Hiperdemocracia: O pensamento de Jacques Attali
Num futuro próximo, os Estados serão substituídos pelo “totalitarismo de mercado” – violento e vigilante? Diante de múltiplas crises, pode haver um “final feliz”? Pensador francês da Complexidade apresenta três premissas para superar sonho tóxico do “eurocentrismo civilizado”
Publicado 07/11/2025 às 16:35 - Atualizado 07/11/2025 às 16:38

“Quando Thomas More sonhava em fazer com
que se elegessem os dirigentes da Utopia,
a sua cidade imaginária, ele não imaginava
que os ministros do seu próprio país seriam,
quatro séculos depois, eleitos pelo povo todo.
(…) É preciso hoje ousar fazer
o mesmo ato de fé no futuro.”
Jacques Attali
Uma crescente constatação de fim dos tempos (no sentido científico e ambiental do termo, e não escatológico) tem incomodado um expressivo número de cientistas e filósofos contemporâneos. No atual estágio agônico da conflituosa existência humana, a percepção de que um mal-estar civilizatório de caráter terminal, sobretudo nos âmbitos geopolítico e ambiental, tem sido cada vez mais a tônica daqueles que se ocupam em refletir sobre as aflições da atualidade. O fato é que, entre muitos pensadores notáveis, uma visão pessimista da realidade humana tem sido uma constante ao longo da história, desde os pré-socráticos como Anaximandro, Heráclito e Parmênides, passando por Schopenhauer, Nietzsche e Freud, até os mais recentes Zygmunt Bauman, Byung-Chul Han, Noam Chomsky, John Gray, Jeffrey Sachs e tantos outros. O que parece confirmar que a humanidade sempre esteve implicada numa perene crise civilizatória, aparentemente insuperável.
Dado o elevado e descontrolado grau de devastação planetária já perpetrado até aqui pela insensatez antropocêntrica e, sobretudo, que o aumento da emissão de gases de efeito estufa e a consequente aceleração da elevação da temperatura média global continuam em curso, mesmo diante das evidências do colapso civilizatório, pode-se afirmar que já está contratado um futuro terminal para a humanidade nas próximas décadas. Uma manifestação sintomática dessa percepção agônica nos dias atuais veio do filósofo italiano Franco Berardi (Bifo), que recentemente chegou à conclusão de que “a experiência humana acabou”. Como não há nenhum esforço multilateral consistente de governança global para mitigar os processos de colapso climático e de crescente instabilidade geopolítica em andamento, o prognóstico de Bifo pode sim vir a ser uma verdade incontornável e, talvez, até mesmo irreversível.
No entanto, há aqueles raríssimos pensadores que, amparando-se nas mais recônditas forças antropológicas que impulsionam o ambíguo e contraditório mundo humano, sempre conseguem ver brechas de esperança que possam desviar a humanidade desse colapso civilizatório ao qual ela aparenta estar irremediavelmente condenada, mesmo que as distrações do inebriante e admirável mundo do progresso tecnológico e material digam o contrário. Esses intelectuais mais conscientes da ambivalência humana, como é o caso do centenário filósofo Edgar Morin, propositor do conceito de policrise nos anos 1970, normalmente se definem como oti-pessimista, reconhecendo que o futuro humano é incerto, misturando elementos de esperança e desesperança. Identificam o caráter terminal do nosso tempo, mas também percebem algum potencial de regeneração.
Segundo Edgar Morin, “a missão do intelectual não é apenas formular os problemas humanos fundamentais e globais, inclusive políticos, mas também saber formulá-los em sua complexidade.” Seu conterrâneo, o escritor francês Jacques Attali, com quem compartilha uma grande sintonia de visões de mundo e de compreensão acerca da História e dos impasses civilizatórios que ela deixou como legado na atualidade, é um dos poucos exemplos dessa categoria de intelectual que sabe não só interpretar criticamente os eventos históricos que arrastaram a humanidade para o atual estágio agônico, mas também conectar os muitos elementos que integram a complexidade do mundo humano e suas possibilidades de superação.
Oriundo de uma família judia argelina, nascido em 1943, Jacques José Mardoché Attali é um dos pensadores contemporâneos que merece bastante atenção quando o assunto é a atual agonia civilizatória. Crítico das disfunções do sistema-mundo capitalista e do suposto avanço civilizatório da modernidade, atualmente é CEO da A&A, uma empresa internacional de consultoria em estratégia, com sede em Paris, e fundou, com apoio de Muhammad Yunus e Arnaud Ventura, a ONG Positive Planet, uma organização internacional sem fins lucrativos que, em 23 anos, já apoiou mais de 11 milhões de microempresários na criação de negócios positivos, nos bairros carentes da França, África e Oriente Médio. Foi também cofundador da ONG Action Contre la Faim (ACF), criada na França em 1979.
Atuou como conselheiro e assessor do governo de François Mitterrand (1981-1991) e foi o fundador e primeiro presidente do Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (BERD), atuando de 1991 a 1993. Portanto, vivenciou e conhece bem o pragmatismo que sustenta e mantém a realpolitik, além de ser um dos raros economistas que não reduz o mundo à economia. Consciente da nossa frágil condição civilizatória, Attali reconhece que o Mercado é um dos principais agentes dessa fragilidade.
