O vírus e a ilusória redenção automática

Há esperança tola no desabamento do neoliberalismo. Mais provável é que tudo se desenrole como na crise de 2008. No Brasil, Bolsonaro é retrato da decadência da direita — mas só cairá se houver projeto da esquerda

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Por Philippe Scerb | Imagem: Laerte

Pode parecer contraditório, mas a pandemia tem despertado uma esperança que não se via há algum tempo na esquerda. Analistas há pouco descrentes no fortalecimento de organizações e ideias progressistas têm visto num acontecimento improvável o potencial de alterar o curso previsto da história. É como se o vírus, além de matar milhares de pessoas, fosse também capaz de afligir o corpo doente do neoliberalismo.

Primeiro, ele afetaria diretamente e, de forma positiva, a consciência das pessoas. Em meio à comoção social provocada pelo colapso de redes hospitalares, voltaríamos a reconhecer a importância dos serviços públicos. Já com a desigual capacidade das pessoas em sobreviver ao isolamento social, estaríamos testemunhando uma onda inédita de solidariedade. De jovens que fazem as compras a vizinhos idosos à doação maciça de cestas básicas pelas classes médias, os efeitos desse momento se estenderiam para além do fim da pandemia.

Segundo, as consequências econômicas desastrosas do confinamento levariam ao abandono de uma agenda liberal marcada pela austeridade. Para além do socorro inevitável aos sistemas de saúde, às empresas incapazes de operar e às pessoas carentes de emprego e renda, o Estado teria que reassumir um papel ativo na economia. Com planos mais ou menos ambiciosos de investimento e políticas monetárias heterodoxas, não falta quem veja nessas iniciativas o espírito virtuoso do New Deal.

Outra época se anunciaria. E para melhorar as coisas, o fenômeno político que aparecera como alternativa única, embora enganosa, ao mal-estar com a democracia liberal estaria dando amplos sinais de esgotamento. As contradições do populismo de direita estariam emergindo à mais clara luz do sol. Por um lado, a reticência a acatar as orientações das autoridades de saúde e a obsessão com tratamentos controversos oporia líderes demagogos a uma revalorização do conhecimento científico. Por outro, a aceleração de tendências autoritárias em meio à desconfiança de seu preparo para lidar com a crise levaria, finalmente, a um certo consenso quanto à urgência de conter os riscos que esses líderes representam.

O exemplo brasileiro é paradigmático. Por aqui, a pandemia do coronavírus poria a nu os limites mais óbvios de Bolsonaro. Pois fustiga o programa ultraliberal de Paulo Guedes, questionado por setores do governo e por uma sociedade ávida pela distribuição de recursos. Mas, sobretudo, porque favorece uma degeneração do bolsonarismo cujos contornos já se delineavam antes da pandemia e que toma corpo na demissão de dois dos seus ministros mais razoáveis. O primeiro deles, ao abraçar convenções mínimas no combate ao vírus, se tornara um verdadeiro estadista ao lado do presidente. O segundo, espécie de lastro republicano do governo, levou consigo qualquer confiança no espírito probo de Bolsonaro. Na medida em que, ao abrir mão de ambos, o presidente afunda o país numa crise política sem precedentes, compreende-se que testemunhamos uma renovada estima popular pela ciência e pelas instituições democráticas.

Parafraseando o famoso slogan de campanha de um deputado-palhaço, é difícil imaginar a piora do sistema político em que vivemos. Contudo, depositar nossas esperanças de transformação em um vírus denota apenas resignação à ausência de alternativa pelas vias convencionais da organização e da ação política. Infelizmente, não podemos esperar que a pandemia resolva os problemas do capitalismo e da democracia liberal no nosso lugar.

