Mercosul-União Europeia: um acordo e várias incertezas

Suposta “cooperação” pode desmontar indústria do bloco sul-americano, submetê-lo ao poder das corporações europeias e corroer direitos. Lula sublinhou a assimetria, mas não apontou saídas. Proteger setores sensíveis da economia é crucial

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Por Ana Claudia Paes, Bruno Fabricio Alcebino da Silva, Caio Vitor Spaulonci, Felipe Firmino Rocha, Gabriel de Mello Rodrigues, Giovanna Furquim Moreschi e Juliana Valente Marques

O principal ponto da agenda comercial externa brasileira para os próximos meses, na ótica governamental, é fechar o Acordo de Associação Mercosul – União Europeia. As primeiras iniciativas datam de 1999 e as negociações se prolongaram até junho de 2019, quando foi assinado.O acordo vai muito além de uma série de protocolos de livre-comércio e avança em temas como compras governamentais, propriedade intelectual, proteção ao meio ambiente, marcos regulatórios, normas sanitárias, tarifas alfandegárias, entre outras. Empresas de um bloco poderão participar de concorrências públicas em outro.

Para o Mercosul, apesar de várias vantagens, há sérias assimetrias em jogo. Exportador de commodities e importador de bens industriais, o bloco sul-americano terá na queda de tarifas de importação mais impulso ao seu processo desindustrializante. O argumento de reciprocidade no mercado europeu pode ser irreal, na prática. Indústrias de alta produtividade sempre levarão vantagem em relação a concorrentes menos competitivos. A abertura de compras governamentais pode eliminar um vasto setor de pequenas e médias empresas que atendem demandas municipais variadas. Os impactos sobre a geração de empregos também podem ser grandes. Do lado europeu, países em que a agricultura responde por parcela significativa da atividade econômica – como França, Alemanha, Itália e Espanha, entre outros – buscam restringir medidas de abertura comercial. Há um argumento mais geral por parte da UE, que são os danos ambientais das atividades econômicas praticadas pelo Brasil nos anos Bolsonaro.

Em entrevista ao jornal El País, em sua visita à Espanha no final de abril, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que em seu atual estágio, o acordo “ainda é impossível de aceitar” e que o Brasil vai propor mudanças, sem entrar em detalhes.

O que é?

Apesar das controvérsias, o Acordo de Associação Mercosul-União Europeia é um marco importante na história do comércio internacional, representando um esforço conjunto para fortalecer as relações econômicas e comerciais entre dois blocos regionais. O Mercosul, composto por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, foi criado em 1991 com o objetivo de promover a integração econômica na região. A Venezuela, integrada em 2012 encontra-se suspensa desde 2017. A União Europeia (UE), por sua vez, é composta por 27 países. Desde 1999, o Mercosul e a UE buscaram estabelecer um acordo de livre comércio abrangente.

Ao longo dos anos, as discussões enfrentaram desafios significativos devido a diferenças em temas como agricultura, propriedade intelectual e acesso a mercados. Essas divergências prolongaram as negociações, exigindo esforços diplomáticos intensos para alcançar um consenso.

Cronologia dos acontecimentos:

  • 1995-2000: Início das negociações formais entre o Mercosul e a UE.
  • 2000-2010: Várias rodadas de negociações são realizadas, mas sem um acordo concreto.
  • 2010-2016: As tratativas sofrem algumas interrupções, mas são retomadas em 2016, com um novo impulso.
  • 2019: Após duas décadas, o acordo é finalmente alcançado em 28 de junho.
  • 2020: Conclusão das negociações dos pilares políticos e de cooperação do Acordo de Associação.
  • 2020-atualidade: Processo de revisão legal do acordo. O próximo passo será a retificação de seus termos pelos poderes legislativos de cada país dos dois blocos. 

O acordo, como já mencionado, abrange uma ampla gama de temas, incluindo tarifas, barreiras não tarifárias, serviços, compras governamentais, propriedade intelectual e desenvolvimento sustentável. Também busca promover a cooperação em áreas como agricultura, indústria, comércio digital e aspectos sanitários e fitossanitários. Em 18 de junho de 2020, as partes concluíram os acertos dos pilares político e de cooperação do Acordo de Associação.