Jacques Attali é um pensador multifacetado, conhecido mais pelo seu ativismo político e social, mas é também um escritor prolífico, tendo publicado mais de oitenta livros (dentre os quais 30 dedicados a pensar o futuro), vendidos em mais de 10 milhões de cópias e traduzidos para 22 idiomas. Entre suas obras mais relevantes para a compreensão do longo processo civilizatório, destacam-se: 1492: os acontecimentos que marcaram o início da era moderna (1991), Os Judeus, o dinheiro e o mundo (2002) e Uma breve história do futuro (2006) – obra sobre a qual este texto se debruçará mais. Também escreveu as biografias de figuras expressivas como Pascal (2000), Marx (2005), Ghandi (2007), dentre outros.E ainda tem sensibilidade e habilidade artísticas para se dedicar à regência de orquestras ao redor do mundo.
Nos últimos anos, Attali vem disseminando a ideia de que humanidade precisa urgentemente substituir a economia de mercado por uma “economia da vida”, proposta defendida em um de seus mais recentes livros, La economía de la vida: prepararse para lo que viene (Spanish Edition, 2021), publicado quando a pandemia da Covid havia eclodido. Nessa obra ele antevê novos modos de vida “para pouparmos nossas crianças de uma pandemia aos 10 anos, uma ditadura aos 20 e uma catástrofe climática aos 30”. Attali também escreve regularmente em sua página oficial sobre geopolítica, sociedade, economia, futuro, arte e cultura.
Embora não tenha formação em antropologia e sociologia, seu trabalho frequentemente se aprofunda nos aspectos fundamentais do comportamento humano, de sua conflituosa história socioeconômica e de sua evolução cultural. Attali atua como uma espécie de visionário, utilizando análises históricas e econômicas, e observando como as ações humanas e suas estruturas sociais podem prenunciar o futuro. Assim, ele enfatiza a importância da antecipação — a capacidade de discernir padrões emergentes e se preparar para o que está por vir — como um aspecto crucial para adaptação e sobrevivência humanas nestes tempos terminais.
A fragilidade da democracia – a insuperável ambivalência entre apropriação e libertação
“A barbárie é o mais provável.
O político é uma rolha flutuando
à deriva, na tempestade das paixões.”
Jacques Attali
Três principais aspectos do mundo natural parecem distinguir o Homo sapiens moderno de seus ancestrais (o que inclui seus parentes animais): primeiro a noção de Complexidade, a percepção de que somos parte de uma teia da vida, a partir da qual decorrem os outros dois aspectos: o bem comum (gratuidade) e o bom tempo (fruição). Entenda-se aqui como Homo sapiens moderno uma condição humana específica surgida por volta de seis mil anos atrás, em função de uma provável bifurcação cultural e antropológica, a partir da qual ele perdeu a conexão com esses três aspectos inarredáveis da realidade. Trata-se da hipótese kurgan que abordei em vários textos publicados pelo Outras Palavras.
A democracia, mesmo com suas nuances inerentemente conflitivas, certamente é a única forma de convivência humana que procura nos reconectar com essas nossas ancestralidades, que eram amparadas naturalmente em relações de interdependência, gratuidade e fruição – e foram quase que totalmente apagadas pela trágica história de guerras, massacres e devastação decorrentes do longo processo supostamente civilizador do Ocidente. Se a democracia, como dizia o neurobiólogo chileno Humberto Maturana, é uma nostalgia de um tempo em que os seres humanos viviam integrados sob um modo de vida cooperativo e não-hierárquico (matrístico), uma hiperdemocracia como fenômeno emergente (sobre a qual abordaremos mais adiante), tal como imaginada por Attali, talvez represente a saída que poderá resgatar esse viver ancestral suprimido pelos ideais do Ocidente.
Talvez seja exatamente por conta dessa nostalgia que a democracia se constitui como o melhor regime de convivência humana. Tanto é assim que mesmo aquelas nações hoje classificadas como autocráticas (ou em processo de autocratização) se autoproclamam democráticas. Mas se esse regime é tão desejado, o que explicaria o recorrente fenômeno das regressões e supressões democráticas ao longo da história? Após 2.500 anos do surgimento da democracia, como compreender o crescente e perigoso declínio democrático mundial que a humanidade vivencia neste primeiro quarto do século XXI? Por que as democracias se revelaram, historicamente, regimes de governo tão frágeis?
A melhor resposta a esta contradição inerente à convivência humana talvez seja a compreensão de que os sucessivos experimentos democráticos, deste aquele que irrompeu na Grécia Antiga até a democracia liberal celebrada nos anos 1990 como Fim da História, sempre estiveram condicionados aos ideais de apropriação, domínio e controle de uma cultura estabelecida que contraditoriamente sempre negou a democracia. Estamos falando da cultura hegemônica ocidental.
Até a década de 1990, o longo processo civilizador do Ocidente seguia uma linha reta. Predominava até essa época o pensamento hegeliano, a ideia de que um suposto aprimoramento da conflituosa convivência humana, em curso desde o surgimento da concepção do lógos (conhecimento, ratio ou razão) na Grécia Antiga, é uma inevitabilidade histórica. A partir do início dos anos 2000, passada a ilusão de que a democracia liberal estadunidense, a ser irradiada para o resto do mundo, representaria a forma de governo final da humanidade, volta a prevalecer a visão de mundo dos schopenhauerianos. Aqueles que não vislumbram possibilidade de cura para a insensatez humana parecem agora representar a visão predominante, que se inserem numa nova categoria chamada colapsologistas.