O coronavírus e a história

São várias as demonstrações de que, face à insegurança e à vulnerabilidade impostas pela pandemia, a solidariedade e o cuidado com o próximo têm pautado inúmeras ações individuais e coletivas. O uso corriqueiro de máscaras revela, da maneira mais singela, a preocupação em não propagar o vírus ao outro e manter a comunidade sã. Daí a pensar que as manifestações de solidariedade que temos visto significam uma alteração na consciência das pessoas, no entanto, há um salto importante. Por mais traumática que seja a experiência imposta pelo coronavírus, ela não parece suficiente, por si só, para alterar as preferências e as expectativas dos cidadãos acerca da organização social à qual pertencem.

Na medida em que os estímulos cotidianos continuam apontando para alternativas individuais para o bem-estar e a realização pessoal, é pouco provável uma reversão na maneira de encarar a realidade. Em meio à própria disparidade entre tratamentos públicos e particulares de saúde, a saída mais desejada passa antes pelo acesso à rede privada do que pela melhoria improvável do sistema universal. O vírus não parece fazer cócegas em uma subjetividade neoliberal com profundas raízes materiais e culturais – pelo menos, não no curto prazo.

Deveríamos também virar os olhos para o outro lado e enxergar reações menos virtuosas ao caos provocado pela pandemia. Pois da mesma maneira que a saúde da comunidade passa pela saúde de cada um dos seus membros, todo indivíduo é uma potencial ameaça. E aqui os traços de distinção são reforçados e dão margem a casos crescentes de agressão e preconceito. Do ponto de vista político, multiplicam-se iniciativas xenofóbicas que imputam ao outro a responsabilidade pela doença e limitam a circulação e os direitos de minorias.

Mais contraditória ainda é a expectativa quanto aos efeitos político-econômicos do vírus. Diante da constatação dos limites de um Estado enfraquecido para a retomada das atividades produtivas, seria inevitável a retomada de um certo keynesianismo. Demanda que viria de trabalhadores desassistidos ou desempregados, mas também de empresários carentes de demanda, e à qual se dobrariam as gestões fiéis ao mais puro dogma neoliberal. Até o governo que tem em Paulo Guedes o seu posto Ipiranga tem ensaiado medidas no sentido da retomada de investimentos públicos e de políticas monetárias heterodoxas para os padrões nacionais.

No entanto, duas advertências se fazem necessárias aos que apostam nos efeitos redistributivos do renascimento do Estado interventor. Primeiro, convém registrar que o discurso da austeridade não sumiu do debate. Pelo contrário, acadêmicos ortodoxos e representantes do mercado e do governo têm alertado de maneira ostensiva para os riscos do afrouxamento fiscal e do endividamento público. Até críticas ao ritmo de obras públicas têm servido para defender o caráter pontual da flexibilização da agenda liberal. Provisório, o socorro do Estado serve apenas para restabelecer um mercado capaz de se autorregular e antecede a retomada de um programa de reformas que supostamente já tirava o país da crise.

Em segundo lugar, devemos nos ater à experiência mais recente de intervenção pública como resposta a uma crise econômica. Referência, inclusive, para a maioria das medidas estudadas pelos especialistas de hoje – e de sempre. Qual seja, a reação de países europeus e dos Estados Unidos à debacle de 2008. Embora arrojada para os padrões recentes, pois apoiada na emissão massiva de moeda, ela priorizou o resgate do mercado financeiro em detrimento do pleno emprego ou da ampliação dos serviços públicos. Nos Estados Unidos, a queda do desemprego foi concomitante à precarização das vagas abertas. Na Europa, acelerou-se a tendência de esvaziamento do Estado-providência por imposições de uma União obcecada com a austeridade. A desigualdade social nesses países só fez aumentar desde então.

A frequente comparação das consequências do coronavírus com aquelas da Segunda Guerra Mundial são simplesmente descabidas. Pois se acerta na constatação de que o Estado é tragado pelo espaço vago deixado pelo mercado, ignora um fator crucial para os efeitos distributivos de uma maior participação estatal na economia. A saber, a correlação de forças entre os grupos sociais em conflito. Em 1945, a União Soviética despontava como potência global, os operários fabris constituíam parcela importante dos trabalhadores europeus, se organizavam em grandes sindicatos e faziam greves regulares, e os partidos comunistas e social-democratas estavam entre as principais forças políticas do mundo ocidental. A formação dos Estados de bem-estar não era resultado exclusivo de programas de investimento público coordenados pela burguesia.

