“Reforma” Administrativa: os dados do engodo

Para o mercado, funcionalismo público é bode expiatório para desastre econômico do Brasil. Mudanças ainda abrem brecha ao patrimonialismo e subalternidade ao setor privado. Veja, em detalhes, as falácias das premissas neoliberais

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A ABED-DF vem a público se manifestar contra a proposta de reforma administrativa que o governo federal apresentou à sociedade brasileira por meio da PEC 32/2020. Ela parte do pressuposto equivocado de que o péssimo desempenho econômico do país se deve quase exclusivamente aos salários de servidores públicos. Para sustentar esse argumento falacioso, distorce e sonega informações, tal como ocorrera com as reformas trabalhista e previdenciária, sem que nenhum resultado positivo ou prognóstico do governo e da grande mídia tenham até o momento se realizado.

No que diz respeito à proposta da equipe do governo Bolsonaro, há ao menos três aspectos negativos que precisam ser destacados:

1. A proposta prevê o fim do Regime Jurídico Único para novos contratados, exceção feita àqueles que ingressarem nas chamadas carreiras típicas de Estado, as quais tampouco estão definidas na PEC, reforçando a ideia de que esse conceito já está, em si mesmo, ultrapassado; afinal, o que seria mais típico de Estado no atual contexto pandêmico que as carreiras das áreas de saúde, assistência social, educação e meio-ambiente? Para as demais formas de contratação alinhavadas na PEC, prevê-se o fim da estabilidade funcional dos servidores nos respectivos cargos públicos, introduzindo-se, a partir de então, problemas notórios de assédio moral e institucional contra funcionários e organizações, riscos de fragmentação e descontinuidade das políticas públicas de caráter permanente e aumento da incerteza da população e mesmo dos empresários com relação à qualidade, tempestividade e cobertura social e territorial das entregas de bens e serviços por parte do Estado.

2. A proposta prevê a explicitação – com sua respectiva priorização – do princípio da subsidiariedade, por meio do qual inverter-se-á o espírito original da Constituição Federal de 1988, fazendo com que o Estado atue de forma subsidiária, coadjuvante – poderíamos dizer, subalterna – aos setores empresariais privados na provisão de bens e serviços à sociedade. O Estado auxiliaria e supriria a iniciativa privada em suas deficiências e carências, só a substituindo excepcionalmente. A atuação do Estado seria a exceção, não a regra. Se aprovada, esta proposta reforçará sobremaneira os vetores de exclusão, desigualdades, pobreza e heterogeneidades já presentes em larga escala na realidade brasileira.

3. A proposta prevê a criação de super poderes ao presidente da República, ao transferir para seu raio de discricionaridades as decisões (unilaterais) sobre criação ou destruição de organizações, carreiras e cargos no âmbito da administração pública federal. Obviamente, esta medida, em si mesma antirrepublicana e antidemocrática, reforçará os traços patrimoniais-oligárquicos da cultura política tecnocrática e autoritária brasileira, que de modo lento, mas correto, estava sendo transformada desde a Constituição de 1988 pela ampliação da transparência e da participação cidadã no trato da coisa pública.

O fato é que são pífias ou inexistentes as preocupações do governo Bolsonaro com o desempenho governamental ou com a melhoria das condições de vida da população brasileira. Travestida de reforma administrativa, trata-se na verdade de mais uma medida de ajuste fiscal.

O Brasil não possui número excessivo de servidores públicos

Contra o argumento oficial que busca justificar a reforma administrativa, faz–se mister ressaltar que não há número excessivo de servidores no Brasil. Dados do Banco Mundial revelam que a razão entre a quantidade de funcionários públicos e a população no país é de apenas 5,6%. Essa proporção é um pouco maior que a média da América Latina, de 4,4%, mas menor que a média da OCDE, que é de aproximadamente 10%.

Como proporção da população economicamente ativa, e considerando uma série de dados de 1992 a 2017, verifica-se que o percentual de vínculos públicos passou de 9% a tão somente 11% do total, desautorizando interpretações que insistem em destacar um movimento explosivo do emprego público no Brasil.

A esfera federal representa apenas 12% do funcionalismo público total do país. Significa que a expansão dos vínculos públicos se concentrou essencialmente em âmbito municipal. Entre 1986 e 2017, os vínculos públicos passaram de 1,7 milhões para 6,5 milhões nos municípios; de 2,4 milhões para 3,7 milhões nos estados e de pouco menos de 1 milhão para apenas 1,2 milhão no nível federal, considerando servidores civis e militares.

