Na TV, a fantasia de um “Agro Verde”
Reflexões sobre o remake de Renascer, novela da Globo. Antes, a luta dos sem-terra era messiânica; hoje, se daria num pacto com o ruralismo “consciente”. E a nova geração de latifundiários seria purificada pelo capitalismo “verde”, com a captura de saberes agroecológicos
Publicado 04/10/2024 às 12:50 - Atualizado 04/10/2024 às 19:00
1 – O agronegócio e as novelas
Não é novidade que na atual fase do capitalismo a imagem e a produção de imaginário se tornaram centrais para a exploração e a mercantilização da atenção. No Brasil, a despeito do streaming em franco crescimento, que acirrou a disputa pela audiência, as novelas continuam sendo o principal produto de massa da indústria cultural. Decifrar as suas construções narrativas, portanto, continua sendo uma tarefa necessária para compreender e desmistificar os modos de incorporação da cultura dominante ou do sistema de significados e valores, do corpo de práticas e expectativas que saturam a nossa experiência vivida e o nosso entendimento sobre o mundo1.
Como argumentamos em um texto anterior, “Pantanal e as encruzilhadas do Brasil”2, sobre o remake da novela Pantanal, lançado em 2022, a produção global indicava um intercurso de mudança dos marcos que passariam a ser postos em prática pelo novo arranjo de governo, com a vitória eleitoral de Lula no mesmo ano. Não parece ser por acaso que as novelas das nove lançadas após Pantanal, Terra e Paixão e, por último, Renascer, também tenham narrativas centradas no agronegócio. Para além do “agro” na tela, já em 2016, quando foi lançada Velho Chico, criada por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Carlos Araújo, Gustavo Fernandes, Antônio Karnewale e Philippe Barsinski, nota-se o coronelismo substituído pelo agronegócio moderno3, com ênfase na adoção de técnicas “sustentáveis”, como também acontece em Pantanal e na nova versão de Renascer. Além de buscarem sanar as questões sociais e ambientais pela resolução de um conflito entre gerações de grandes proprietários, o horizonte dessas novelas também é a integração dos pequenos produtores na esfera da comercialização, sempre sob comando do agronegócio.
Este último, mais do que o emblema máximo do nosso modelo de desenvolvimento desigual e combinado, tornou-se, desde os anos 2000, o carro-chefe de compensação das perdas advindas das crises estruturais do capital para gerar saldo no comércio exterior, atendendo a demanda internacional, principalmente do mercado chinês. Assim, a exportação das commodities e a devastação social e ambiental causadas por sua lógica de produção deu um salto nas últimas duas décadas, aceleradas pelo avanço de uma infraestrutura global financeira e especulativa própria4. O agronegócio (e sua lógica, visão de mundo) é, portanto, não apenas o epicentro do sistema de exploração capitalista atual no país, mas também o principal adversário das lutas imprescindíveis do tempo presente. Aquelas que, reivindicando terra, território e vida, articulam a defesa ambiental à luta por direitos sociais.
Por isso, o sistema de produção simbólica não cessa de trabalhar a favor da legitimação do “agro”, inclusive como “pop”, o que se dá, claro, de modo complexo, com deslocamentos e absorções de sentidos. Assim, o tratamento dado às personagens subalternas nas tramas é revelador. Em Pantanal, por exemplo, o pacto entre os Leôncio (agronegócio) e os marruás (a natureza), que sintetiza a emergência de um genuíno “agronegócio sustentável”, foi firmado a partir do casamento entre o herdeiro Jove e a mulher que virava onça, Juma, órfã de pequenos agricultores migrantes vindos do Paraná. Já em Terra e Paixão, os indígenas liderados pelo pajé Jurecê (Daniel Munduruku) – situados em um lugar mítico, à parte do deserto verde de soja (que, por sinal, ganhou plasticidade poética na novela) -, apenas referendam o destino do “bem” ou da média propriedade monocultura, sintetizada na figura da personagem Aline (Bárbara Reis), em oposição à grande propriedade de Antônio La Selva (Tony Ramos).