O coronavírus, por sua vez, não parece capaz de alterar a correlação de forças por trás da nossa ortodoxia econômica. Ao contrário, o que temos visto é a ampliação de índices já elevados de desemprego, o aprofundamento da flexibilização das legislações trabalhistas e o rebaixamento das expectativas dos trabalhadores quanto ao escopo dos direitos que podem reivindicar e ao futuro com que podem sonhar. A pandemia tem provocado mortes, doenças, confinamentos. Pouco mais que isso.

O bolsonarismo em crise?

Entre as vítimas do vírus não estaria apenas a face mais recente e radical do capitalismo, porém. A revolução autoritária em curso, apoiada na insatisfação com uma democracia de baixa intensidade compatível com a agenda neoliberal, também teria seus dias contados. Afinal, se por um lado a pandemia oferece a líderes autoritários a oportunidade de maior concentração do poder, por outro ela expõe os limites de figuras com poucos predicados para além da demagogia mais rasteira.

Governado por alguém que relativizou a importância do vírus e, depois, a gravidade das mortes causadas por ele, o Brasil seria apenas a expressão mais acabada da debilidade do populismo reacionário. A crise do bolsonarismo tem sido interpretada, então, como uma espécie de redenção da democracia. Arrependidos, os eleitores de Bolsonaro assumiriam o engano de seu voto e cerrariam fileiras ao lado de forças sociais comprometidas com o Estado de direito. A derrocada da revolução conservadora representada pelo ex-capitão seria uma questão de tempo.

Legitimamente preocupados com os sinais de radicalização do bolsonarismo, partidos políticos e organizações da sociedade civil do campo progressista têm apelado à resiliência das instituições. Caberia a elas frear o ímpeto autoritário do presidente e restituir uma ordem capaz de garantir o arcabouço democrático. Uma leitura que orienta uma ação contraditória e incorre em três principais problemas. Primeiro, desconsidera os limites da mesma ordem que conduziu o golpe de 2016 e cujos efeitos estão na origem da eleição de Bolsonaro – mais consequência do que causa da crise da democracia. Segundo, subestima a força do presidente e a popularidade significativa de suas escolhas e de seu método de governo. Terceiro, superestima o apreço por um regime que não passa de uma nomenclatura vaga e esvaziada de sentido para boa parte das pessoas.

A frustração esclarecida com o tímido efeito da queda de Moro sobre a aprovação do governo ilustra os limites de uma estratégia de combate ao bolsonarismo que passe pela defesa das instituições e pela “união de forças democráticas”.

As apostas mais eufóricas quanto ao derretimento da gestão ignoraram, de cara, que Bolsonaro já havia perdido o apoio de uma direita mais moderada com sua reação controversa ao vírus. A queda do ministro da Saúde extinguiu qualquer expectativa de que o governo poderia ser tutelado pelos imperativos da razão. Moro não foi o primeiro adulto a sair da sala.

Mas se Bolsonaro resistira bem ao desprezo pela ciência, disseram analistas, ele não passaria incólume à perda do símbolo máximo do combate à corrupção. O que não consideraram é que a corrupção não é – e nunca foi – central à maior parte de sua base social. É falsa a dicotomia entre lavajatismo e bolsonarismo como dois movimentos mutuamente excludentes. Na realidade, ambos sobrepõem estratos médios ressentidos com os efeitos redistributivos do lulismo. A corrupção foi simplesmente um pretexto ético para uma revolta que tinha sua origem em uma sutil contestação a hierarquias sociais e culturais estabelecidas.

É claro que a revolta com os escândalos trazidos à luz pela operação Lava Jato teve dimensões genuínas. Mas não foi ela quem despertou os ânimos mais radicais no sentido do antipetismo, do apoio a Moro e do voto em Bolsonaro.