Isso só comprova que a insuficiência de lastro na realidade tem sido uma constante nas interpretações que grandes pensadores fizeram (e continuam fazendo) da conflituosa história da humanidade e, sobretudo, da imponderável condição humana. A esse respeito, vale lembrar a elucidativa percepção do escritor britânico John Gray: “os trabalhadores comunitários de Marx, os indivíduos autônomos de Stuart Mill e o absurdo Übermensch de Nietzsche, entre muitos outros, nenhuma dessas criaturas fantásticas chegou a ser vista por olhos humanos.” A visão racionalista e teleológica do mundo, que sempre sustentou o ideário de grandes expoentes da filosofia e da ciência, é, no fundo, uma grande apropriação ocidental. Na verdade, ela é o resultado de um longuíssimo processo cultural de apropriação infinita e irrestrita da realidade em prol dos privilégios de uma ínfima minoria. Logo, o mais razoável é pensar que “a natureza”, como também afirma Gray, “é governada pelo acaso e a necessidade, por leis e constantes naturais, e não por receitas sobre o bem geral. Se existe um reino do valor além do mundo físico, ele não pode ser alcançado pela razão humana.”
Portanto, o máximo que se pode afirmar em relação à realidade que nos cerca e nos impacta incessantemente é que, assim como a infinidade de entrelaçamentos dos processos complexos que compõem a realidade é governada por padrões implícitos, a história da humanidade também é governada por padrões culturais, por visões de mundo e por comportamentos decorrentes que se conservam na História. Aprendemos com as recentes teorias do Caos (1963) e dos Fractais (1975) que os fenômenos da natureza, aparentemente aleatórios, são orientados por padrões subjacentes, ou seja, seguem estruturas e comportamentos regulares que surgem a partir de processos e interações complexos. É a partir desses padrões, cuja natureza é caótica e não-linear (portanto, extremamente sensíveis a pequenas perturbações que podem provocar inesperadas bifurcações em suas estruturas e comportamentos), que novas ordens emergem e se manifestam segundo características muitas vezes previsíveis em certos aspectos. Esses padrões culturais podem inclusive explicar as grandes bifurcações da História como 476 d.C., 1453, 1789, dentre outras.
Diante do atual contexto de mudança de época em que vive a humanidade, Jacques Attali, ao reconhecer que a histórica fragilidade da democracia consiste na perene ambivalência entre os desejos humanos de apropriação e de libertação, conseguiu vislumbrar o desfecho mais provável da atual depressão civilizacional crônica que a humanidade deve enfrentar nas próximas décadas. Com a sua incomum capacidade de discernir padrões emergentes e de antever o que o futuro pode nos reservar, Attali percebeu que a emergência de uma democracia desapropriada dos ideais greco-judaicos que forjaram o Ocidente será uma necessidade premente e indispensável à adaptação e, sobretudo, à sobrevivência da humanidade nesse mundo terminal que se avizinha.
Como abordaremos mais adiante, uma de suas principais teses sobre o futuro da humanidade é a do hiperimpério seguido do hiperconflito, as novas conformações civilizatórias que a humanidade deve enfrentar nas próximas décadas, nas quais o poder não estaria mais sob a tutela dos Estados-nação, mas sim de uma rede comercial policêntrica, predatória, transnacional, desregulamentada e desterritorializada, impulsionada pelo nomadismo, pela tecnologia e pela incessante e contraditória busca individual por domínio, controle, liberdade e prazer, diante de mundo cada vez mais insociável e inabitável.
Os padrões da História: “um continuum entre mercado, democracia e violência”
“A liberdade, de mercado e política,
é mais do que nunca o motor da História.”
Jacques Attali
Na percepção de Attali, “existe uma estrutura da História que permite projetar a organização das décadas vindouras”, ou seja, há padrões, regras ou leis da História que “ainda estarão operando no futuro, além de predizer o seu curso”, e que portanto nos permitem antever com razoável assertividade para onde estamos indo. Digo assertividade porque, após mais de 20 anos da concepção das ideias de Attali, muito bem articuladas nos seus muitos ensaios, é possível hoje, ao leitor mais atento às transformações que estão ocorrendo no mundo, observar que muitos dos seus prognósticos estão se confirmando. A principal premissa na qual Attali se ampara para compreender o fluxo da História, com base nas informações mais remotas sobre as culturas (modos de vida) humanas, é a de que “a mesma força está sempre em curso: a da libertação progressiva do homem de todas as coerções”. Dizendo de outro modo, a cultural patriarcal milenar, que forjou o Ocidente e hoje está representada pela entidade Mercado, pode estar bem próxima do seu ponto de saturação.
Attali narrou no seu livro Uma breve história do futuro (2006), com sua peculiar compreensão das forças que moveram a longa história do Homo sapiens, como a humanidade chegou até aqui e como ela se projeta para o futuro, assumindo sérios riscos de estar se inviabilizando num horizonte muito próximo caso não promova a ruptura civilizatória que, segundo Attali, precisar abraçar uma hiperdemocracia desapropriada da lógica da “democracia de mercado” que dominou os últimos quinhentos anos.