Já os sem-terra apareceram pela primeira vez na novela O rei do gado (junho de 1996- fevereiro de 1997), de Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Luiz Fernando Carvalho. Eles irrompem no horário nobre da dramaturgia imediatamente depois do massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará, e da chegada da grande marcha do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra em Brasília, em 17 de abril de 1996. No enredo, a chegada da boia-fria Luana (Patrícia Pillar) provoca uma reviravolta, suscitando o encontro entre os pobres do campo e os fazendeiros. Paralelamente, a ocupação de terras e a luta pela reforma agrária é apresentada em duas dimensões: a da ação direta e a da ação legal. Assim, aparecem os sem terra “brutais” e os sem terra “do bem”. A morte do líder sem terra “da paz” Regino (Jackson Antunes), de Lupércio (Adenor de Souza) e de Formiga (Cosme dos Santos), assim como do senador Roberto Caxias (Carlos Verezza), que defendia a reforma agrária em terras improdutivas, nos termos da Constituição de 1988, pelas mãos de um jagunço de fazendeiro, aparece no enredo quando o massacre de Eldorado, perpetrado pela Polícia Militar, estava fresco na memória do público. O velório do senador Caxias contou com a participação dos então senadores Benedita da Silva e Eduardo Suplicy, interpretando eles mesmos e discursando a favor da luta pela terra.
Em Renascer, por sua vez, os sem-terra, “o povo da lona”, aparecem condensados em Tião (Irandhir Santos), que é chave para entender a narrativa, especialmente se considerarmos as mudanças pelas quais passou a personagem em relação à produção dos anos 1990. Nessa direção, primeiro falemos brevemente da versão de 1993, e, portanto, anterior à O rei do gado (também criada por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Luiz Fernando Carvalho) e à emergência dos sem-terra na dramaturgia do horário nobre, para então estabelecer paralelos com a atual, criada por Bruno Luperi e dirigida por Gustavo Fernandez, seguindo a trajetória da personagem.
2 – Tião na versão de 1993 e a metáfora messiânica
O eixo central da trama de Renascer, nas duas versões, é o conflito entre coronéis, especialmente entre Teodoro e José Inocêncio na primeira e entre José Inocêncio e Egídio na segunda, permeado por atentados, vinganças, reviravoltas, etc. Em torno desse conflito, orbitam as demais personagens: filhos dos coronéis, empregados e agregados. Dentre essas personagens, estão Tião (Osmar Prado), sua esposa Joana (Tereza Seiblitz) e seus dois filhos, que chegam na região cacaueira do interior da Bahia depois de saírem do manguezal, onde viviam de catar caranguejos. É bastante evidente a referência a Josué de Castro, que em Homens e Caranguejos (1967) utilizou a metáfora dos homens-caranguejos para descrever as pessoas que viviam em condições miseráveis, em palafitas, nos mangues.
Desse estado de destituição social, a família de Tião é acolhida por Teodoro, dado o interesse dele por Joana. Tutelados e explorados pelo coronel, demoram até conseguirem se libertar do assédio trabalhista, moral e sexual a que estavam submetidos. Na verdade, Tião se torna um trabalhador escravizado por dívida. Nesse primeiro momento, assim como na versão atual, ele, ingenuamente, acredita que pode enriquecer como José Inocêncio, desde que consiga uma garrafa com o caramunhão. Iludido pela história do coronel bem sucedido, torna-se então “Tião Galinha” na tentativa de “chocar” um caramunhão para ele mesmo, o que o humilha e desilude.
Já livres do julgo de Teodoro, Joana começa a trabalhar como faxineira na casa de Rachid (Luís Carlos Arutin), mas Tião se sente deslocado sem poder trabalhar com a terra. Nesse momento, sob influência de Padre Lívio, personagem que, ao que tudo indica, nutria vínculo com a Teoria da Libertação, fazendo parte da fração progressista da Igreja Católica, Tião começa a expressar a sua consciência da injustiça em relação à desigualdade de acesso à terra. A sua curiosidade cresce e a sua consciência crítica – de classe – se revela, por exemplo, decorando o poema ensinado pelo padre que diz “quem trabalha e mata a fome não come o pão de ninguém, quem ganha mais do que come sempre ganha o pão de alguém”; ou quando demonstra clareza da exploração do ex-patrão do caranguejo que propôs um acordo injusto a que ele recusou, citando a atitude de Jesus contra os vendilhões do templo e dizendo: “Jesus não aceitaria”.
Por fim, volta a trabalhar com a terra na fazenda herdada por João Pedro, mas é demitido pelo novo patrão por falar demais e fazer perguntas demais, ocasião em que escuta que “na roça se trabalha calado ou cantando”. Triste, retorna ao mangue e volta a capturar caranguejo até dizer que vai correr mundo e voltar apenas quando tiver um pedaço de terra. Dessa forma, torna-se uma espécie de líder messiânico que prega ao povo sobre a injustiça com forte teor religioso. Nessas imagens, os trabalhadores são totalmente passivos, apenas o escutam e o seguem. Até mesmo quando Teodoro envia seus capangas para espancar Tião, toda a cena de violência se passa sem nenhuma interferência dos camponeses.