Desafios e controvérsias:

O acordo enfrenta desafios significativos, especialmente em relação ao setor agrícola. A UE é um importante produtor e teme a concorrência dos produtos do Mercosul. Por outro lado, o bloco latino-americano busca aumentar suas exportações de carne bovina, aves e produtos agrícolas processados. A sustentabilidade também é um tema sensível, pois há preocupações quanto à proteção ambiental, principalmente em relação à Amazônia e a padrões trabalhistas.

O próximo passo seria a ratificação e implementação do acordo pelos países-membros. Esse processo envolve a aprovação dos legislativos nacionais e a adoção das medidas necessárias para cumprir as obrigações estabelecidas no texto, além da necessidade de aprovação pelo parlamento Europeu no que tange a área econômica. A ratificação é um processo complexo que pode levar tempo, considerando as diferentes agendas e interesses de cada país.

Embora enfrente controvérsias, o tratado tem o potencial de impulsionar o comércio, promover a cooperação e estimular o crescimento econômico em ambas as regiões. A implementação bem-sucedida exigirá diálogo contínuo e esforços conjuntos para superar diferenças e alcançar benefícios mútuos. Segundo o Siscomex (Sistema Integrado de Comércio Exterior), o acordo resultará em uma das maiores áreas de livre comércio do mundo, integrando um mercado de 780 milhões de habitantes e aproximadamente um quarto do PIB global. Estima-se que trará resultados significativos para a economia brasileira, com um aumento projetado de US$ 87,5 bilhões no PIB em 15 anos, podendo chegar a US$ 125 bilhões considerando a redução das barreiras não-tarifárias e o aumento da produtividade. Também é esperado um aumento de investimentos no Brasil da ordem de US$ 113 bilhões. Além disso, as exportações brasileiras para a UE devem apresentar ganhos de quase US$ 100 bilhões até 2035.

Impacto na indústria

Alguns críticos argumentam que o acordo poderia levar a um desmonte das indústrias do Mercosul, devido à competição desigual com produtos europeus. Há receios de que a abertura do mercado do Mercosul para produtos industriais europeus possa afetar setores específicos da indústria, como a fabricação de automóveis, máquinas, equipamentos e produtos químicos. A solução só será possível através de concessões mútuas e podem incluir cláusulas de proteção e salvaguarda destinadas a proteger setores sensíveis da economia. No entanto, em sua versão atual, cujas negociações foram encabeçadas por Mauricio Macri e Jair Bolsonaro, demonstram certa subserviência e nanomania [costume de se achar inferior], como afirmou o ex-ministro Celso Amorim. 

O projeto de neoindustrialização proposto por Lula e Alckmin “requer iniciativa, planejamento e gestão. Nossa diversificação precisa ser criteriosa, a partir dos setores em que já temos know-how, na direção daqueles que podem gerar maior valor adicionado e nos quais temos capacidade de ser competitivos”, completa Amorim. Conforme as palavras do economista Paulo Nogueira Batista Júnior: “O acordo, invasivo, Mercosul-UE mina a política de industrialização brasileira”. Cabe aos governos e às partes envolvidas garantir que as medidas adequadas sejam tomadas para mitigar possíveis impactos negativos e maximizar os benefícios do acordo para a indústria nacional.

Outra preocupação está relacionada ao setor agrícola. Alguns países da União Europeia apresentam uma produção altamente subsidiada e padrões sanitários e fitossanitários mais rigorosos. Isso poderia resultar em competição desigual para os produtores agrícolas do Mercosul.

O histórico dos entendimentos

As primeiras discussões começaram em 1995, com o acordo de Madri. O objetivo era definir uma zona de livre-comércio entre os países dos dois blocos em até dez anos a partir dali. Em junho de 1996, quando ocorreu uma reunião de chanceleres dos países dos dois grupos em Luxemburgo, o entusiasmo era grande, já que, na época, os dois blocos contavam com 500 milhões de consumidores, e se abriria um mercado quase inédito para os países sul-americanos. A ideia parecia ambiciosa para os dois blocos, já que as negociações da Alca (Área de Livre Comércio das Américas) também estavam sendo discutidas. 

As negociações passaram por altos e baixos até a assinatura final. O quadro abaixo busca mostrar o ímpeto de cada lado, em 2019.

QUADRO 1 – INTERESSES NAS NEGOCIAÇÕES DO ACORDO MERCOSUL-UE

FONTE: Reprodução de SILVA, SILVA e FERREIRA (2019, p. 24).