No entendimento de Attali sempre coexistiram três poderes: o militar (Ordem Imperial), o religioso (Ordem Ritual) e o mercado (Ordem Comercial), que se alternaram, controlaram as riquezas e forjaram o curso da história da humanidade. Mais do que abordar o futuro, ele narra nesse magistral livro a longa história da Ordem Comercial, identificando os seus padrões de funcionamento. Uma história modelada ao longo dos últimos há 3 mil anos, que se confunde com a história da relação entre as duas forças que conduziram a humanidade até os dias atuais: o mercado e a política, as quais criaram a democracia de mercado e o sistema capitalista tal como conhecemos hoje. Essa simbiose entre mercado e política explicaria a evolução da visão econômica de mundo que governa a conflituosa convivência humana.
De acordo com Attali, os primeiros esboços de democracia de mercado remontam a doze séculos antes de Cristo. Naqueles tempos longínquos, “mais de cinquenta impérios convivem, combatem entre si ou se esgotam”. Nessa mesma época, “algumas tribos vindas da Ásia se instalaram no litoral e nas ilhas do Mediterrâneo”. Diante do ambiente de profunda degradação social gerado pela força da Ordem Imperial, elas perceberam que “o comércio e o dinheiro são as suas melhores armas. Mar e portos, os seus principais terrenos de caça”. A partir de então, a Ordem Comercial foi, gradualmente, se estabelecendo como uma eficiente forma de controle, dominação e manutenção da ordem entre os humanos.
Cabe destacar aqui que a expressão “democracia de mercado” é ilustrativa e, portanto, comporta relevâncias históricas distintas. Comumente ela é mais associada ao período pós-Segunda Guerra Mundial, quando se alcançou uma curta experiência de capitalismo combinado com Estado de bem-estar social restrita a alguns países do Norte Global, o tal sonho irrealizável do “capitalismo democrático” que os americanos tanto desejaram impor ao mundo. No entanto, ela é utilizada aqui para caracterizar o modo de vida hegemônico dos mais recentes quinhentos anos da História, como o faz Attali, compreendidos entre os acontecimentos na Antuérpia da imprensa pujante de 1500, considerada o primeiro centro financeiro da Europa, e o que acontece, desde 1980, no Vale do Silício de onde vieram os algoritmos que desnorteiam o modo de viver atual e que se encarregaram de expandir ao resto mundo a apropriação acumulativa de capital pela via do rentismo financeiro.
Esses dois núcleos comerciais, como os demais que os entremearam (Gênova, 1560; Amsterdã, 1620; Londres, 1788; Boston, 1890 e Nova Iorque, 1929) e também aqueles que os antecederam (Bruges, 1200 e Veneza, 1350), cada qual, a seu modo, utilizaram ferramentas de transmissão de dados e de indução do comportamento humano para impulsionar os ideais greco-judaicos do progresso, da razão e do individualismo, os mitos que eclodiram em 1492 e que ainda sustentam o Mercado na atualidade.
1492: irrompe a democracia de mercado eurocentrista
“Não há nação sem Estado.
Nesse momento, aparecem a razão de Estado
e o homem político moderno,
assim como o cálculo econômico e o mercado.
A democracia e a economia de mercado serão
elementos constitutivos desse nacionalismo nascente.”
Jacques Attali, sobre 1492
É no ano de 1492, considerado por muitos historiadores um ano singular – não só pela descoberta do Novo mundo, mas por seus desdobramentos no contexto mundial –, que a Ordem Comercial se sobrepõe com mais vigor sobre as demais. Os muitos eventos combinados que ocorreram em 1492 forjaram o nascimento, imbricado, do Estado-nação e da economia de mercado, iniciando o longo período em que a humanidade passou a ser conduzida pelas forças resultantes dessa simbiose, a democracia de mercado, que aparenta aproximar-se do seu ocaso na contemporaneidade.
Foi em decorrência desse entrelaçamento orgânico entre Estado e mercado que, gradualmente, surgiu a sociedade de mercado, deixando para trás os absolutismos medievais. A partir de então, a Ordem Comercial assumiu o protagonismo da História, antes sob a duradoura hegemonia das Ordens Imperial e Ritual. Na avaliação de Attali, 1492 “é considerado como data importante não apenas por marcar a descoberta fortuita de um novo mundo enquanto se procurava outra coisa, mas também por condicionar e esclarecer o presente”. Para ele, “é o ano no qual a Europa se torna o que denominamos um Continente-História, capaz de impor aos demais povos um nome, uma língua, uma maneira de contar sua própria História, impondo-lhes ideologia e visão do futuro”.
Attali assim descreve o ano de 1492, cujos eventos mudaram o curso da História:
“A partir de 1492, a Europa promove-se a senhora de um mundo a ser conquistado. (…) Novos nômades, os europeus impõem ao planeta sua visão de História, sua criatividade, suas línguas, seus sonhos e suas fantasias. É na Europa que a economia mundial vai concentrar suas riquezas. Tudo isso não ocorre apenas pelo desvendamento de um continente. Em 1492 acontecem inúmeros outros eventos, na Europa e em outros lugares, cuja influência sobre a nova ordem mundial ultrapassa de longe a da viagem de Colombo. Acontecimentos maiores ou apenas simbólicos formam uma totalidade complexa, um ano quase único, no qual a Espanha desempenha papel espantosamente privilegiado. Cai o último reino islâmico da Europa ocidental; os últimos judeus são expulsos da Espanha; a Bretanha acaba por tornar-se francesa; a Borgonha desaparece para sempre; a Inglaterra sai de uma guerra civil. (…) A ordem econômica mundial transforma-se.”