No entanto, após um atentado promovido contra Teodoro, fruto do conflito entre ele e José Inocêncio, Tião é acusado injustamente de ser o autor do crime, é preso e se suicida na cela da prisão, deixando um bilhete com os versos que aprendeu com padre Lívio, além de escrever: “A escritura sagrada é a escritura da terra? Eu só queria um bocadinho de terra pra mó de plantar minha rocinha e criar meus filho”. A música dramática, trechos da voz de Tião em off, imagens de diferentes pessoas representando as classes populares do mundo ambientam a cena do personagem morto, equivalendo-o à do messias crucificado. A sua morte causa remorso em José Inocêncio, que não lhe deu um emprego, e, por fim, abre a possibilidade de concretização do romance entre Padre Lívio e Joana, após uma longa crise ética do religioso que culmina com a sua desistência da batina.
Na primeira versão, portanto, Tião percorre o seguinte trajeto: de catador de caranguejo, torna-se trabalhador rural escravizado por dívida na fazenda de Teodoro, é enganado por José Inocêncio com a promessa de enriquecer, é demitido por João Pedro, torna-se uma liderança popular messiânica e, então, morre como uma espécie de messias que purga os pecados do mundo. Essa relação entre a personagem e Jesus traz à tona valores e crenças do cristianismo primício e do catolicismo popular que permeiam, de um modo ou de outro, as noções de justiça, solidariedade, modos de sentir e agir da grande maioria da classe trabalhadora brasileira. Ao mesmo tempo que Tião expressa a rebeldia de Jesus, para quem não poderia haver negociação alguma entre o “Reino de Deus” e os poderes do mundo terreno, também denota que esse reino é um dom de Deus e não um ato histórico5. Dado os pecados do mundo, como constam nos evangelhos, alcançar a ordem social justa envolve passar pela morte, pelo auto-despojamento radical pelo qual passa Tião. Assemelhado à figura do Messias, pode-se dizer que em vez da superação da estrutura de poder que torna a terra propriedade de tão poucos, a ênfase está situada na superação da injustiça pela concretização do reino de Deus.
3 – Tião na versão de 2024 e o apelo ao pacto pelo conhecimento
Na versão de 2024 é notável a ênfase no modo de plantar o cacau de José Inocêncio, um vanguardista que optou pela agrofloresta e conseguiu proteger suas plantações da “vassoura de bruxa” que assolou a região. Assim, ele obteve sucesso e a incompreensão em torno das suas fazendas passa a alimentar os mitos de que ele tem um pacto com o diabo, o caramunhão, que está em uma garrafa. Pacto que também explica o seu êxito em adquirir e expandir suas terras mesmo não tendo sido um herdeiro, ou seja, por mérito. Tião percorre nessa versão a trajetória da produção de 1993 de modo diferente: após sair da fazenda de Egídio, encontra acolhimento e emprego na fazenda de João Pedro, personagem que busca se diferenciar dos modos coronelistas do pai e reivindica a sua condição de “tabaréu”, de igual, em relação aos trabalhadores da fazenda, embora tenha herdado parte das terras e seja o filho mais qualificado nas técnicas de plantio do cacau.
Na versão mais recente, propõe-se uma aliança, por afinidade de princípios ligados aos valores cristãos, entre o padre Santo (Chico Díaz) e o pastor Lívio (Breno da Matta). Após a morte do primeiro, o segundo assume maior centralidade, exercendo influência sobre Tião, ainda que o seu papel de religioso não adquira a mesma força da do padre Lívio da primeira versão. A substituição do padre pelo pastor, na verdade, segue a tendência das novelas da Globo de buscar dialogar com o público protestante, a exemplo de Vai na Fé (Rosane Svartman, 2023), um sucesso de audiência. De todo modo, Lívio presenteia Tião com um exemplar da Bíblia. E é no espaço da escola em que chama a atenção pela prática do Jubileu, que aparece no Velho Testamento. Uma cerimônia em que, na antiguidade hebraica, realizava-se a redistribuição das riquezas, perdoando-se as dívidas e libertando os escravizados. Assim, a reforma agrária encontra justificativa na tradição cristã.