Problemas e atrasos

Ao longo de mais de vinte anos, as tratativas oscilaram entre debates acalorados e períodos em que as discussões ficaram inertes.  A partir de 2010 as negociações voltaram a ser interessantes para os blocos, ainda que de forma lenta. No entanto, os governos do Cone Sul não viam concessões suficientes do lado europeu para um desenlace positivo. Neste período, a oposição argentina foi marcante, com discrepâncias acentuadas em relação à posição protecionista europeia no setor agropecuário. Sob os novos ares de governos favoráveis aos interesses do mercado – Temer, no Brasil, e Macri, na Argentina -, o acordo voltou a ser um tema importante e outras rodadas de negociações, com novas propostas e concessões, se iniciaram. Finalmente, em 2019, já no governo de Jair Bolsonaro, o Mercosul e a União Europeia, enfim, selaram o documento final. No entanto, mesmo assim as discussões continuaram inflamadas. Muitos países europeus não se mostraram favoráveis à ratificação do acordo em meio a crise ambiental vista no Brasil. O meio-ambiente é um tópico sensível e de extrema relevância na política europeia. A isso se soma o fato dos agricultores europeus terem organizado diversas manifestações contrárias ao acordo. 

As negociações sob Bolsonaro

Os entendimentos entre os dois blocos durante o governo Bolsonaro se caracterizam por restrita participação da sociedade civil nos debates, pelo entrave da pauta do meio ambiente e pela crise interna do Mercosul.

Segundo a análise de Celso Amorim e do ex-ministro das Relações Exteriores da Argentina Jorge Taiana, a urgência de se anunciar o selamento do acordo em 2019 se deu por razões políticas específicas da conjuntura. Segundo ambos, o anúncio seria uma estratégia do então presidente Macri para aumentar suas chances de sucesso no processo eleitoral argentino.

A visão crítica a conclusão do acordo no governo Bolsonaro se baseia em algumas questões específicas:

1. Concessões excessivas: Alguns críticos alegam que o Brasil fez concessões excessivas aos europeus durante as negociações. Os argumentos são de que o governo Bolsonaro aceitou reduzir tarifas de importação em setores estratégicos, como agrícola e industrial, sem obter contrapartidas significativas. Essas concessões poderiam prejudicar a indústria nacional e a produção agrícola brasileira, uma vez que os produtos europeus, que são altamente competitivos, poderiam inundar o mercado brasileiro.

2. Proteção ambiental e indígena: Outra crítica levantada é a falta de compromisso do acordo com a proteção ambiental e dos direitos indígenas. O governo Bolsonaro foi alvo de críticas por suas políticas ambientais controversas, incluindo a flexibilização das leis de proteção ambiental e a expansão da exploração agrícola e pecuária na Amazônia. Alguns alegam que o acordo não impõe restrições suficientes ao Brasil em relação a essas questões, o que poderia comprometer o meio ambiente e os direitos das comunidades indígenas.

3. Impacto econômico assimétrico: Há preocupações de que o acordo possa favorecer desproporcionalmente os países europeus em detrimento dos países do Mercosul. Alguns críticos afirmam que a indústria e a agricultura europeias estariam mais avançadas e competitivas do que as do Mercosul, e que isso pode resultar em um desequilíbrio comercial prejudicial para os países sul-americanos. Além disso, a falta de políticas de apoio e incentivo aos setores vulneráveis pode acentuar as desigualdades socioeconômicas internas.

No entanto, é importante ressaltar que tais críticas não são consenso e existem opiniões divergentes sobre o acordo. É fundamental um debate aberto e aprofundado, considerando  implicações econômicas, ambientais e sociais, bem como a necessidade de garantir um equilíbrio justo de interesses entre os países envolvidos.

A questão ecológica

A economia verde é um tema muito caro para a União Europeia nas negociações. Em 2019, foi lançado o Pacto Ecológico Europeu (European Green Deal) com a finalidade de tornar a economia do bloco mais sustentável e de impacto neutro no clima. Entre as diretrizes estavam a construção de uma Diplomacia do Pacto Ecológico, na qual princípios ambientais se tornariam centrais em relações diplomáticas e comerciais. Desta forma, foram evidentes as tensões entre a União Europeia e o governo Bolsonaro. Houve entraves nas negociações, com países como Holanda, Áustria e a região da Valônia, na Bélgica, votando contra a ratificação e outros países como França, Irlanda e Luxemburgo vocalizando suas resistências.

