Graeber: por que os Estados rejeitam o Público

Numa de suas últimas entrevistas, antropólogo rebelde morto há duas semanas expõe sua noção particular do anarquismo. Na primeira parte: as interpretações equivocadas sobre Foucault e como tudo começou no Occupy Wall Street

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David Graeber em entrevista a Lenart J. Kučić, no El Salto | Tradução: Gabriela Leite

Este texto foi publicado pelo grupo Guerrilla Translation, uma cooperativa e coletivo de tradução que, de forma inspiradora e pro bono, propagam ideias e pensador@s pós-capitalistas

Essa entrevista com David Graeber aconteceu na primavera [no hemisfério norte] de 2020. Conduzida por Lenard J. Kučić, foi publicada originalmente na revista Disenz. Ao ler a entrevista, nos sentimos inspirados: se trata de um retrato perfeito, feito no início de maio, deste estranho 2020. A Guerrilla Tanslation já havia traduzido várias obras de Graeber ao castelhano, desde 2013. Em 1º de setembro, voltamos a entrar em contato com David para propor a ideia. Nos respondeu no mesmo dia, dizendo que se lembrava de nós, e que ficaria encantado que traduzíssemos a entrevista.

Dois dias depois, Nika Dubrovski, sua esposa, informava que David Graeber havia falecido. Seguimos perplexos e arrasados com a perda de uma de nossas maiores inspirações como coletivo, além de um de nossos autores preferidos, sobretudo depois de nossa recentíssima correspondência.

Apresentamos a entrevista em três partes, essa primeira sobre o movimento Occupy e o capitalismo da covid; a segunda sobre autoritarismo versus autogestão em tempos de pandemia e a psicologia emocional da dívida e a terceira sobre mitos antropológicos, visões técnico-utópicas e o ecofascismo. 

Introdução de Lenart J. Kučić

Era uma agradável tarde de primavera londrina, e David Graeber, professor de antropologia da London School of Economics, estava sentado em um terraço. Nossa conversa aconteceu por videochamada, devido às restrições de deslocamento provocadas pela pandemia de covid-19. Não falamos apenas do novo vírus e suas consequências para a sociedade, a política e a economia, mas também aproveitamos a oportunidade excepcional para conversar sobre sua obra já publicada: de Fragmentos de uma antropologia anarquista a Em dívida ou A utopia das normas e, finalmente, de seu livro mais recente: Empregos de merda: uma teoria.

O professor Graeber se apresenta como antropólogo e anarquista. Mas não gosta de ser chamado de “antropólogo anarquista”, já que essa disciplina não existe — o que nos explica durante o curso da entrevista. Graeber é também ativista: fez parte de muitos movimentos sociais e protestos durante as últimas décadas. Atribui-se a ele frequentemente o slogan não-oficial do Occupy Wall Street: Somos os 99%. Mas ele insiste que o slogan, como todos os demais aspectos do movimento, foi fruto de esforço coletivo.

É possível que governos democráticos utilizem essa pandemia para impor medidas autoritárias sobre a cidadania? Por que não vimos uma greve dos profissionais sanitários e de cuidados para exigir melhores salários durante a pandemia? O que aconteceria se Wall Street fechasse por alguns meses? Por que os carros voadores só existem como efeito especial nos filmes de ficção científica? Como podemos usar os princípios anarquistas para desemaranhar o caos da crise? Por que não queremos depender dos exércitos chineses e estadunidenses para defender o planeta?

E, finalmente, como converter um discurso de bêbado em um best-seller?

Pergunta: Temos a impressão de que, durante a pandemia, todo mundo fala o mesmo idioma: de governos progressistas e conservadores até o Estado Islâmico e os anarquistas. A mensagem é idêntica: fique em casa, lave as mãos, evite aglomerações… Minha impressão é de que a grande maioria seguiu as recomendações oficiais sem mais reclamações. Não vimos nada parecido em muito tempo. O que aconteceu?