O senso questionador e crítico de Tião, para além do desejo de ter um pedaço de terra, também se expressa na sua recusa em aceitar a tutela de qualquer coronel. A essa reivindicação de autonomia, a narrativa responde com uma promessa que não é mais puramente religiosa, como na primeira versão. Trata-se de uma oferta que, assumida por todas as personagens que têm consciência social na trama, a exemplo da professora, do pastor e de João Pedro, propõe a troca de trabalho nas fazendas (a fim de cumprir um contrato em torno de grãos de alta qualidade) por conhecimento. Dessa maneira, o conhecimento de como cultivar adequadamente a terra se revela ser o maior capital da trama porque foi o responsável pelo enriquecimento de José Inocêncio.
Vale a pena observar aqui que se na trama da novela é o coronel José Inocêncio quem conseguiu combater eficazmente a vassoura-de-bruxa do cacau, na realidade, foi o agricultor suiço Ernst Götsch quem sistematizou o conhecimento a respeito da “agricultura sintrópica” que permite superá-la. A vassoura-de-bruxa é o nome popular da doença provocada no cacau pelo fungo Moniliophthora perniciosa6. Ele se espalhou, na década de 1980, no monocultivo em escala praticado pelos coronéis do sul da Bahia. No estado do Pará, o cacau, colhido dentro da floresta biodiversa, e com manejo dos pequenos agricultores, a doença não se espalhou7. A observação da diversidade de espécies e o manejo tradicional permitiu repensar a produção de cacau. Mas no sul da Bahia é o assentamento da reforma agrária Terra Vista que vem reproduzindo com sucesso essas práticas e produzindo chocolate de qualidade8. Isto é, nenhum coronel tem nada para ensinar em termos de agricultura saudável aos pequenos agricultores. Mais bem, tem sido o contrário. No enredo da novela, o conhecimento vai do fazendeiro aos futuros pequenos agricultores.
A socialização desse conhecimento com os trabalhadores sem-terra não é de graça: é a moeda de troca para que eles trabalhem nas lavouras da fazenda com a promessa de que quando tiverem suas próprias terras possam aplicar as mesmas técnicas e responder adequadamente ao mercado, que é altamente competitivo, exige produção sustentável e cacau de qualidade. Na versão atual, diferente da dos anos 1990, os trabalhadores não são meros espectadores. Pelo contrário, posicionam-se contra os coronéis e o latifúndio, são organizados, têm figuras de liderança evidentes, como Dalva (Maria Zenayde), e deliberam as decisões por assembleia. A desconfiança e a negativa do coletivo em estabelecer uma parceria com João Pedro, entretanto, é revertida e superada devido à intermediação de Tião. É ele que convence os trabalhadores da boa índole do filho de Inocêncio e os faz aceitarem o trato.
De líder isolado e messiânico, na primeira versão, Tião primeiro passa, no remake, a ser uma liderança funcional para o “novo agro”, defendido como responsável e abundante porque permite o plantio de outras culturas de modo cooperativo; mas depois se eleva como líder comunitário dos assentados na luta pelas terras improdutivas do coronel pica-pau, tendo ao seu lado representantes e apoiadores desse “novo agro”, caso dos filhos de Inocêncio, da professora e da advogada Kika (Juliane Araújo). Nesse sentido, vale a pena ressaltar as diferenças de interpretação da personagem feita por Osmar Prado e por Irandhir Santos. Ao que parece, o primeiro construiu uma personagem que, embora preservasse nos gestos e na fala os traços da socialização de classe, demarcando a ingenuidade e curiosidade espontâneas de Tião, era mais assertiva ao longo de toda a trama, enquanto Irandhir Santos parece ter buscado enfatizar, ainda mais profundamente, o gestus9 da personagem (corpo mais curvado, fala mais compassada, mais lenta, timidez mais evidente, por exemplo). Apesar dessa construção, o Tião da nova versão foi se tornando mais assertivo ao longo da novela, à medida que se assume um lugar na liderança popular. Não por acaso, a belíssima cena em que declama o texto de Dom Pedro Casaldáliga foi tão marcante para os espectadores10.
Nesse deslocamento da personagem, na versão de 2024, o movimento que luta pela reforma agrária passa a ser caracterizado com cores mais contraditórias, mas que, apesar disso, implicam em um achatamento do seu horizonte político: por um lado, porque o enredo parte do pressuposto da inserção dos sem-terra na lógica do mercado atual a partir da sua transformação em pequenos proprietários; e, por outro, porque a oposição à propriedade privada, ainda que referenciada, é borrada. Todo o sentido de democratização e socialização da terra afinado à luta pela superação da capitalização do comum e superação do modelo (econômico, sentimental e ambiental) da monocultura é distorcido em favor da reprodução do status quo, agora com slogan “sustentável”.