Em visita ao Brasil em 2020, o Comissário Europeu para o Meio ambiente, Virginijus Sinkevicius, demonstrou abertamente suas preocupações com o aumento do desmatamento no país e com as políticas antiambientais do presidente Bolsonaro, em especial com o projeto de lei 191/20, o qual permitia a mineração e a criação de usinas hidrelétricas em terras indígenas. Outro projeto de lei que gerou protestos em 2021 foi o PL 2633/20, chamado de “PL da Grilagem”, o qual facilitava o desmatamento ambiental e regularizava a ocupação indevida de terras públicas. 

A rejeição do protecionismo econômico por Bolsonaro também levou a uma crise interna no Mercosul. Por um lado, a Argentina desejava maiores proteções e distribuições mais equitativas das vantagens do acordo, resultando em uma posição mais crítica ao próprio acordo que Macri havia anunciado em 2019. Por outro lado, a posição do Brasil era fortemente neoliberal e flexibilizadora. O resultado foi uma série de discordâncias em relação a taxas, como a Tarifa Externa Comum, e outros artigos tanto do acordo Mercosul-União Europeia, quanto do próprio Mercosul. Diante desta crise e desses temas, a União Europeia apenas podia esperar por uma estabilização da situação. 

Procurando avançar na ratificação, a União Europeia propôs em 2020 o anexo ambiental, inserindo no acordo normas restritivas sobre a pauta ambiental. Críticos apontam que o anexo produz pouco efeito prático para garantir o respeito aos princípios ambientais e sustentáveis. Porém, essa proposta deixa clara a situação contraditória em que se encontra a União Europeia. Por um lado, a pressão da pauta ambiental na opinião pública e a pressão contra o acordo são grandes. Por outro lado, os representantes do bloco não querem abandonar a mesa de negociações e a possibilidade de efetivar o acordo um dia. 

Os blocos e Lula III

O governo Lula trouxe novos ares para as negociações. Desde que assumiu o governo, em janeiro de 2023, o presidente brasileiro já se reuniu com os principais líderes da União Europeia. Durante as viagens, Lula comprometeu-se com a erradicação do desmatamento e do garimpo ilegal e focou em discursos sobre a importância da sustentabilidade e do patrimônio ambiental do país dentro de seu governo. Além de posicionar-se em linha com as posições europeias nesse tema, o governo mantém-se ocupado para garantir que os interesses do Mercosul também sejam atendidos. Em 24 de maio, o chanceler Mauro Vieira reiterou o desejo de se chegar a um acordo  equilibrado entre os dois blocos, mas que “ao mesmo tempo, não aceitamos que o meio ambiente – preocupação legítima e que compartilhamos – seja utilizado como pretexto para exigências despropositadas, para a adoção de medidas de viés protecionista ou, no limite, para retaliações descabidas”.

A União Europeia produziu, em março de 2023, uma side letter (carta lateral) – complemento contratual. O documento sobre medidas que deverão ser adotadas pelos países do Mercosul exibe o objetivo de não incentivar a degradação ambiental e/ou de ferir direitos humanos dos povos originários, sendo uma delas a proibição na União Europeia do comércio de produtos ligados ao desmatamento, devendo os produtos importados possuírem a rastreabilidade devida de sua procedência, e a outra sendo a exigência das empresas exportadoras de produtos como cimento, aço, alumínio e fertilizantes de provarem a neutralidade da emissão de carbono (Carbon Border Adjustment Mechanism).

Críticos da side letter apontam que a capacidade da União Europeia de impor sanções à importação dos produtos dos países baseados na interpretação de degradação ambiental – ainda que essa degradação fosse legal nos países exportadores – feriria o princípio da igualdade jurídica entre os Estados.

Os próximos passos

Apesar dos longos anos de negociações, existe certa objeção da União Europeia para ceder, nem que pouco, suas exigências. Enquanto os europeus, que possuem grandes subsídios para seus pequenos produtores a fim de manter a paisagem de seus países,  exigem dos membros do Mercosul uma preservação ambiental, incentivam um acordo que beneficia, principalmente no Brasil, setores da indústria e do agronegócio, maiores causadores do desmatamento (o segundo, unicamente, foi responsável por 97% do desmatamento em nosso país no ano de 2022) e que possuem grande influência nas tomadas de decisões comerciais e políticas. 