Estes e outros eventos ocorridos em 1492 assentaram a ideologia do chamado Novo mundo, na qual, segundo Attali, a Europa impôs uma nova ordem política, que ele chama de Ordem Atlântica, regida sob três domínios: o da transcendência (Pureza), o do espaço (Estado-nação) e o do tempo (Progresso). O sonho de pureza serviu para a Europa desprender-se de suas raízes orientais, perder o que ainda tinha de tolerância, irradiar seu novo ideal para o Ocidente e, assim, justificar as expulsões, massacres e extermínios dos “impuros”. O século XX foi o ápice dessa busca insana por “pureza”.
O sonho do Progresso viabiliza-se com o desaparecimento dos impérios medievais e o surgimento do nacionalismo impulsionado, de um lado, pela razão de Estado e pelo homem político moderno e, de outro, pelo mercado e pela visão econômica de mundo. As monarquias absolutistas, que operavam sob a tutela do cristianismo, sucumbiram diante dessas novas forças e as instabilidades da civilização passaram a ser resolvidas, doravante, pela via do totalitarismo de Estado que teve sua culminância nas atrocidades do século XX. Foi assim que, a partir de 1492, estabeleceu-se o novo motor da História: uma revigorização da cultura (modo de viver) patriarcal milenar, desta vez camuflada sob a forma de democracia de mercado, que exerceu hegemonia nos últimos cinco séculos.
Attali entende que, agora no século XXI, essa Ordem Atlântica está sucumbindo para dar lugar a uma nova ordem mundial fundada sobre três novos princípios, os quais substituem os da ordem anterior: “na transcendência, santuário mundial (no lugar da Pureza), no espaço, integração regional (em vez de Estado-Nação), e no tempo, nomadismo institucional (substituindo o Progresso).” O que ele chama de hiperdemocracia será o catalizador dessa ruptura civilizacional, mas antes a humanidade deve encarar a difícil travessia da ordem mercadológica autocrática e multipolar, já inaugurada pelo avanço russo-chinês e pelo processo de autocratização estadunidense.
A sombria perspectiva de colapso no novo mundo-mercado policêntrico
“O mundo se tornará, provisoriamente, policêntrico,
gerido por umas dez potências regionais.
(…)
O capitalismo atingirá sua meta.
Destruirá tudo o que não for ele.
Transformará o mundo num imenso mercado,
cujo destino estará desconectado
do destino das nações.”
Jacques Attali
Contrariando o entendimento hegeliano do Fim da História que animou o Ocidente durante os anos 1990, Attali contestou, à época, o ideário predominante de que “a História não contará daqui para a frente nada além da generalização do mercado, depois da democracia, dentro das fronteiras de cada país.” Percepção na qual se imaginava que “os povos se libertarão por si próprios, pelo simples jogo do crescimento econômico, da transparência da informação e da expansão das classes médias.” Trinta e cinco anos após a ilusão do fim da História (Queda do Muro de Berlim – 1989), a civilização desviou-se para uma trajetória totalmente inesperada. Attali foi muito presciente ao antever que estávamos saindo da “linha reta da História”, quando previu que “por volta de 2025, sob o peso das exigências do mercado e graças a novos meios tecnológicos, a ordem do mundo se unificará em torno de um mercado que se tornou planetário, sem Estado.”
Os grandes pensadores que se notabilizaram ao longo da História, mesmo com suas divergências e contradições irreconciliáveis, invariavelmente interpretaram o mundo a partir de duas equivocadas ideias-força: a de que a Razão e o Progresso governam o mundo natural e, por consequência, o conflituoso mundo dos homens. Normalmente encastelados sob a bolha de um mundo de comodidades aristocráticas, por meio do qual eles se forjaram e reverberaram, de século em século, essa percepção racionalista da realidade, esses pensadores (invariavelmente do sexo masculino, gênero que sempre se autoproclamou guardião do saber) projetaram os ideais hegelianos de que ao se chegar à conformação última do Estado secular e liberal, sob o influxo do livre mercado, representaria a síntese derradeira da boa convivência humana, superando-se um suposto primitivismo hobbesiano ao qual a condição humana estaria biológica e culturalmente condicionada. Como bem disse o escritor britânico John Gray: “filósofos de Platão a Hegel têm interpretado o mundo como se fosse um espelho do pensamento humano”.
Raros foram os casos de pensadores notáveis que experimentaram o lado mais oprimido da arena hobbesiana que, forjada pelo Ocidente, caracteriza a conflituosa convivência humana, seja no âmbito da vida pública, seja na vida privada, a qual estiveram associados. A primeira movida pela lógica da apropriação patrimonialista e a segunda pela competição darwiniana supostamente meritocrática. Locupletaram-se das comodidades ocidentais e, desse modo, sempre ofuscaram o caráter inarredavelmente conflituoso, aviltante e, agora neste século XXI, autodestrutivo e ecocida da longa história desse Ocidente cognitivo ao qual estavam condicionados.