Se a primeira versão, por meio de Tião, acaba trazendo à tona o teor vanguardista revolucionário presente na figura de Jesus no sentido específico de que, para este último, o que se colocava era um novo regime que estava vindo impetuosamente ao mundo (pela vontade divina), ou seja, não poderia haver negociação entre o “reino de deus” e os poderes terrenos, a segunda versão ao mesmo tempo que afere ao personagem um papel de reformador social, tornando-o um mediador entre o agronegócio “ambientalmente consciente” e os sem-terra, também preserva a força coletivista da luta pela terra. Nesse sentido, a destruição do caramunhão por Joana (que também ascende enquanto liderança do assentamento11) como uma “invenção do coronel” é bastante emblemática. O mito da promessa de muita terra e de enriquecimento individual cai por terra, ou melhor, é comido por galinhas: “Que trato é esse que só pobre tem que pagar, que só coronel tem corpo fechado?”, como a personagem diz.
No entanto, apesar disso, prevalece o “sistema de coligação”, ou melhor, o apelo à empatia de Tião em relação ao núcleo dramático que orbita em torno de José Inocêncio. A integração da agricultura familiar às grandes cadeias agrícolas foi introduzida na década de 1990 segundo o modelo do assim chamado “novo mundo rural” ou “nova ruralidade”12. Essa integração é, na prática, a externalização por parte dos grandes produtores, dos segmentos das cadeias que apresentam mais riscos. Conhecemos o caso da cadeia do tabaco e da laranja13, por exemplo, mas a tendência é de expansão para a cadeia da soja. No Chile, também é essa a tendência na cadeia da celulose14. Parte do negócio agroexportador tem como destino da sua produção determinados nichos de mercado que exigem práticas “sustentáveis”. É, claro, um volume restrito de commodities dirigido, fundamentalmente, à União Europeia15, que não é o principal destino das exportações brasileiras.
Então, com a morte do “coronel” Egídio, que mantém suas terras improdutivas e extrai seu lucro da superexploração da força de trabalho, o esgotamento da terra e o controle da comercialização do cacau produzido por proprietários médios, os sem-terra podem disputar judicialmente as terras que não cumpriram sua função social segundo a Constituição: não são produtivas, não foi respeitada a legislação trabalhista e nem a legislação ambiental. Assim, constroem o assentamento produzindo alimentos para o próprio consumo, mas também, em agricultura consorciada, produzindo cacau para comercializar junto com a produção da família Inocêncio, estando esse negócio a cargo do filho José Bento. Assim como aconteceu no enredo de Velho Chico, a nova geração dos grandes proprietários, além da produção “sustentável”, obtém seu lucro da comercialização da produção dos produtores da agricultura familiar.
Como afirma Walter Benjamin na tese 7 sobre o conceito de história, “os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores”16. Tanto que, ao final, é justamente a herança que é dividida na família do coronel, que, antes de morrer, inclusive, não abriu mão das terras que eram de José Venâncio (Rodrigo Simas) no acordo feito com Eliana (Sophie Charlotte). Além disso, é evidente que, a partir da personagem da empresária Aurora (Malu Mader), o conhecimento que João Pedro decide dividir com os sem-terra também passa a ser o eixo de interesse de uma grande corporação que administra várias fazendas. Desse modo, alimenta-se o imaginário de que é possível transformar toda a cadeia altamente destrutiva do agronegócio em um modelo sustentável e lucrativo, ou ainda, de que é possível conciliar o capital com a preservação ambiental.
Eliana, a nova “coronela”, e Aurora são a encarnação dessa falsa promessa na figura feminina, que, em termos de construção social de gênero, empresta à ideia a noção de cuidado e parcimônia. Como já dissemos17, essa é a saída à brasileira da reestruturação “verde” do capitalismo contemporâneo, pois aqui, a tarefa principal, dada as singularidades do nosso capitalismo periférico e o avanço da desindustrialização, não é reajustar a base industrial, mas sim reformar a cadeia agroexportadora, tornando-a compatível às novas demandas ambientais do mercado internacional. Para sustentar esse projeto, insiste-se na necessidade de modernização das elites do “agro”, defendendo-se que é possível aumentar a produção sem gerar destruição ambiental. Daí José Inocêncio ser tomado como um verdadeiro herói ou um ideal a ser seguido por aqueles que resistem a se “modernizarem”. No entanto, a imagem que deve reverberar é aquela que foi estruturalmente ofuscada no enredo: a de Joana destruindo esse mito que não existe porque ele é, sem dúvida, uma invenção.