É possível que as próximas negociações do governo atual apresentem contribuições para melhorar o acordo para o lado sul-americano. O objetivo seria incentivar não apenas o setor econômico-comercial, mas direcioná-lo a um âmbito político-social, a fim de propiciar retornos estruturais positivos para a América Latina e seus povos, aumentando as chances de desenvolvimento da região por meio da diversificação produtiva. 


Referências bibliográficas:

SILVA, Roberta Rodrigues Marques da. SILVA, Ricardo Dias da. FERREIRA, Fernanda Ramos. O agronegócio brasileiro e as negociações Mercosul-União Europeia. Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 14, n. 3, 2019, p. 5-32. 

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4 comentários para "Mercosul-União Europeia: um acordo e várias incertezas"

  1. Morwen Daebrethil disse:

    A questão é que boa parte da “nossa indústria” já são as referidas multinacionais europeias (VW, Stelantis, Valourec). Uma coisa é querer renegociar partes do acordo para que seja mais fácil para empresas daqui ganhar o mercado europeu. Porém, dizer que o acordo aprofundará nossa desindustrialização é tendencioso.
    Os Europeus possuem uma renda per capita de 4 a 5 vezes maior, os salários minimo europeus são muitas vezes mais altos que os daqui. Os custos de energia na europa também são enormes, principalmente agora com a guerra, e eles não tem a quantidade de energia hidroelétrica e o potencial solar e eólico que nós temos. Na realidade, nós estamos vendo que a industria europeia é muito pouco competitiva no mundo atual, cada vez mais dominado pela Ásia. Os níveis de inflação na UE são mais altos do que nos Estados Unidos, porque eles não tem capacidade produtiva para fabricarem o que consomem, já que eles tem um setor de serviços grande demais e uma população descrescente que não consegue ocupar os postos de emprego industriais – isso sem contar com o já mencionado alto valor na mão de obra. Empresas europeias na verdade buscaram Russia e China nas últimas décadas para produzirem usando mão de obra barata, porém a atual disputa geopolítica está prejudicando essas cadeias de suprimento e fazendo a Europa ficar sem de quem comprar. Por isso os preços sobem tão depressa. Em diversos setores nossa industria levaria vantagem, ou eles acabariam trazendo mais plantas industriais para cá, produzindo aqui coisas como carros, remédios, roupas e etc. A maioria dos paises europeus não tem mão de obra barata o suficiente para isso e muito menos para coisas como construção civil. Boa parte da crise imobiliária em países como a Irlanda se dá não apenas por escassez de mão de obra, mas também pela ausência de empreiteiras competentes que conseguem construir habitação. No Reino Unido pós brexit a situação é ainda pior, faltam produtos básicos noa supermercados – talvez um acordo com eles seria bom, afinal nós temos uma industria alimentícia que já é forte pelo menos, e certamente podemos competir de frente nesse setor nesse tipo de cenário por lá.
    Na realidade, o que não falta são oportunidades nesse acordo. Os europeus sempre se mostraram confiáveis nas ultimas décadas (as parcerias com eles rendem transferência de tecnologia e as exigências deles são coisas como proteção ambiental e direitos trabalhistas – coisas que podem servir de amarra para as elites bizarras daqui que realmente querem viver para sempre de extrativismo e escravagismo).
    O que deu errado no nosso país é que nós, do contrário da Ásia focamos numa industrialização totalmente voltada pro mercado interno, nossas políticas industriais são subsidios incondicionais, muitas vezes para multinacionais, produzirem coisas como carros para o mercado interno. Isso é um erro, pois isso vicia as empresas no mercado consumidor menos exigente daqui, de modo que o que é produzido aqui realmente não compete com nada. Se o governo aqui estivesse, ao invés de criar o subisidio para o “carro popular de 70 mil”(que vai ser produzido por multinacionais europeias em sua maioria), focando em criar subsídios para empresas do mercosul, ou mesmo da UE que instalem suas fabricas aqui neste território, para exportar carros populares para os 450 milhões de habitantes da UE. Com uma reforma tributária que taxe finanças, lucros e propriedade e menos renda e produção, e com esse tipo de politica industrial voltada para exportação, podemos sim ganhar o mercado europeu, porque nossos salários são ordens de grandeza menores que os de lá, e nós temos abundância de energia barata, que é algo que eles não tem. Também temos recursos minerais acessíveis que eles não tem. A única coisa que nós não temos é infraestrutura boa, mas isso é responsabilidade do governo construir, e nesse caso, a parte de licitações e afins, pode forçar as empreiteiras daqui a melhorarem, já que sempre foram muito acomodadas. De qualquer jeito, existem muitos paises europeus que perderam a capacidade de fazerem grandes obras e isso pode ser uma oportunidade também.