A rachadinha, o Queiroz, os laranjas do PSL, as acusações de Moro até podem constranger a base do governo. Mas na medida em que a alternativa a Bolsonaro é o retorno a uma ordem movida por pactos escusos de atores suspeitos e que a mobilização mais estridente vem de órfãos de uma esquerda atônita, os bolsonaristas sabem de que lado estão.

Por último, e mais importante, as expectativas de enfraquecimento do governo se fundam no que não passa de uma doce ilusão: a ideia de um apreço difuso na sociedade brasileira pela democracia liberal.

A eleição de Bolsonaro, com suas referências explícitas ao regime militar, consistiu numa escolha clara pela autoridade. Por mais contraditório que seja, grande parte dos brasileiros foi seduzida por sua disposição em executar um programa sufragado pelo povo em detrimento de uma estrutura institucional a serviço de grandes interesses privados. Quando Moro se mostra pouco comprometido com o sentido da mudança, ele perde seu valor e pode ser substituído sem qualquer pudor.

A própria gestão da pandemia é reveladora da opção autoritária. Contraintuitiva, a reação de Bolsonaro lhe tirou a oportunidade de juntar a nação atrás de si contra um inimigo comum. No entanto, ao desrespeitar convenções e poderes instituídos, ele cultiva o espírito subversivo que o levou à presidência e acena a pequenos e grandes empresários prejudicados pelo confinamento. Nem por isso se torna o preferido do grande capital, mas preserva o apoio de uma classe cuja alternativa própria de poder se mostrou inviável nas urnas.

E se o bolsonarismo tem perdido popularidade entre setores da alta classe média, ele tem ganhado simpatia entre as camadas populares. Para quem a morte sempre foi uma realidade próxima e o sistema político parece pouco empenhado em resolver suas mazelas, o acesso imediato a alguma fonte de renda se impõe a qualquer valor imaterial.

O vírus, talvez infelizmente, não torna o passado mais recente desejável. Bolsonaro segue sendo a única alternativa real a uma ordem corrompida por meio da qual não se vislumbra saída para a crise que vivemos. Daí vem a sua força. Pois ao terço dos brasileiros que consideram sua gestão ótima ou boa, deveríamos acrescentar ao menos uma parcela daqueles que a julgam razoável – tudo o que ela não é.

É evidente que em meio à ameaça de direitos civis, políticos e sociais conquistados a duras penas, sua defesa é urgente. Deveríamos nos questionar, porém, acerca dos meios de fazê-lo. Qual é, afinal, o apelo de nossas instituições para deter a vocação autoritária do bolsonarismo e colocar algo aceitável em seu lugar? O recurso a elas soa melancólico e desesperado.

O mesmo poderíamos dizer do chamado por uma frente democrática ampla. O que significa essa democracia que queremos defender para trabalhadores preocupados com o dia de amanhã? Sua cara mais visível é um parlamento controlado por grandes corporações e que ultimamente tem apenas patrocinado a degradação da vida dos governados.

Ao tentar reunir, em comemoração ao 1º de maio, figuras como Fernando Henrique Cardoso, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, a esquerda revela não ter uma alternativa substantiva a um governo reacionário e a uma ordem em crise que ele, ao menos, promete superar. É preciso oferecer uma perspectiva de futuro com a qual o povo possa sonhar. O vírus não fará isso em nosso lugar. E disputar o Centrão com Bolsonaro não parece ser o melhor caminho.

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2 comentários para "O vírus e a ilusória redenção automática"

  1. Bernard Godillon disse:

    Parabéns Philippe. Vc foi contaminado pelo vírus da alta competência e magnitude intelectual além da sabia notoriedade em interpretar a ciência política e social deste Brasil naufragado mundialmente.

  2. Natal Mauro Vanzelotti disse:

    Por favor entendam que não me passou um entendimento confrontando com sua linha programática. Isso posto, como não tenho observado uma renovação consistente e mais moderna.

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