Notas
1 Ver: WILLIAMS, R. “Base e superestrutura na teoria cultural marxista”. Revista USP. São Paulo, n. 65, p. 210-224, mar./maio. 2005.
2 Disponível em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/pantanal-e-as-encruzilhadas-do-brasil/
3 Ver: ADOUE, Silvia Beatriz . “’Velho Chico’, a novela do ‘novo mundo rural’”. O Estado de São Paulo e Unesp Ciência, São Paulo, v. 78, p. 44 – 47, 28 set. 2016.
4 De acordo com matéria publicada recentemente, por exemplo, o Fundo de Investimento das Cadeias Produtivas Agroindustriais (Fiagro), gerido pelo banco Itaú, junto com os Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRAs), as Letras de Crédito do Agronegócio (LCAs), os Certificados de Direitos Creditórios do Agronegócio (CDCA) e as Cédulas de Produto Rural (CPRs) ultrapassaram o volume R$ 1 trilhão em investimento no agronegócio, em abril de 2024, sendo que esses fundos não têm critérios ambientais, ou seja, financiam infratores ambientais. Ver: BRONOSKI, Bruna. Sem critérios ambientais, bolsa de valores canaliza mais de R$560 bilhões ao agro brasileiro. Intercept Brasil. 21 agosto. 2024.
5 Ver: MARTINS; L.; DELLA SANTA, Beto. Era Jesus um revolucionário? Apresentação e texto de Terry Eagleton. Disponível em: https://esquerdaonline.com.br/2015/12/25/era-jesus-um-revolucionario-apresentacao-e-texto-de-terry-eagleton/.
6 Ver: https://agencia.fapesp.br/estudo-avanca-no-entendimento-da-vassoura-de-bruxa-doenca-que-derrubou-a-producao-de-cacau-no-brasil/36258.
7 Ver: https://www.imaflora.org/noticia/agroecologia-e-aliada-na-producao-de-cacau-e-polpa-de-frutas-na-amazonia#:~:text=Uma%20das%20pr%C3%A1ticas%20adotadas%20s%C3%A3o,florestais%20como%20andiroba%20e%20mogno.
8 Ver: https://mst.org.br/2020/12/01/vassoura-de-bruxa-do-latifundio-do-cacau-devastado-a-producao-organica/.
9 Conceito elaborado por Bertold Brecht referente a uma leitura totalizadora da interpretação do ator/atriz, relacionada à incorporação do lugar social da personagem.
10 Ver: BARBOSA JUNIOR, Zé. Frase de Dom Pedro Casaldáliga em novela emociona o Brasil. Revista Forum. 23 de jul. 2024. Disponível em: https://revistaforum.com.br/cultura/2024/7/23/frase-de-dom-pedro-casaldaliga-em-novela-emociona-brasil-162638.html. O trecho citado por Tião foi: “Malditas sejam todas as cercas!/Malditas todas as propriedades privadas que nos privam de viver e de amar!/ Malditas sejam todas as leis, amanhadas por umas poucas mãos, para ampararem cercas e bois e fazerem da terra escrava e escravos os homens!”
11 A tomada desse lugar após Tião ter sido preso remete à figura de Elisabeth, viúva de João Pedro Teixeira, liderança histórica das Ligas Camponesas, que assumiu a luta após o assassinato do marido. História contada pelo documentário de Eduardo Coutinho, Cabra marcado para morrer (1983).
12 Ver: FIRMIANO, F. D.; ADOUE, Silvia Beatriz. “O admirável ‘mundo novo rural’”. Brasil de Fato, São Paulo, p. 8 – 8, 07 jun. 2012.
13 Ver: FIRMIANO, F.D; NOVAIS, A.R; ADOUE, S.B. “A derrubada que não deu na TV”. Brasil de Fato, São Paulo, p. 6, set. 2012.
14 Ver: https://revista.fct.unesp.br/index.php/nera/article/view/5256/4375.
15 Ver: FIRMIANO, F. D.; ADOUE, Silvia Beatriz. “A balela capitalista do ‘desenvolvimento sustentável’”. Brasil de Fato, São Paulo, p. 5 – 5, 21 jun. 2012.
16 Ver: LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.
17 Ver: Disponível em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/pantanal-e-as-encruzilhadas-do-brasil/