    No fim, o fato de termos salários tão mais baixos e custos de energia bem mais acessíveis nos faria ser uma mini China para a Europa na melhor das hipoteses e na “pior”, virariamos o México deles (veja que o PIB industrial do México vai muito bem e o país está crescendo de maneira consistente, exatamente porque eles tem os Estados Unidos como cliente cativo – e vimos que o meio oeste americano perdeu mais do que o México nesse tipo de acordo). O próprio desenvolvimento da China (ou da Coreia e de outroa tigres asiáticos) ilustra tudo isso. Eles nunca deixaram de procurar aberturas de outros mercados para produtos deles. Deng Xiao Ping criou um modelo de capitalismo desenvolvimentista voltado para a exportação criando zonas de livre comércio para empresas japonesas, americanas e europeias se instalarem lá e junto com as chinesas, exportarem para esses lugares trocentos bilhões de dolares todos os anos. Enquanto isso, nossa zona franca, totalmente voltada para nosso mundo interno, falhou. Nós fizemos uma industrialização de substituição de importações, mas falhamos em competir lá fora. Isso levou a uma estagnação de produtividade aqui, porque a desigualdade e a miséria nunca garantiriam aqui um mercado consumidor exigente. O resultado foi, junto com as crises de divida, a inflação, que foi solucionada com a abertura unilateral para importações. Muito se falava que isso beneficiaria Washington, mas quem sempre lucrou com isso de verdade foi Pequim.
    Na verdade a abertura para a China levou de fato a nossa desindustrialização. Nós vendemos soja e minério para eles e eles nos vendem carros, computadores e smartphones, assim como na era vitoriana vendiamos café para os britânicos que nos vendiam locomotivas e telégrafos. A nossa relação com a China é de dependência e ela se agrava cada vez mais: nossas elites agrárias já se viciaram em exportar para eles enquanto que os chineses querem exportar capital para cá na forma do financiamento de obras, empréstimos e expansão de suas próprias multinacionais (enquanto suas concorrentes ocidentais perdem competitividade).
    Mas eu não vejo o atual governo (assim como todos os outros) se preocuparem com o fato de que a industria chinesa, que não respeita direitos trabalhistas ou regras ambientais, tenha espancado e mutilado a nossa industria (ou a de nossos vizinhos como a Argentina). E eu vejo que esse governo se preocupa muito mais com a ameaça do “imperialismo ocidental” (com excessão do americano, moribundo) do que com o rolo compressor asiático. Na verdade a UE não é capaz de se sustentar sozinha, eles precisam de países emergentes que sejam inovadores e confiáveis (como nós) para garantir que hajam produtos industrializados nas prateleiras deles, e esses produtos lá significam bons empregos industriais aqui. Por outro lado nós nunca vamos conseguir ganhar penetração no mercado chinês com produtos industriais. Eles são maniacos pilotando um rolo compressor gigante na velocidade do som. É simplesmente tolice achar que alguma empresa brasileira consegue exportar algo alé de soja, minério e carne para a China. Nós só temos chances contra eles em lugares tipo a UE, e aliás, eles que estão entrando lá para suprir a falta de oferta nos mercados europeus – e esse acordo nos daria uma grande vantagem sobre eles.
    Vocês entenderam que na verdade a UE não compete com a gente, eles precisam da gente, e quem compete conosco é a China? Engraçado que, eu estou dizendo aqui que nós deveriamos simplesmente imitar os chineses e não fazer o que eles querem, porque o que eles querem é a mesma coisa que os britânicos queriam no XIX. Nós deveriamos simplesmente nos tornarmos exportadores de bens industriais para a UE, mesmo sendo primeiro com multinacionais, isso vai nos dar oportunidade de encaixarmos nossas empresas e as de nossos vizinhos nesse mercado. Essa é a última oportunidade. Se não fizerem isso, nós não conseguiremos exportar nada que não sejam commodities para ninguém em uma década.

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