David Graeber: Bom, é que tem muita gente que não está suficientemente louca a ponto de ignorar recomendações médicas em plena pandemia.

Isso me faz pensar em Henri de Saint-Simon, cientista político francês do século XIX. É possível que Saint-Simon tenha sido o primeiro a propor a extinção do Estado. Argumentava que, com o tempo, um Estado reformado sobre critérios científicos não teria que depender da coerção, e que, então, não seria um Estado tal qual compreendemos hoje em dia, com seu monopólio da violência.

Por quê?

Segundo ele, pelo mesmo motivo pelo qual o médico não tem que te ameaçar para que você tome os remédios que foram receitados. As pessoas têm consciência de que o médico tem certos conhecimentos dos quais elas precisam, e assumem que está atuando em seu melhor interesse. Saint-Simon argumentava que em um Estado racional e fundamentado em princípios científicos, a cidadania atuaria da mesma maneira, e a imposição coercitiva se converteria em algo do passado. Pode ser que haja alguns loucos que não queiram seguir a receita médica, mas seriam uma minoria sem importância.

Nem preciso dizer que era uma abordagem extremamente otimista e ingênua. De fato, Marx desdenhava de Saint-Simon e sua linhagem, descrevendo-os como “socialistas utópicos”. Mas há muitos setores do governo que, no dia de hoje, pretendem funcionar segundo critérios puramente científicos e racionais. De fato, poderia se argumentar que nem sequer formam parte do governo, devido a sua própria natureza.

Essa é uma conversa que tínhamos constantemente no movimento estudantil do Reino Unido, durante a onda de protestos de 2010. Éramos fundamentalmente anarquistas, mas apoiávamos a saúde e a educação pública. Parece hipócrita, não? Para nós, não parecia, mas não parávamos de discutir a respeito. Talvez o problema seja que os Estados são incapazes de conceber instituições públicas — com isso me refiro a instituições universais e sem fins lucrativos — que não estejam sob seu controle. Isso não supõe que tais instituições tenham o mesmo humor que os exércitos, ou o sistema carcerário, que são artefatos exclusivamente estadistas.

De fato. Foucault diria que a autoridade capaz de impor-se sem recorrer à violência é a mais assustadora.

Creio que, nesse aspecto, há uma má interpretação arraigada de Foucault. Assume-se que todo discurso é uma expressão do poder, e que toda expressão de poder é fundamentalmente violenta e censurável. É correto que, em algumas vezes, parece ser mesmo isso que você está dizendo. Mas se entrássemos em detalhes, Foucault diria que não, de maneira alguma.

Ostentar o conhecimento como expressão endêmica do poder é uma ideia muito atrativa para os acadêmicos, visto que têm muito do primeiro e pouco do segundo. Então não é de se estranhar que lhes pareça tão atrativo. Já Foucault tinha outras preocupações imediatas (lhe diagnosticaram como homossexual em sua juventude eele queria entender como seus desejos mais íntimos podiam ser considerados uma patologia).

Ele dedicou sua vida a tentar compreender essa questão. Grande parte da esquerda acadêmica se esquece que esses diagnósticos não são meras abstrações, mas se impunham mediante procedimentos legais ou ameaças de violência física, ainda que o próprio médico não esteja literalmente apontando uma pistola. Existe uma interpretação vulgar de Foucault que pretende evitar a violência implícita que está por trás de todas as instituições que ele descreve.

No fim das contas, o panóptico era um cárcere. Em geral, se você se sente observado, o normal é que vá para o outro lado. Embora seja verdade que as coisas pioraram bastante desde a época de Foucault. Eram tempos sem vigilantes armados em escolas e hospitais. As coisas mudaram.

Durante a pandemia, vimos governos de todo o mundo impondo medidas que, no início do ano, teriam sido inimagináveis em sociedades democráticas, tudo sob o guarda-chuva da saúde pública. Na Eslovênia, por exemplo, as pessoas recebem uma multa ao se manifestarem contra as medidas governamentais. Não por causa da manifestação em si, isso seria antidemocrático, mas por violar as leis de doenças infecciosas. Assim, os únicos grupos de pessoas com liberdade para se movimentarem são a polícia, o exército e os políticos.

