo líder, Jeremy Corbyn, até então rejeitado quase universalmente como um perdedor de extrema esquerda sem esperanças e politicamente incompetente. Na ocasião, conduzindo uma campanha muito eficaz sob o slogan populista “For the Many, Not the Few” [“Para muitos, não para uns poucos”], ele obteve uma votação maior do que seu partido tinha obtido em qualquer uma das três eleições precedentes, privando os conservadores de sua maioria no Parlamento, numa plataforma mais explicitamente hostil à ordem neoliberal do que a de qualquer partido de peso comparável na Europa. A tradição histórica e a natureza inalterada do trabalhismo britânico, ambos profundamente conservadores, estão longe de ser populistas. Mas um grande afluxo de jovens ao partido depois que Jeremy Corbyn se tornou seu líder – o que fez dele a maior organização política da Europa durante algum tempo – foi como uma injeção súbita e maciça de uma cepa estranha, trazenda a agremiação para o que, em outras condições, teria sido uma direção populista de esquerda. Não muito diferente da transformação do Parti de Gauche, de Mélenchon, parte da tradução socialista, no plenamento populista France Insoumise, de 2016.
Em 2018, o obstáculo mais alto foi ultrapassado na Itália, onde dois partidos explicitamente populistas, o Movimento Cinco Estrelas, à esquerda, e a Liga, à direita, obtiveram, em conjunto, 50% dos votos – um terremoto na Itália e, de longe, o resultado mais alarmante até o momento para o establishment europeu, uma vez que ambos anunciaram que não tinham intenção de submeter o país aos ditames de mais austeridade de Berlim, Paris ou Bruxelas. As eleições italianas marcaram também a primeira vez que, no confronto direto, o populismo de esquerda ultrapassou por larga margem o populismo de direita: 33% para o M5S, 17% para a Liga. Nos demais lugares, foi o contrário. Na França, em 2017, os votos de Le Pen ultrapassaram os de Mélenchon. No Reino Unido, Corbyn foi fortemente derrotado em 2019 pelo demagogo conservador Boris Johnson, encarnação extravagante de um simulacro de populismo de direita.
A razão pela qual o populismo de direita tem gozado de uma vantagem sobre o populismo de esquerda não é difícil de observar. Na ordem neoliberal, desigualdade, oligarquia e mobilidade dos fatores deprodução formam um sistema interligado. Os populismos de direita e de esquerda podem, de formas diferentes, atacar os dois primeiros com um vigor mais ou menos desinibido. Mas só a direita pode atacar o terceiro com uma veemência ainda maior, com a xenofobia contra os imigrantes funcionando como seu trunfo. Aí, os populismos de esquerda não podem seguir sem suicídio moral. E também não podem facilmente atenuar o problema da imigração, por duas razões. Não é mero mito que as empresas importem força de trabalho barata do estrangeiro – ou seja, trabalhadores tipicamente desprotegidos por direitos de cidadania – para rebaixar os salários e, em alguns casos, para tirar empregos dos trabalhadores locais, que qualquer esquerda deve procurar defender. Também não é verdade que, numa sociedade neoliberal, os eleitores tenham sido normalmente consultados sobre a chegada ou o volume da força de trabalho estrangeira: isto aconteceu quase sempre às suas costas, tornando-se uma questão política não ex ante mas ex post facto. Há aqui uma diferença transatlântica. A negação da democracia em que se transformou a estrutura da União Europeia incluiu, desde o início, a negação de qualquer fala democrática sobre a composição de sua população. A Constituição dos Estados Unidos, lamentavelmente anacrônica em muitos outros aspectos, não é tão radicalmente não democrática. Historicamente também, é claro, os EUA são uma sociedade de imigrantes, como nenhum país europeu alguma vez foi. Isso significa que há uma tradição de acolhimento seletivo e de solidariedade em relação aos recém-chegados que não se encontra na Europa com a mesma intensidade emocional. Mas em ambos os lados do Atlântico, o populismo de esquerda enfrenta a mesma dificuldade. Os populismos de direita têm uma posição simples sobre a imigração: barrar a porta aos estrangeiros e expulsar os que não deviam estar aqui. A esquerda não pode ter algo a ver com isto. Mas qual é exatamente sua política de imigração: fronteiras abertas, testes de competências, cotas regionais, ou o quê? Em nenhum lugar foi dada uma resposta politicamente coerente, empiricamente detalhada e sincera até o momento. Enquanto isso persistir, é muito provável que o populismo de direita mantenha sua vantagem sobre o populismo de esquerda.
