Assim nasceu o neoliberalismo

Em dois livros essenciais, Melinda Cooper reconstitui os anos que mudaram a face do Ocidente. 1968 abriu crítica radical ao capitalismo. Para freá-la, sistema apelou à moral conservadora. Há saídas: mas é preciso fazer do dinheiro um Comum

Aliança neoliberal-conservadora: Ronald Reagan e o papa João Paulo II em Miami, em 1987
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Por Antonio Martins

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O esforço para mostrar que há vida além do capitalismo é árduo, mas reconforta. Há anos, Outras Palavras tem identificado e difundido o esforço de um grupo de pensadores que desafia as certezas do neoliberalismo. Num artigo recente, Ladislau Dowbor destacou a obra de alguns deles: economistas como Mariana Mazzucato, Thomas Piketty do Michael Hudson, Michael Roberts, Jayath Ghoshi.

Melinda: Capitalistas temiam semente de Maio de 1968

A este elenco, é preciso somar Melinda Cooper. Esta socióloga australiana de 52 anos, professora na Universidade de Canberra (na Austrália) tem publicado obras que desafiam antigos paradigmas. Seu foco concentra-se na transição do Estado keynesiano para a hegemonia neoliberal – e especialmente no papel que desempenhou, neste processo, uma aliança entre os neoliberais e os conservadores morais. Seu interesse parece ser provocar velhos consensos e, ao fazê-lo, abrir caminho para alternativas.

Ela sustenta que o Estado de bem-estar social não se esgotou por motivos econômicos. Foi jogado ao mar e corroído, quando as elites ocidentais julgaram que conquistas como Educação e Saúde igualitárias haviam tornado os trabalhadores indisciplináveis. Os capitalistas temiam, em especial, a semente revolucionária lançada por movimentos como o de maio de 1968. Para neutralizá-la, estabeleceram aliança com os ultraconservadores e retomaram ideias como a centralidade da família. Estabeleceu-se um consenso reacionário. Para rompê-lo, argumenta Melinda, será preciso desmistificar o dinheiro; vê-lo como um Comum; e apostar na multiplicação do gasto público que desmercantiliza a vida e redistribui a riqueza.

Seu pensamento está especialmente expresso em dois livros, ainda não disponíveis em português (há edições em inglês e castelhano). Contrarrevolução: extravagância e austeridade nas finanças públicas e Valores de Família: entre o neoliberalismo e o novo conservadorismo. A primeira obra foi lançada no final de 2024 e examina a transição do keynesianismo para o neoliberalismo, iniciada no final dos anos 1970.

Melinda lança mão de um vasto estudo factual para mostrar como se construíram, quase a partir do nada, consensos baseados nas ideias de economistas austríacos dos anos 1920 – não apenas Hayek e von Mises, mas também Joseph Schumpeter. Emergiu, então, a noção de que as políticas macroeconômicas precisavam obrigatoriamente visar objetivos até então pouco relevantes, como “equilíbrio orçamentário”, “ajuste fiscal”, “redução de tributos”, “encolhimento do Estado”, “autonomia dos bancos centrais”, “metas de inflação” (desde que desconsiderem a valorização imobiliária…).

Melinda aponta também como esse consenso é importante para esconder que por trás dessa “austeridade”, há uma extravagância – uma transferência brutal de recursos do Estado para os mais ricos. É algo evidente no Brasil (embora oculto para a maioria), onde o Tesouro transfere a cada doze meses, para um grupo reduzido de credores da dívida pública, R$ 1 trilhão, o mesmo que três orçamentos do SUS.

A partir daí, a autora lança suas provocações. Ao contrário do que sustenta o consenso econômico, partilhado inclusive pela maioria dos keynesianos, ela sustenta que a crise do Estado de bem-estar social não se deveu, essencialmente, a razões econômicas objetivas – ao suposto esgotamento daquele processo. Foi produzido, ao contrário, por uma opção política das elites capitalistas. Elas temeram que o Estado de bem-estar social gerasse, em determinado momento, uma contestação muito forte ao próprio sistema.

A essência do argumento de Melinda é: tanto a construção do Estado de bem-estar social quanto a sua destruição resultam de opções políticas. O surgimento se dá – e esta parte da história é mais conhecida – no pós-II Guerra, quando a ameaça da União Soviética fez com que as elites capitalistas aceitassem entregar os anéis para conservar os dedos.

Em todo esse período – marcado por greves em cujas imagens é possível identificar a presença masculina marcante – as lutas sociais e o fantasma da União Soviética são tão marcantes que as elites aceitam, por exemplo, o gasto público e os déficits fiscais que permitem a educação e saúde gratuitas os sistemas previdenciários por repartição, totalmente estranhos ao capitalismo do início do século.