Não me surpreende. Você aprende muito sobre seu governo pela forma com é tratado o direito de reunião, seja por razões políticas ou de qualquer outro tipo.

A que você se refere, exatamente?

Normalmente, nas democracias liberais, a justificativa subjacentes ao conjunto de suas estruturas legais geralmente tem relação com noções de “liberdade”. A Declaração de Direitos dos Estados Unidos começa falando da libedade: de expressão, de imprensa e de reunião. Na prática, quando esse direito de assembleia se exerce para protestar — que é a própria essência da identidade estadunidense — se percebe como menos legítimo o direito de reunião de gente que quer vender algo.

Quando você diz isso, o grosso da classe média norte-americana não acredita. Não tanto no caso dos pobres, que já dão como fato que as regras são injustas. Mas, ao fim, dirão: “claro que há direito de reunião, desde que seja solicitada uma permissão. Que mal há nisso?” E há de se contestar: “certo, mas se antes de poder se expressar for preciso pedir permissão à polícia, isso não é liberdade de expressão. Se temos que pedir permissão antes de publicar algo, isso não é liberdade de imprensa”. Dirão: “Mas são coisas diferentes! É preciso pensar no tráfego, não pode se manifestar porque sim, tem que levar em conta o direito de ir e vir dos outros”. Isso me soa muito cômico porque, pelo que eu saiba, o direito a um trânsito fluido não é reconhecido pela Constituição.

É algo que aprendemos durante o Occupy. Depois do desmonte forçado do acampamento, ficamos chocados com a grande quantidade de norte-americanos de classe média que ignoraram sua preciosa “Declaração de Direitos”, que está no papel. A mesma “Declaração” que transmitem com orgulho a seus filhos…

Você queria ocupar um espaço público?

Qualquer espaço. Quando nos chutaram do Zuccotti Park, tentamos montar outro acampamento porque… bem, era fundamental que as pessoas soubessem onde estávamos. Isso foi um dos pontos-chaves da primeira ocupação: qualquer nova-iorquino que quisesse envolver-se sabia automaticamente onde ir para pôr a mão na massa.

No início, tínhamos a intenção de ir a um lote enorme que há perto de Wall Street. Era propriedade da Igreja episcopal dos Estados Unidos, que inicialmente nos deu luz verde. Mas devido a pressões no seio da hierarquia eclesiástica, acabaram retirando seu apoio. Apesar disso, vários bispos lideraram uma manifestação com a intenção de ocupar o terreno. Os policiais nos espancaram e a imprensa se negou a mostrar as imagens dos sacerdotes: só mostraram os manifestantes mascarados, a fim de caracterizar-nos como gente violenta e ameaçadora.

Depois ocupamos um parque que ficava aberto 24 horas e, imediatamente, mudaram as regras do parque. Depois obtivemos uma vitória judicial graças a uma brecha que nos garantia o direito a dormir na calçada — desde que só ocupássemos metade da superfície. Ato contínuo, a prefeitura aprovou uma lei declarando Manhattan uma “zona de emergência”, onde as decisões judiciais não são aplicáveis. Nesse ponto, decidimos ocupar as escadas do edifício onde se assinou a Declaração de Direitos (que, por certo, fica bem próxima de Wall Street), já que não estava sob jurisdição municipal. Em um piscar de olhos, estávamos cercados pela SWAT e, depois de alguns dias, já encontraram uma maneira de expulsar-nos.

Fizemos o impossível para estabelecer alternativas legais, mas o Estado pisoteou os mesmos princípios legais que inculcam às crianças nas escolas, os mesmos princípios que, supõe-se, devem fazer-lhes sentirem-se orgulhosos de ser norte-americanos. E os meios de comunicação se mantiveram em silêncio.

Mas o que você pode ocupar, quando está de quarentena em casa?