O problema, na verdade, é mais amplo. Nenhum populismo, de direita ou de esquerda, produziu até agora um remédio poderoso para os males que denuncia. Do ponto de vista programático, os opositores contemporâneos do neoliberalismo ainda estão, em sua maioria, assobiando no escuro. Como combater a desigualdade – e não apenas remendá-la – de uma forma séria, sem desencadear imediatamente uma greve do capital? Que medidas podem ser previstas para enfrentar o inimigo, golpe a golpe, nesse terreno disputado, e sair vitorioso? Que tipo de reconstrução, inevitavelmente radical nessa altura, da atual democracia liberal seria necessária para pôr fim às oligarquias que ela gerou? Como desmantelar o Estado profundo, organizado em todos os países ocidentais para a guerra imperial – clandestina ou aberta? Que reconversão da economia imagina-se para combater as mudanças climáticas, sem empobrecer as sociedades já pobres de outros continentes? Que faltem tantas flechas na aljava de uma oposição séria ao status quo não é, evidentemente, culpa apenas dos populismos atuais. Reflete a contração intelectual da esquerda, em seus longos anos de recuo desde a década de 1970, e a esterilidade, nesse período, do que foram outrora vertentes originais de pensamento às margens da corrente predominante. Podem ser citadas propostas paliativas, que variam de país para país: Medicare para todos nos EUA, renda garantida para os cidadãos na Itália, bancos públicos de investimento na Grã-Bretanha, Taxa Tobin na França e coisas do tipo. Mas, em relação a uma alternativa geral e articulada ao status quo, o armário continua vazio. Para imaginar o resultado provável da chegada de um partido ou movimento populista ao poder atualmente, basta olhar, à esquerda, para o destino vira-casaca do Syriza na Grécia. Na oposição, foi um rebelde contra os ditames da UE; no governo, um instrumento submisso da mesma. À direita, tome-se a normalização, da noite para o dia, da primeira presidência de Trump, que cuspira fogo contra a complacência e a desigualdade do establishment no dia em que tomou posse, e nada fez em relação a isso uma vez na Casa Branca. Em termos políticos, o neoliberalismo não tem corrido grande perigo em nenhuma das duas situações.
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Neste cenário, o vírus da Covid atingiu o mundo como um raio em 2020, forçando confinamentos em todo o mundo. Donald Trump e Boris Johnson, que estavam em alta um ano antes, foram derrubados por seu impacto. Donald Trump teria sido quase certamente reeleito naquele ano, se seu governo não tivesse sido atingido pela pandemia. Boris Johnson foi destituído por seu próprio partido em 2022. Sob a onda de choque da Covid, o comércio internacional despencou e, em poucos meses, perderam-se quinhentos milhões de postos de trabalho em todo o mundo. Nos Estados Unidos, o mercado de ações caiu e o PIB sofreu a pior queda desde 1946, contraindo 3,5% em 2020. No Reino Unido, o PIB caiu 10% e na União Europeia 6%. À medida em que as cadeias de abastecimento mundiais se desgastaram, a inflação começou a aumentar em toda a OCDE e, com ela, o desemprego. Nesta situação de emergência, o último ano do primeiro governo de Donald Trump foi marcado por um enorme estímulo fiscal para evitar uma recessão mais profunda. A partir de 2021, com Joe Biden na Casa Branca, foi posta em marcha uma intervenção ainda maior do Estado para estabilizar a economia norte-americana. A chamada Lei de Redução da Inflação, injetou 750 bilhões de dólares na economia, com um enorme pacote de subsídios estatais para incentivar novos investimentos, sustentar a renda das famílias e alterar o uso de energia. Foi seguida pela Lei de Chips e Ciência de 2022, que despejou mais 280 bilhões de dólares de gastos públicos nas indústrias de semicondutores e associadas, juntamente com uma bateria de medidas protecionistas destinadas a derrotar a concorrência de alta tecnologia da China. Este era um programa orgulhosamente descrito pelos apoiadores do governo Joe Biden como uma versão do século XXI do New Deal de Roosevelt. Suas receitas modernizariam a indústria estadunidense, ajudariam os mais desfavorecidos e equipariam as forças armadas para combater a ameaça representada pela ascensão da China. Muitos saudaram suas amplas intervenções estatistas e acolheram a adoção de políticas industriais ativas como uma ruptura com o neoliberalismo comparável e tão decisiva como a ruptura de Roosevelt com as doutrinas paleoliberais na década de 1930. Outros aplaudiram o renascimento, levado a cabo por Joe Biden, da política da Guerra Fria de construir alianças contra inimigos mortais no exterior, seja em torno do Mar Negro, no Oriente Médio ou no Extremo Oriente, no melhor espírito de Truman nas décadas de 1940 e 1950.
