Filosofia, para desvendar o futuro que virá

Como serão o trabalho e a tecnologia? Que linguagens, símbolos, imagens e discursos criaremos? Acontecimentos impactantes, como a pandemia, mudam o curso da História — é preciso pensar, descrever e questionar essas mudanças já

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Um meme que circulava antes da pandemia do covid-19 alcançar seu grau mais sério dizia algo como: “o vírus nos fez perceber quanta coisa podíamos resolver só com um e-mail”. É possível que na atual pandemia as medidas tomadas em diferentes contextos institucionais para resolver problemas imediatos, essa reinvenção forçada, pode fazer as instituições e empresas perceberem o que realmente vale a pena ou não retomar. E isso pode ter consequências para depois do período de quarentena.

Além disso, como os processos gerados para se reinventar e sobreviver nesse contexto se cruzam com outros processos de transformação em curso anteriores à pandemia como a automação do trabalho, o uso de inteligência artificial, a economia de dados, a informatização do trabalho, o uso de tecnologias na vigilância e controle social, dentre outros?

No começo do curso O Nascimento da Biopolítica, Michel Foucault comentava um conjunto de políticas que foram aplicadas na Alemanha pós-guerra que eram orientadas a resolver problemas imediatos, mas foram fundamentais para a formação do modo de governar neoliberal.

Num outro caso exemplar, também em relação ao atentado do 11 de setembro nos EUA foram adotados procedimentos que modificaram não só políticas posteriores relacionadas à segurança, imigração, vigilância social etc., mas também a própria percepção geral sobre a política. Por exemplo, como a ameaça iminente passou a compor esse novo modo de percepção e influenciar decisões políticas. O filósofo canadense Brian Massumi tem um livro chamado Ontopower: war, powers, and the state of perception, em que analisa essas mutações na política americana no período posterior ao 11 de setembro.

Para além desses dois casos, com certeza em situações como essas há sempre especialistas e técnicos que são os mais aptos a responder imediatamente aos problemas específicos e emergenciais. São eles que assumem o front no problema, tal como os médicos e epidemiologistas na atual pandemia. Mas existe um exercício de atenção e observação sobre o processo de transformações que esses acontecimentos desencadeiam, que não se esgotam após a resolução de suas demandas pontuais, e sobre como esse processo modifica o funcionamento social e político. Um esforço de captar seu devir.

Um acontecimento modifica não só as nossas expectativas em relação ao futuro, mas também nosso modo de compreender os encadeamentos entre eventos passados, modificando assim a nossa compreensão da História. Para expressar essas mutações, o acontecimento também exige uma nova linguagem. O acontecimento desencadeia uma variedade de palavras, expressões, debates, imagens, símbolos, discursos que vão se arranjando para tentar dar sentido e explicar o que se passou, formando assim enunciados que tentam dar conta de narrar e explicar a situação caótica que ainda não ganhou uma forma inteligível, com relações causais demonstráveis.

Esses enunciados podem ter origens diversas e não são exclusivos de uma disciplina ou campo de atuação profissional. Mas esse esforço de captar e tornar inteligível todo esse processo de transformação em sua duração, enquanto acontecem, é comumente feito por filósofos.

Se tem um elemento em que a filosofia se concentrou no século XX e a partir do qual se reinventou, esse elemento é o tempo. De Bergson a Heidegger, de Whitehead a Deleuze, o tempo ganha uma dimensão central no pensamento filosófico. Todos eles buscaram forjar uma linguagem que nos permita pensar e compreender as formações e deformações da realidade em seu próprio movimento e como nos relacionar com esses processos, os afetos que eles geram, as subjetividades que neles se formam etc.

Na atual pandemia do coronavírus, vários filósofos e filósofas bem conhecidos ou não têm tentado fazer esse esforço de especular para onde podemos estar indo, como nos compreendemos nisso, como isso modificará nossas vidas, como a política e a sociedade vão se reorganizar através disso… Todas essas questões se dão diante de uma completa indeterminação dos horizontes de possibilidades e expectativas no momento. Pode ser que a pandemia coloque em xeque todas as teorias que a precederam e tenhamos que reinventar novas ferramentas para pensá-la, e todas as intervenções filosóficas não passariam de conversa fiada e masturbação especulativa. Mas também pode ser que um ou outro ponto se confirme aqui, outro ali, e entre eles se trace um novo fio que nos oriente na tomada de novas decisões pessoais ou políticas.

Dentro desse quadro de discussão, ganham sentido as intervenções de textos filosóficos que buscam pensar a atual pandemia, como os textos de Byung Chun Han e Paul Preciado. Para além de terem acertado ou não no que disseram, é a discussão que faz sentido.

Como pensar novas práticas coletivas e políticas e novas reivindicações e direitos diante dessas transformações? Preciado propôs que aprendêssemos a usar as tecnologias de novas formas, dando a elas novos usos que a desviem dos seus como tecnovigilância e digitalização da produção. Anonimato? Sair das redes que devem estar lucrando mais do que nunca nessa pandemia como Facebook, Google, Twitter e criar outras redes, fóruns, retomar os blogs? Não sei. Acho que ainda avançamos muito pouco nesses debates, de modo geral. Mas que as redes digitais já fazem parte da “infraestrutura” técnica e econômica da política, isso já alcançou um profundo grau de consistência a partir de problemas como aqueles com Cambridge Analytica, grupos de zap, fake news, e seus impactos em eleições, mobilizações políticas, e formas de decidir e se orientar na política.

Provavelmente quando Deleuze escreveu o ensaio “Post-scriptum: sobre as sociedades de controle” no início dos anos 90, isso poderia não fazer muito sentido naquele contexto, principalmente nos países em que o acesso a internet e tecnologias de comunicação ainda era muito escasso. Hoje isso se tornou um paradigma para compreender as atuais formas de poder.

O problema talvez não seja o delírio, mas qual a forma de delirar. Ilusões muitas vezes são construídas com grande esforço de raciocínio. Um processo tão intenso de transformações com certeza causa uma sensação vertiginosa em que não sobra muita coisa bem fixa para se orientar. Mas depois dessa irrupção traumática de mudanças, novos hábitos vão se assentar. É isto o que a filosofia tenta captar e ela tem a maior probabilidade possível de errar. Sua sorte será encontrar nesses erros o maior aprendizado possível. Uma outra imagem de tudo que se passou e do que agora nos assombra.

A pandemia afetou o mundo inteiro e é óbvio que todo mundo vai falar disso, filosoficamente ou não. Este é agora o tema que mais nos afeta e preocupa e todos nós de diferentes formas usaremos o que temos e sabemos para pensar isso e falar disso. É previsível que haja uma proliferação de textos sobre isso.

Pode ser que a discussão filosófica agora não passe de um grande imbróglio narcísico e estéril cheio de especulações sem noção e absurdas. Mas com certeza há todo um terreno existencial onde compreendemos a nós e nosso contexto que não será exaurido por termos técnicos e médicos. É nesse terreno que se formam as definições, narrativas, valores explicações que irão orientar as nossas decisões éticas e políticas; nosso modo de se situar nas diferentes esferas da existência.

Estas esferas estão agora em mutação. A filosofia é uma das principais candidatas a reinventar os modos de habitar esse terreno, recompor novas formas subjetivas e compreender seus novos desafios. Ler o que filósofos e filosofias têm escrito vale a pena. Nem que seja para concluirmos que precisamos agora pensar diferentemente. E ainda aí encontraremos a filosofia.

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