O fato é que o atual contexto geopolítico de pré-anarquia global indica que estamos caminhando para uma situação em que “a ordem do mundo”, conforme prevê Attali, “se unificará em torno de um mercado que se tornará planetário, sem Estado”. A ideia de um mundo multipolar, pacífico e democrático, não cabe nesse contexto totalizante que está aflorando, como bem argumentou Attali:
“Semelhante ordem policêntrica não poderá se manter porque, por natureza, o mercado é conquistador. Não aceita limites, divisão de territórios, tréguas. Não assinará tratados de paz com os Estados. Recusará deixar-lhes competências. Logo se estenderá a todos os serviços públicos e esvaziará os governos (mesmo aqueles da ordem policêntrica) das suas últimas prerrogativas, inclusive as da soberania.”
Para escapar do colapso inerente a essa nova ordem autocrática e policêntrica, Jacques Attali acredita na possibilidade de realização de uma democracia desapropriada desse Ocidente cognitivo, ou seja, de que é possível que estejamos diante de um fenômeno antropológico emergente de formação de uma hiperdemocracia nas próximas três ou quatro décadas. O porquê desse longo interstício de algumas décadas é que, segundo Attali, a humanidade ainda deverá experimentar a difícil travessia de duas “ondas do futuro”: o hiperimpério (“mercado planetário, sem Estado”) e o hiperconflito (“após a violência do dinheiro, a violência das armas”), inclusive como uma espécie de pré-requisitos para que essa hiperdemocracia possa irromper.
Essas duas perspectivas regressivas também estão condensadas no seu livro Uma breve história do futuro (2006), que oferece uma leitura de mundo que, apesar de ambígua, parece bem realista a respeito do que poderá nos aguardar num futuro próximo. Com base nos diversos padrões, regras ou leis que ele identifica na evolução da longuíssima história da democracia de mercado eurocêntrica, Attali entende que a “cara mais verossímil do futuro” será a de que, até 2060, rebentarão, uma após a outra, duas ondas do futuro, mortais:
1) o hiperimpério (entre 2035 e 2050), no qual o Estado-nação será gradualmente absorvido pelas forças do mercado, representadas pelas corporações transnacionais, e substituído pela Vigilância proporcionada com o avanço da revolução algorítmica iniciada nos anos 1980; e
2) o hiperconflito (entre 2050 e 2060), como desdobramento das instabilidades geradas pelo hiperimpério que não dispõe mais das contenções do Estado-nação para regulá-lo, em que profundas convulsões, impulsionadas por “ambições regionais”, “exércitos piratas e corsários” e a “cólera dos laicos e dos crentes”, desencadearão guerras de toda ordem, em escala mundial.
A primeira onda, o hiperimpério, começaria a se desenhar entre 2025 e 2035, quando teríamos um mundo policêntrico no qual os EUA perderiam o status de centro econômico mundial e as forças de mercado, representada pelas corporações transnacionais, sobrepujarão o Estado. A ordem mundial “se unificará em torno de um mercado planetário, sem Estado”. Não à toa, novos conceitos como “necropolítica” e “necropoder”, do filósofo camaronês Achille Mbembe, e necro-Estado, utilizado pelo filósofo brasileiro Vladimir Safatle, estão sendo introduzidos para explicar e compreender as fragilidades do Estado na atualidade. Também tem sido consenso o entendimento em torno do fenômeno crescente da captura do Estado ou do poder político pelas grandes corporações transnacionais. Para entender melhor esse assunto vale a pena ler o livro A Era do Capital Improdutivo: a nova arquitetura do poder, sob dominação financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta (Outras Palavras & Autonomia Literária, 2017), do economista Ladislau Dowbor, que desvenda, amparado em muitas fontes de pesquisa, como opera hoje o capital financeirizado que dita o funcionamento do mundo.
Depois viria entre 2050 e 2060 a segunda onda, o hiperconflito “muito mais destruidor do que todos aqueles, locais ou mundiais, que o terão precedido”, uma série de guerras de extrema violência, como derivação de uma das regras da história identificada por Attali: “quando o Estado enfraquece, desaparece a possibilidade de canalizar a violência e de dominá-la”. Sabemos que na ausência do Estado, que tem a função de regular os impulsos predatórios dos agentes econômicos, os interesses individuais e os meios hobbesianos para mantê-los se sobrepõem ao coletivo. Nesse contexto regressivo, a “guerra de todos contra todos” é inevitável.
A História também nos ensina que a humanidade nunca suportou muita realidade. Como resposta à perspectiva de sua autodestruição, abre-se assim a possibilidade de uma terceira onda do futuro, a hiperdemocracia planetária, por volta de 2060, assumindo os rumos de uma civilização devastada pelas duas ondas precedentes. Uma hiperdemocracia, agora desapropriada da lógica econômica autodestrutiva e ecocida, com todos os conflitos e contradições que lhe são inerentes, é o regime imprescindível à emergência de uma ruptura civilizatória.
A aposta na emergência da hiperdemocracia
“Parece sensato resignar-se a admitir que
o homem não passa de um monstro e que
o nosso mundo nunca poderá tornar-se
uma democracia planetária, tolerante,
pacífica, diversa, porém reunida. Entretanto,
semelhante dinâmica está em marcha.”