A opinião dominante, não só nos Estados Unidos, mas também, e muitas vezes ainda mais ardentemente, na Europa, saudou os resultados desta mudança como pouco menos do que um milagre. O periódico de massas mais influente e inteligente do mundo capitalista, funcionando por vezes como conselheiro semi-oficial para este, a revista The Economist, de Londres, pôde celebrar a norte-economia americana numa reportagem especial, em outubro passado, como “o objeto de inveja do mundo”, cujo dinamismo pós-pandemia “deixou os outros países ricos na poeira”. Os comentadores nos próprios EUA enalteceram a capacidade de Joe Biden de suprimir a inflação, as medidas de atenção à saúde de seu governo em relação aos menos favorecidos, suas políticas interétnicas progressistas de “diversidade, equidade e inclusão”. Tanto na Europa como nos EUA, houve aplausos para sua firmeza em estar lado a lado com Israel em Gaza e com a Ucrânia. Porém, os eleitores norte-americanos ficaram menos impressionados. No verão do ano passado, Joe Biden estava tão desacreditado que seu próprio partido forçou-o a desistir de sua candidatura à reeleição, da mesma forma que os conservadores expulsaram Boris Johnson na Grã-Bretanha, deixando Kamala Harris, sua desafortunada vice-presidente, a ser derrotada em novembro por Donald Trump, que obteve uma vitória mais ampla do que em 2016.
O que a segunda presidência de Donald Trump significará para os Estados Unidos e para o mundo permanece indeterminado, dado o fosso de longa data entre suas palavras e seus atos. No âmbito interno, é possível que, desta vez, não cumpra suas promessas eleitorais de impor tarifas aduaneiras de 60% sobre todos os produtos provenientes da China e deportar todos os onze milhões de imigrantes ilegais nos Estados Unidos, tal como não cumpriu suas promessas da última vez de reconstruir a infraestrutura norte-americana em ruínas e de construir um muro intransponível ao longo de toda a fronteira mexicana. No entanto, dado o controle republicano de ambas as câmaras do Congresso durante, pelo menos, dois anos, é mais provável que ele cumpra algumas de suas promessas do que descarte todas elas, e que, em matéria de comércio, obrigue tanto os aliados como os adversários a pagar mais tributos monetários aos Estados Unidos do que no passado. No exterior, pode parar a guerra na Ucrânia, cortando toda a ajuda a Kiev; ou pode agravar o conflito, se a Rússia recusar as condições em que ele espera pôr fim aos combates. Ele acredita na vantagem de ser imprevisível e, certamente, a União Europeia, a Grã-Bretanha e o Japão, mesmo que não gostem do que faz, são demasiado fracos como parceiros subordinados para desviá-lo disso.
O governo da Alemanha – a potência mais forte da Europa – entrou em colapso no dia seguinte à eleição de Donald Trump, quando Olaf Scholz demitiu seu ministro das finanças e perdeu o terceiro partido de que dependia sua coalizão. Nunca antes um acontecimento deste gênero tinha ocorrido na República Federal. As novas eleições duplicaram os votos do AfD para um quinto do eleitorado, dando origem a outra coalizão do establishment que se apressa para aprovar um aumento das despesas com defesa num Bundestag – algo que os eleitores acabaram de rejeitar, em mais uma demonstração de como as elites europeias se preocupam pouco com a democracia que proclamam com ardor. Na França, o governo nomeado por Emmanuel Macron após sua derrota nas urnas, no verão passado, colapsou em dois meses, derrubado por uma combinação de oposição de direita e de esquerda na Assembleia Nacional, numa revolta que o país só conhecera uma vez, há mais de sessenta anos. Poucos acreditam que seu precário sucessor, apoiado numa relutante cooptação do Partido Socialista, durará muito tempo. Em suma, a versão do populismo de direita de Donald Trump, abominada por metade do país como uma ameaça mortal à democracia, tomou o poder em Washington num momento de desordem institucional em Berlim e Paris, e com um governo em Londres que é agora ainda menos popular do que a oposição desacreditada que derrotou há pouco tempo. Por todo o lado, o cenário é de instabilidade, insegurança, imprevisibilidade. “Tudo é desordem sob os céus” e há poucos sinais de um retorno à ordem, tal como a entendem os que estão habituados a governar o Ocidente.