Mas Melinda vai mais adiante e mostra a destruição desse processo. Argumenta que aquele movimento tinha ido longe demais – pois continha em seu interior ideias não capitalistas. As ideias de saúde e educação gratuitas e igualitárias, por exemplo, ou de que ninguém é obrigado a trabalhar até o final da sua vida e de que não é preciso haver insegurança econômica, foram vistas como subversivas. Passaram a assustar as elites, em especial pelo fato de elas terem criado um cenário em que já não era possível disciplinar os trabalhadores por meio de políticas macroeconômicas.

Estas políticas, conta a socióloga, provocavam às vezes redução dos salários, mas os trabalhadores estavam garantidos por um sistema de bem-estar social que os protegia. E foi esta segurança, segundo a autora, que tornou possíveis movimentos como o Maio de 68, cujas imagens são muito diferentes. Incluem mulheres, desafiam não apenas os patrões mas a ordem econômica – além da hegemonia cultural e moral. É preciso lembrar que maio de 68 não se esgotou na França, muito menos em Paris. Foi seguido, em todo o mundo, por greves de forte sentido anticapitalista. Elas avançaram fundo na década de 1970, a ponto de o comunista e sociólogo italiano Toni Negri afirmar: “em certo momento, dominávamos as técnicas sociais que permitiam vencer os patrões”.

Isso foi, é evidente, demais para os capitalistas. A partir de determinado momento, eles foram capazes de inverter o jogo. Apoiaram-se num vasto movimento de fragmentação de trabalho e no argumento de que, do ponto de vista econômico, o projeto keynesiano tornara-se insustentável.

E nesse momento que os capitalistas – já rompidos com o keynesianismo e abraçados ao projeto neoliberal – vão se associar com os conservadores morais. Melinda cita, a respeito, uma frase emblemática da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher. “Não existe isso que chamam de sociedade”, diz ela: “há apenas homens, mulheres e famílias”. Aqui entra uma segunda contribuição de Melinda Cooper. Num outro livro de enorme importância, Os Valores de Família, ela faz uma reconstituição histórica impressionante sobre como, em cinco séculos de modernidade, capital, Estado e a família estiveram sempre associados na dominação política e construção de consensos.

Melinda descreve como os neoliberais uniram-se aos conservadores para estabelecer uma espécie de anti-Maio de 68 para fazer a recuperação da família e dos valores burgueses. Ela mostra inclusive (e é bastante curioso) como, de certa maneira, algumas bandeiras de maio de 68 – a diversidade sexual, por exemplo – foram recuperadas de forma conservadora, na forma, por exemplo, do casamento homossexual.

Em seus livros fundamentais – mas especialmente em Contrarrevolução – Melinda vai atrás das alternativas. Ao fazê-lo, recupera um teórico do Partido Comunista Grego, dos anos 1960 e 70, Nikolas Poulantzas, que cometeu suicídio em 1979. Foi quem teorizou, já àquela época, a respeito de um possível giro inesperado da teoria revolucionária. Ele vislumbrava a hipótese de capturar, para um pós-capitalismo, o Estado de bem-estar social. Queria agir por dentro dele e, ao mesmo tempo, estourar seus limites para detonar a ordem burguesa.

Poulantzas: o projeto da revolução precisa mudar

Poulantzas argumentava que alguns dos valores centrais das lutas operárias dos séculos XIX e XX haviam sido valorizados e ao mesmo tempo capturados pelo Estado de bem-estar social. Por isso, já não adiantava simplesmente defender as noções anteriores de revolução: a classe trabalhadora prezava o fato dos seus direitos estarem sendo assegurados pelo Estado capitalista.

Ele pensa que a estratégia deveria ser recuperar estes valores; atuar por dentro e para explodir os limites desse estado. Lutar, por exemplo, pelo direito ao trabalho para as mulheres – porque o keynesianismo baseava-se na ideia do marido sustentador do lar. Expandi-lo para as maiorias globais: os não-brancos, os imigrantes, os fora-da-ordem.

Melinda Cooper sugere, sempre de forma provocadora, que é preciso recuperar e ir além do próprio Poulantzas. Para ela – num pensamento que pode ser estendido ao futuro do governo Lula – a esquerda precisa questionar todo o processo de criação do dinheiro. É transformar o dinheiro num Comum e, ao fazê-lo, promover um grande choque de serviços públicos, de garantia de pleno emprego, de transformação da infraestrutura e de desmercantilização da vida. Sua obra, instigante e inspiradora, é um alento bem-vindo, em tempos de marasmo intelectual.

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