Jacques Attali
Se sobrevivermos a essas duas ondas (o hiperimpério e, em seguida, o hiperconflito), Attali acredita, demonstrando um certo esforço de otimismo para evitar o inferno que ele teme que o futuro pode vir a ser, que há uma possibilidade de inaugurarmos por volta de 2060 a hiperdemocracia planetária, cujos principais protagonistas, já atuantes hoje, seriam o que ele chamou de “trans-humanos” (não confundir com o movimento transumanista) e “empresas relacionais”. Trata-se da emergência de forças altruístas e reconciliadoras que, sob uma visão complexa de mundo – e não mais tecnomercadológica, “tomarão o poder mundialmente, devido a uma premência ecológica, ética, econômica, cultural e política”.
Esse prognóstico realmente tem muitas correspondências com os padrões da História. Obviamente que Attali também considera o quanto o futuro é determinado por eventos inesperados que podem alterar sua trajetória, mas sem desviar-se, no entanto, de um fundamento que, segundo ele, permeou toda a história: “de século em século, a humanidade impõe o primado da liberdade individual sobre qualquer outro valor”. Os três principais conflitos geopolíticos em andamento (Ucrânia, Palestina e a guerra tecno-comercial sino-americana), por exemplo, representam esses eventos de escala planetária que podem fazer avançar (ou retardar) e alterar significativamente o fluxo da História.
A partir dessa premissa de que há um impulso ancestral que move a humanidade, Attali assim expressa seu otimismo trágico:
“Aproximadamente em 2060, ou mais cedo — a menos que a humanidade desapareça sob um dilúvio de bombas —, nem o Império Norte-Americano, nem o hiperconflito serão toleráveis. Novas forças, altruístas e universalistas, já atuantes hoje, tomarão o poder mundialmente, devido a uma premência ecológica, ética, econômica, cultural e política. Elas se rebelarão contra as exigências da Vigilância, do narcisismo e das normas. Conduzirão, progressivamente, a um novo equilíbrio, dessa vez planetário, entre o mercado e a democracia: a hiperdemocracia. (…) Uma nova economia, chamada relacional, que produz serviços sem procurar tirar lucros deles, se desenvolverá em concorrência com o mercado antes de neste pôr um fim, assim como o mercado pôs um termo, há alguns séculos, no feudalismo.
Nesses tempos vindouros, menos longínquos do que se crê, o mercado e a democracia, no sentido em que nós o entendemos hoje, se tornarão conceitos ultrapassados, lembranças vagas, tão difíceis de compreender como o são hoje o canibalismo ou os sacrifícios humanos.”
A irrupção da hiperdemocracia imaginada por Attali, como resposta às convulsões das duas ondas precedentes, comporta, pelo menos, três principais fenômenos emergentes entrelaçados:
1) Ascensão do altruísmo social, em que a alteridade e a cooperação substituirão, nas relações políticas, o individualismo e a competição. Novos atores sociais e políticos exercerão um tipo de liderança na qual, segundo Attali, “não se acreditarão os proprietários do mundo, admitirão que só têm o seu usufruto”;
2) Uma nova economia relacional emergirá afastando-se da atual lógica predatória de mercado. Ela “não obedecerá às leis da raridade” e “permitirá produzir e trocar serviços realmente gratuitos – de entretenimento, saúde, educação, relações etc –, que cada um julgará bom que se ofereça ao outro”. Uma economia em que “a gratuidade se estenderá a todos os domínios essenciais à vida”;
3) O desenvolvimento do bem comum, dentre eles a inteligência universal, como resultado coletivo da hiperdemocracia. “O bem comum da humanidade não será a grandeza, a riqueza ou mesmo a felicidade, mas a proteção do conjunto dos elementos que tornam a vida possível e digna: clima, ar, água, liberdade, democracia, culturas, línguas, saberes…”.
Essa presciência de Attali, embora aparente demasiadamente utópica, tem alguns fundamentos na sociologia e na realidade atual. O chamado terceiro setor, composto por inúmeras organizações não governamentais, que hoje ainda é muito embrionário diante das decadentes estruturas hegemônicas do Estado (primeiro setor, o público) e do Mercado (segundo setor, o privado), guarda muitas equivalências com o que poderá vir a ser uma hiperdemocracia no futuro. Esse movimento do terceiro setor tem muito a ver com o potencial regenerativo da revolução sociocultural que está emergindo, desde os anos 1960, tendente a influenciar cada vez mais o âmbito político-econômico de muitas sociedades, em busca de um outro mundo possível.
Todos esses organismos seguem a lógica da sociabilidade democrática não apropriada pela cultura patriarcal milenar, especialmente pelo impulso matrístico do voluntarismo daqueles que se engajam nessas atividades, característica inexistente no atual Estado-Corporação produzido pelo neoliberalismo (resultante da absorção dos antigos Estados nacionais pelo mercado financeiro transnacional). Esse terceiro setor talvez represente, no futuro, a principal força emergente de resistência ao atual establishment global que apostou todas as fichas no laissez-faire (des)orientado pelos algoritmos, o qual só tem amplificado a degradação das democracias e a manutenção do capitalismo predatório, aumentado cada vez mais a nossa vulnerabilidade política, social e ambiental.