Aumentam escolarização e qualificação dos funcionários públicos

Dados oficiais mostram que a força de trabalho ocupada no setor público brasileiro se escolarizou e se profissionalizou para o desempenho de suas funções. A expansão ocorreu com vínculos públicos que possuem nível superior completo de formação, que passaram de pouco mais de 900 mil para 5,3 milhões, de 1986 a 2017. Percentualmente, este nível saltou de 19% do contingente de vínculos em 1986 para 47% em 2017.

Nos municípios, a tendência de aumento de escolarização foi também bastante acentuada. A escolaridade superior completa aumentou de 10% para 40% entre 1986 e 2017. Nesse nível federativo, chama atenção as ocupações que constituem o núcleo dos serviços de assistência social, saúde e educação (tais como professores, médicos, enfermeiros e agentes de assistência e saúde), que correspondem atualmente a 40% do total dos vínculos públicos existentes no Brasil, razão essa suficiente para desaconselhar qualquer reforma administrativa que objetive reduzir ou precarizar essas ocupações.

O Judiciário é quem melhor remunera

Ao analisar os rendimentos do conjunto do Poder Executivo, observa-se que sua remuneração média mensal, considerando os três níveis federativos, aumentou em termos reais, de R$ 3,3 mil em 1986 para R$ 3,9 mil em 2017, o que representa um aumento médio real de 0,56% ao ano e aumento real acumulado de apenas 17% em 30 anos.

Por sua vez, a remuneração média mensal para o conjunto do Poder Judiciário, nos níveis federal e estadual, aumentou de R$ 6,6 mil para R$ 12 mil, no mesmo período. O crescimento médio anual real foi de 2,1% e o crescimento real acumulado foi de 82%, o maior de todos os três poderes da União.

O mito das distorções entre setores público e privado

Importante registrar que quando comparadas as remunerações do Poder Executivo municipal com as remunerações do setor privado nacional, constata-se que setores público e privado apresentam remunerações equivalentes. De acordo com o IBGE, a remuneração média do trabalho principal no setor privado nacional foi da ordem de R$ 2,1 mil em 2018. No nível Municipal, a remuneração mensal média dos funcionários públicos é de R$ 2,9 mil, o que representou crescimento médio de 1,2% ao ano e aumento real acumulado de apenas 45% entre 1986 e 2017 para o conjunto das remunerações dos poderes executivo e legislativo nesse nível.

Esta constatação demonstra que estão metodologicamente equivocadas as comparações genéricas recorrentemente feitas por organismos internacionais, grande mídia e até mesmo pela área econômica do governo federal, acerca da suposta discrepância radical entre remunerações do setor público e privado no Brasil.

A necessidade de proteger o funcionário público da pressão política e do assédio

Diante do anterior, deve-se ter presente as particularidades e, em grande medida, a insubstitutibilidade do emprego público pelo emprego privado na grande maioria das situações e ocupações que envolvem a formulação, implementação, gestão, fiscalização, controle e avaliação das políticas públicas. Daí que a própria estabilidade funcional dos servidores públicos, por exemplo, presente em boa parte das democracias no mundo, assegura a independência dos funcionários frente à pressão política, garante a continuidade intergeracional na prestação dos serviços e permite o planejamento das carreiras públicas e a sua profissionalização permanente ao longo do tempo.

Por um Estado eficaz, inclusivo e democrático

Por todas essas razões, a ABED DF vem a público manifestar-se contra a proposta de reforma administrativa apresentada pelo governo Bolsonaro. Há, sem dúvida, enorme necessidade de melhoria da prestação de serviços públicos no país. Os problemas existem e não são poucos, estando localizados em formas de organização e de funcionamento da administração pública que frequentemente privilegiam relações pouco republicanas, pouco democráticas e bastante seletivas do Estado com agentes do mercado e que excluem parcelas imensas da população, ainda hoje alijadas da cidadania plena e dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais.

Para que o Brasil cresça de forma sustentada, enfrentando sua enorme dívida social e ambiental, é preciso que o governo seja capaz de implementar políticas públicas, não somente aumentando a cobertura social e territorial, como aprimorando a qualidade dos serviços prestados. Para tanto, o papel dos servidores públicos é central, já que, em essência, a maior parte das prestações públicas realizadas pelo Estado ainda é dependente do envolvimento direto de pessoas capazes em todas as etapas do circuito das políticas públicas. Por isto mesmo, lutamos para o fortalecimento do Estado, jamais pelo seu enfraquecimento.

Brasília-DF, 16 de setembro de 2020.

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