Qual é a posição do neoliberalismo em meio a este turbilhão? Em condições de emergência, o sistema foi forçado a tomar medidas – intervencionistas, estatistas e protecionistas – que são anátemas para sua doutrina, mas sem perder o controle sobre as mentes dos responsáveis políticos, ou dar lugar a qualquer visão alternativa coerente sobre a forma como uma economia capitalista avançada deve ser gerida. Apesar dos desvios dramáticos em relação à pureza das receitas hayekianas ou friedmanianas, pouco mudou nas motivações e contradições subjacentes ao sistema que eles criaram. Enquanto o PIB dos Estados Unidos caiu cerca de 4,3% durante a Grande Recessão após o crash de 2008, e dois terços da população ativa da OCDE sofreram queda das rendas reais, o crescimento global foi retomado – ainda que em níveis muito inferiores aos alcançados na China, enquanto a desigualdade continuou aumentando. Nos Estados Unidos, o fosso entre as despesas das camadas mais ricas e mais pobres da população é o maior jamais registrado. Acima de tudo, entretanto, o que desencadeou a crise de 2008 foi compensado por mais do mesmo. O peso das finanças no PIB norte-americano não diminuiu – antes, aumentou. O déficit do governo triplicou na última década. No mesmo período, a dívida pública dos Estados Unidos aumentou 17 trilhões de dólares, um aumento equivalente ao dos 240 anos anteriores. No conjunto da OCDE, a dívida soberana total, que era de 26 trilhões de dólares em 2008, mais do que duplicou, subindo para 56 trilhões de dólares em 2024. Um regime internacional que há uma década entrou em colapso e quase se afogou no mar de dívida que tinha criado está se encharcando com uma inundação de dívida ainda maior, sem fim à vista.
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Estaremos finalmente assistindo ao início de uma mudança de regime no Ocidente, já anunciada várias vezes neste século? Esta é a mensagem do recente bestseller de um eminente historiador americano simpático a Biden, The rise and fall of the neoliberal order: America and the world in the free market era4. Gary Gerstle sugere que sugere que, a partir de diferentes direções, Sanders e Trump desferiram golpes tão eficazes na encarnação do neoliberalismo de Hillary Clinton que o caminho foi aberto por Joe Biden para que o equilíbrio entre ricos e pobres na sociedade norte-americana começasse a ser alterado e os benefícios da política industrial comandada pelo governo se tornassem visíveis para milhões. Reconhecendo que “os vestígios da ordem neoliberal estarão conosco durante anos e talvez décadas”, o autor termina, no entanto, com a firme declaração de que “a própria ordem neoliberal está despedaçada”.
De certa forma, uma acusação ainda mais severa do balanço socioeconômico do período a partir Reagan vem de um antigo admirador do ex-presidente, o banqueiro indiano-americano Ruchir Sharma, ex-estrategista chefe global do Morgan Stanley, em What went wrong with capitalism5. Seu leitmotiv é que “as crises financeiras periódicas – que eclodiram em 2001, 2008 e 2020 – desenrolam-se agora contra o pano de fundo de uma crise permanente e diária de má alocação colossal de capital”, o resultado de enormes injeções de dinheiro fácil injetado nas economias avançadas pelos bancos centrais, para sustentar taxas de crescimento em declínio constante. Estas torrentes de dinheiro distribuídas pelo Estado são a verdade última e primordial deste período. Sharma adverte que, mais cedo ou mais tarde, o sistema será afetado por um choque monumental. Que remédio isso traria? A resposta de Sharma: o retorno a um Estado menor e a um dinheiro mais apertado, a receita clássica de Mises e Hayek – o neoliberalismo completa-se mais uma vez.