Segundo Attali, “é na Europa que começará a hiperdemocracia”, a partir de uma nova União Europeia “dotada de um parlamento e de um governo continentais”. Seriam também criadas novas instituições em escala mundial, tendo a ONU como base, atuando numa “dimensão supranacional e não mais apenas multilateral”, já que a noção de Estado-nação estaria, a essa altura, esgotada e superada. Essa nova conformação permitiria uma governança global democrática restauradora, tornando possível uniões regionais impensáveis como integrar Israel e Palestina, ou incorporar a Rússia e a Turquia nessa nova União Europeia. Se foi nos arredores do Mediterrâneo que o mundo ocidental foi forjado, é razoável imaginar que será nesse mesmo Mediterrâneo que, por ter experimentado todos fracassos e frustrações de um processo civilizador eurocêntrico dominador e autodestrutivo, irrompa um modo viver pós-capitalista e pós-cultura patriarcal milenar.
Ao propor que podemos estar diante da emergência de uma hiperdemocracia que nos proporcione resgatar o bem comum e obom tempo, após a inaudita confluência das catástrofes do hiperimpério (o mercado planetário hegemônico) seguido do hiperconflito (a violência desse mercado planetário, sem os contrapesos das regulações políticas do Estado) gerado pelo mundo autocrático e policêntrico – hoje muito celebrado por segmentos da esquerda mundial e em evidente ascensão –, as ideias de Jacques Attali parecem nos convocar a um modo de vida ancestral. Talvez seja esta a única saída da policrise terminal para a qual nos arrastou a cultura patriarcal milenar: resgatar nossas ancestralidades.
Para antever essa emergência civilizatória a partir do mesmo Mediterrâneo, a partir do qual irrompeu a agonia civilizatória do Ocidente, Attali também lembrou que “quando em julho de 2014 Jean Jaurès imaginava uma Europa livre, democrática, pacificada e reunida, nada permitia esperar que fosse essa a situação do Velho Continente menos de oitenta anos mais tarde.” É preciso hoje fazer esse mesmo esforço de imaginar uma ruptura civilizacional capaz de trazer à tona essa hiperdemocracia. Diante da real possibilidade de colapso, este é o único modo de governo entre os humanos e, sobretudo, entre humanos e não-humanos (os ecossistemas degradados) que nos reconecta com as nossas ancestralidades apagadas pela longa prevalência do Ocidente cognitivo que moldou a História.
Teríamos, assim, que suportar algo em torno de mais quarenta anos de agudização da insensatez antropocêntrica, numa perigosa combinação de crises (econômica, alimentar, energética, geopolítica, social, ambiental etc) se retroalimentando, com potencial catastrófico sem precedentes na história da humanidade, que poderá tornar irreversível o atual processo de colapso em curso.
Attali tem uma visão apocalíptica e ao mesmo tempo esperançosa sobre o futuro, convergente com os versos de Hölderlin, citados pelo filósofo Martin Heidegger: “Ora, onde mora o perigo / é lá que também cresce / o que salva”. Quanto mais nos aproximamos da distopia (o “lugar ruim”), mais a utopia (o “não lugar”), aquele mundo imaginário diferente do padrão ocidental ao qual o Homo sapiens moderno ficou condicionado, parece possível.
Eis, portanto, o maior paradoxo do nosso tempo: nunca estivemos tão próximo da consumação do colapso socioambiental e, a um só tempo, de uma ruptura civilizatória que, via hiperdemocracia livre de qualquer forma de apropriação, dominação e hierarquização, poderá nos livrar desse colapso e, finalmente, encerrar seis mil anos de agonia patriarcal.
“Uma democracia planetária se instalará
imitando os poderes do mercado.
Ela tentará ganhar outras guerras,
muito mais urgentes:
contra a loucura dos homens,
contra o desregramento climático,
contra as doenças mortais,
a alienação, a exploração e a miséria.”
Jacques Attali
***
Trabalhos de Attali traduzidos para o português
ATTALI, Jacques; GUILLAUME, Marc. A antieconomia: uma crítica à teoria econômica. Rio de Janeiro. Zahar.1975.
ATTALI, Jacques. A vida eterna. Lisboa: Livros do Brasil, 1991.
ATTALI, Jacques. 1492: os acontecimentos que marcaram o início da era moderna. São Paulo: Novo Fronteira, 1992.
ATTALI, Jacques. Nomadismo e liberdade. Estudos Avançados, 7(17), 171-184. Disponível em https://revistas.usp.br/eav/article/view/9615. 1993.
ATTALI, Jacques. Dicionário do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001.
ATTALI, Jacques. Os judeus, o dinheiro e o mundo. Rio de Janeiro: Record, 2001.
ATTALI, Jacques. Blaise Pascal ou o gênio francês. Bauru, São. Paulo: EDUSC, 2003.
ATTALI, Jacques. A crise, e agora?. Lisboa: Tribuna da História. Coimbra: Almedina, 2009.
ATTALI, Jacques. Karl Marx ou o espírito do mundo. Rio de janeiro: Record, 2007.
ATTALI, Jacques. Uma breve história do futuro. São Paulo: Novo Século Editora, 2008.
ATTALI, Jacques. Estaremos todos falidos dentro de dez anos? Dívida pública: a última oportunidade. Lisboa: Alêtheia, 2010.
ATTALI, Jacques. Gandhi: o despertar dos humilhados. São Paulo: Novo Século, 2013.
ATTALI, Jacques. A Economia da Vida: uma proposta para pouparmos nossas crianças de uma pandemia aos 10 anos, uma ditadura aos 20 e uma catástrofe climática aos 30. São Paulo: Vestígio, 2021.
ATTALI, Jacques. A epopeia da comida: uma breve história da nossa alimentação. São. Paulo: Vestígio, 2021.
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