Sempre há algo que dá pra fazer. O Anonymous demonstrou que é possível usar as redes para fazer protestos relevantes e impactantes. E por todo o planeta há gente criando novas maneiras de protestar de casa.

Isso dito, as quarentenas não serão permanentes. Devemos recordar que existia um mundo antes das vacinas, onde as pessoas tinham formas de defender-se da cólera, da febre amarela ou da gripe: rastreavam municiosamente os vetores de contágio, os isolavam e os punham em quarentena. Prestavam atenção à higiene e ao distanciamento social, e restringiam certas atividades comerciais. Tudo isso era rotineiro na época vitoriana.

Meu amigo John Summers investigou a estratégia usada pela pioneira do trabalho social, Jane Addams, frente a este tipo de ameaças em Hull House, a casa de acolhimento modelo do movimento settlement, que fundou em 1889. Sua conclusão: as classes médias haviam se esquecido de coisas que, no passado, eram conhecidas por todos, da sabedoria popular. E, claro, nada disso foi capaz de impedir a articulação de movimentos sociais, como demonstra o caso Hull House, que é um exemplo da idade de ouro do anarquismo, no seio do movimento trabalhista.

Seguimos em uma fase reativa e de pânico, e estamos apenas começando a encontrar formas de enfrentar o problema. É muito cedo para pensar que o vírus vai aniquilar nossas relações sociais.

E as relações econômicas?

É facinante. Os governos de todo o mundo mantiveram durante anos e anos uma posição de que era totalmente impossível fazer justamente o que fizeram durante a pandemia: deter quase toda atividade econômica, fechar as fronteiras e declarar um estado de emergência global. Faz só alguns meses que se assumia que um declive de 1% no PIB seria uma hecatombe, que acabaríamos esmagados pelo equivalente econômico do Godzilla.

E isso não aconteceu…

Não, e aconteceu outra coisa. Todo mundo ficou em casa e a atividade econômica se reduziu em um terço. É uma loucura — caberia esperar que, com todo o mundo imobilizado e em casa, a economia colapsaria em cerca de 80%, não só um terço, não acha? Isso nos faz pensar: o que eles estão medindo, exatamente? E o que é uma “economia”? Que é o “trabalho”?

Creio que a pandemia nos ajuda a ver essas coisas com mais clareza.

Com mais clareza?

Para começar, pudemos distinguir quais trabalhos são realmente essenciais, e quais são totalmente desnecessários. Mas também ficou claro o verdadeiro o papel das instituições.

Os evangelizadores do capitalismo sempre argumentaram que o sistema financeiro global representa uma versão melhorada e de livre mercado da economia planificada. Como um plano quinquenal, pois determina a alocação de recursos e investimentos para otimizar a produção. Tudo para garantir que as pessoas do futuro vejam suas necessidades atendidas, e que haja prosperidade e bem-estar a longo prazo. Mas é uma promessa vazia.

Quando falou-se de fechar Wall Street para prevenir outra catástrofe econômica como a de 2008, não se levantou em nenhum momento que uma interrupção de um mês ou mais poderia ter efeitos negativos reais. Wall Street existe para Wall Street, e para que os ricos sigam sendo ricos. Não é útil para mais ninguém. Além do mais pode ser muito prejudicial para todos, daí o debate sobre a necessidade de fechá-lo. A noção de um mercado livre e autorregulado é um mito. Sempre esteve regulado pelo Estado. Quando se discute sobre regulação ou desregulação, a chave é perguntar: em benefício de quem?

Por isso, creio que as pessoas estão pensando seriamente no modo como nos tem governado nas últimas décadas.

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4 comentários para "Graeber: por que os Estados rejeitam o Público"

  1. José Mário Ferraz disse:

    Para não ser contra tudo que está aí é preciso ser frequentador de igreja, axé ou futebola uma vez que já chegamos ao cúmulo de voltar à teocracia, de bandidos serem protegidos pela justiça, advogados dividindo o produto do roubo com os ladrões.

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