Acrasia e as armadilhas mentais na pandemia

Cunhado por filósofos gregos, termo refere-se à falta de autodomínio: o cérebro relativiza os perigos do vírus, afrouxando cuidados vitais. Impõe-se uma fantasia estética, como a chamou Aristóteles

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Como é possível que mesmo sabendo do risco de contaminação e mortes a gente ainda delibere mal, saia de casa, pegue avião e aglomere nos finais de semana e nas épocas festivas e feriados? Os gregos discutiam o fenômeno e tinham um nome para ela: acrasia, a falta de autodomínio. De um lado, o pensamento intelectualista dizia que não era possível saber, ter um conhecimento, e agir mal. Para Sócrates, todos que agem mal e, por exemplo, aglomeram neste momento, ignoram profundamente a moral, isto é, o conhecimento. Em contraposição a esse pensamento, havia o senso comum, predominante naquela época como na nossa época atual, de que é perfeitamente possível ter um conhecimento sobre o correto, o justo, o saudável e por fraqueza da vontade não agir deste modo, agindo contra a própria vontade.

Dito assim, em tempos de pandemia é mais ou menos isso: eu sei que contamina, que posso hospedar o vírus e transmiti-lo mesmo sem ter sintomas, que andando por aí carrego a possibilidade de matar, ou de deixar morrer e que é melhor e mais seguro, para mim e para os outros, ficar em casa, mas, mesmo assim, eu quero e eu saio. Neste contexto de festas e feriado e finais de semana, eu saio porque o meu desejo de receber afeto é maior do que o desejo racional de manter a maior probabilidade futura de ficarmos todos vivos. São muitos eus.

Aristóteles trouxe uma conciliação à discussão que, à parte de ter inúmeras reflexões acadêmicas sobre, parece-me importante para entender os dias atuais fora dos templos acadêmicos. Como sempre, Aristóteles foi um filósofo pragmático e empírico que buscava através da dialética encontrar seu posicionamento verdadeiro conciliando diversos juízos existentes. E não foi diferente diante do fenômeno da acrasia. Como conciliador, ele vai dizer que a acrasia é sim a falta de autodomínio decorrente de estarmos sobre uma disposição de conflitos de desejos, como o saber popular mais ou menos imaginava e imagina, mas também a acrasia corresponde a uma falta de conhecimento, se aproximando dos intelectualistas. Para Aristóteles com a seguinte nuance: É uma falta de conhecimento prático.

Aristóteles vai diferenciar o saber teórico do saber prático e vai defender que se trata de um problema de fantasia (phantasia). A pessoa que detém apenas o saber teórico mas não consegue se conter, não detém o saber prático, pois está afundado ainda na percepção do sensível, ou seja, na fantasia estética (phantasia aisthêtikê) e não consegue promover em si a fantasia decorrente da lógica (phantasia logistikê). Fantasia estética é a imagem que a percepção sensível causa: eu olho para os itens que chegaram de um supermercado e não vejo o vírus, não o percebo pelas minhas percepções sensíveis. A fantasia logistikê é a imagem decorrente da percepção capaz de lógica, racional. Aquela imagem que produzo a partir da ciência, que me ensina que há muitas partículas de vírus circulando potencialmente naqueles produtos e que é possível a contaminação. Portanto, se você sabe o conhecimento teórico sobre o vírus, mas não consegue promover uma imagem que decorre logicamente desse saber, uma imagem racional, você pode se deixar adormecer, se deixar embebedar pela fantasia estética, ou seja, fantasia de que o vírus não está ali, fantasia ligada às sensações ou ao desejo, por exemplo, de receber afeto e que te faz lançar uma aposta com sua própria vida e com a dos outros.

Como assim? Aconteceu comigo quando eu ia lavar as alfaces e deve ter acontecido com você também. Eu tirei os legumes da caixa que chegou do supermercado em casa, preparei a bacia, coloquei água, a medida correta da cândida para desinfetar os alimentos, mas faltou espaço para uma alface e a outra bacia estava na máquina de lavar louça (obrigada Josephine Cochrane!). Naquele minuto o que eu deveria fazer? Esperar a máquina terminar de lavar para colocar a alface na outra bacia, mas eu fantasiei para mim mesma (fantasia estética) a seguinte imagem: não tem vírus aqui justamente nesta alface, não é possível que o vírus vai estar nesta alface específica, então, fundada nessa imagem estética, nessa preguiça mental, eu passei uma água sem cândida e guardei a alface na geladeira “torcendo” para que nada me acontecesse. Eu sabia que o vírus podia perfeitamente estar naquela alface, mas estava como que embebida, adormecida na prática da razão lógica e não consegui produzir uma imagem que, sustentada na razão, desse força a minha vontade e me fizesse agir bem.

E fazemos isso neste momento, pior, apostamos com a vida dos outros. Fantasiamos que usando máscara, passando álcool gel, alugando uma casa num sítio com só 6, 8 pessoas, vai ficar tudo bem. Fantasiamos que se formos a praia só um pouquinho vai ficar tudo bem, fantasiamos que se todos fizeram exame antes de pegar um avião, vai ficar tudo bem. Ignoramos que o avião, a praia, a aglomeração sejam as condições essenciais de propagação do vírus. Brincamos com a morte. Apostamos com ela, e como de fato alguns não morrem e alguns não se contaminam, continuamos com a investida imoral. Além do quê, nosso cérebro também não ajuda a diminuir as inúmeras fantasias estéticas que criamos para ficar juntinho do outro no feriado. Ele gosta desse sistema de apostas. Se fosse certo que todos morreríamos pisando na rua, não sairíamos, e é justamente do fato de alguns não morrerem que o cérebro relativiza o perigo. E é justamente quando o corpo nos trai que contaminamos aqueles que mais trabalharam arriscando a vida: os trabalhadores da saúde.

É por isso que é tão importante que líderes políticos, ao contrário do que faz o atual presidente genocida deste país, tomem posição firme para contenção do vírus. Porque parte do trabalho é manter a narrativa moral, a fantasia lógica nas pessoas, é manter a imagem no corpo que decorre da razão, do logos, para evitar que a fantasia estética, baseada no sensível das pessoas predomine. Construir narrativa racional é a tarefa das pessoas justas para manter as outras pessoas permanentemente acordadas para a vida, desejosas da razão ainda que doa um pouco no corpo o isolamento.

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