Estes vereditos contrastantes não são, em si mesmos, uma novidade. Eric Hobsbawm proclamava “A morte do neoliberalismo” em 1998. Alguns anos mais tarde, Colin Crouch, não menos avesso a este sistema e intitulando seu livro sobre as desventuras dele The strange non-death of neoliberalism, chegou à conclusão oposta, um juízo que reiterou há um ano num texto intitulado Neoliberalism: still to shrug off its mortal coil [“Neoliberalismo: ainda preso a sua mortalha”]. Estas foram as conclusões de um inimigo declarado da ordem neoliberal. Um expoente convicto, Jason Furman – assistente especial de Bill Clinton, presidente do Conselho de Consultores Econômicos de Obama, admirador do modelo de gestão do Walmart – é da mesma opinião. Num artigo de primeira página da Foreign Affairs, intitulado “The post-neoliberal delusion”, Furman responde vigorosamente a pensadores como Gerstle, atribuindo a derrota dos democratas pela Casa Branca à loucura de abandonarem a disciplina econômica ortodoxa com programas de despesas supostamente vastos e incontinentes, que não atingiram seus objetivos. Apresentando os custos e benefícios do mandato de Joe Biden com riqueza de detalhes exagerada, Furman relata: “A inflação, o desemprego, as taxas de juro e a dívida pública eram todos mais elevados em 2024 do que em 2019. De 2019 a 2023, a renda familiar ajustada pela inflação caiu e a taxa de pobreza aumentou”. “Apesar dos esforços para aumentar o crédito tributário infantil e o salário mínimo”, continua ele, “ambos eram consideravelmente mais baixos em termos ajustados pela inflação quando Biden deixou o cargo do que quando entrou. Apesar de toda a ênfase que colocou nos trabalhadores norte-americanos, Biden foi o primeiro presidente democrata em um século que não expandiu permanentemente a rede de proteção social”. Conclusão: “Os dirigentes políticos não devem mais ignorar o essencial em busca de soluções heterodoxas fantasiosas”. O que foi rejeitado como ortodoxia neoliberal estaria vivo e bem, e ofereceria o único caminho a seguir.
Um regime internacional está sendo enterrado, ou está ressuscitando, como Lázaro? O impasse entre os vereditos destes especialistas tem seu correlato no panorama político, em que o conflito entre neoliberalismo e populismo, os adversários que se confrontaram em todo o Ocidente desde o início do século, tornou-se cada vez mais explosivo, como demonstram os acontecimentos das últimas semanas – mesmo que, apesar de todas as suas aparentes concessões ou recuos, o neoliberalismo mantenha a vantagem. O primeiro sobreviveu apenas por ser capaz de reproduzir o que ameaça derrubá-lo, enquanto o segundo cresceu em magnitude sem avançar numa estratégia relevante. O impasse político entre os dois não acabou: quanto tempo durará é uma incógnita.
Isto quer dizer que não se pode esperar qualquer mudança séria no modo de produção existente, até que um conjunto coerente de ideias econômicas e políticas, comparável aos paradigmas keynesianos ou hayekianos de outrora, tenha tomado forma como um caminho alternativo de gerir as sociedades contemporâneas? Não necessariamente. Fora das zonas centrais do capitalismo, pelo menos duas alterações de grande importância ocorreram sem que nenhuma doutrina sistemática as imaginasse ou propusesse antecipadamente. Uma foi a transformação do Brasil com a revolução que levou Getúlio Vargas ao poder em 1930, quando as exportações de café de que sua economia dependia entraram em colapso na crise e a recuperação foi pragmaticamente conseguida através da substituição de importações, sem o impulso de qualquer teoria antecipada. A outra, ainda mais abrangente, foi a transformação, após a morte de Mao, da economia planificada na China, na Era da Reforma presidida por Deng Xiaoping, com a introdução do sistema de responsabilidade das famílias na agricultura e a arrancada, por empresas das vilas e aldeias, rumo à mais espetacular explosão sustentada de crescimento econômico de que há registro na história – o que também foi improvisado e experimental, sem qualquer tipo de teorias pré-existentes. Serão estes casos demasiado exóticos para terem qualquer influência no coração do capitalismo avançado? O que os tornou possíveis foi a magnitude do choque e a profundidade da crise que cada sociedade sofreu: a recessão no Brasil, a Revolução Cultural na China – equivalentes tropical e oriental dos golpes na autoconfiança ocidental durante a Segunda Guerra Mundial. Se se desfizer em algum momento, no Ocidente, a descrença em qualquer alternativa, é provável que um feito comparável seja responsável por isso.
1Nye tornou-se presidente do Conselho Nacional de Inteligência e secretário adjunto da Defesa na administração Clinton.
2Forsyth e Notermans tiveram o cuidado de terminar seu relato destacando que não estavam oferecendo explicações causais para as sucessivas mudanças sistêmicas que narravam. Notermans, o mais prolífico dos dois, tornou-se um notável crítico do neoliberalismo – um termo que só se generalizou neste século – do ponto de vista de uma social-democracia friamente realista, produzindo, entre outras coisas, a melhor análise do modelo econômico do imposto de renda com alíquota única no país para onde se mudou: “An unassailable fortress? Neoliberalism in Estonia”, em Localities (2015).
3Para entender o conceito de N-grama, consulte a Wikipedia, em https://pt.wikipedia.org/wiki/N-grama
4Oxford, 432 pp., setembro de 2023.
5Allen Lane, 384 pp., junho de 2024.
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