Distopias e a administração da contradição
Como explicar o boom de ficções que evocam o fim do mundo? Análise, a partir de Marcuse, sobre este fatalismo distópico que gera desconforto enquanto vende comodidade em um presente devastado. Para reagir, em vez de temer o colapso, por que não imaginar o novo?
Publicado 29/07/2025 às 17:38

É notório, atualmente, o quanto a indústria cultural tem produzido materiais distópicos: filmes, músicas, séries, programas de TV — e até mensagens difundidas por algumas seitas e religiões — frequentemente evocam o fim do mundo. Esse discurso carrega intencionalidades claras: promover o medo e a paralisia crítica, fomentar o consentimento e, sobretudo, sugerir que, entre o mundo que temos e aquele que pode vir, é melhor manter as coisas como estão.
Esse processo de contenção visa impedir a crítica à sociedade tecnológica capitalista. Diante das incertezas do futuro e dos riscos de experimentar outros modelos de vida, instaura-se uma racionalidade conservadora. Tal lógica foi apresentada pelo filósofo Herbert Marcuse de forma precisa em sua obra O Homem Unidimensional, publicada em 1964 e ainda hoje extremamente atual para compreender os mecanismos de controle do capitalismo contemporâneo.
Marcuse argumenta que o processo de contenção, que visa manter tudo da mesma forma, é tão central quanto o conceito de revolução na análise marxista. A sociedade capitalista, com suas parafernálias tecnológicas, direciona o desenvolvimento para um estado de estagnação que impede a contestação e se apresenta como a única forma possível de organização econômica, política, cultural e subjetiva. Segundo Marcuse, (2015, p.45):
Quanto mais racional, produtiva, técnica e total se torna a administração repressiva da sociedade, mais inimagináveis se tornam os meios e modos pelos quais os indivíduos administrados poderiam quebrar sua servidão e tomar sua libertação em suas próprias mãos.
Apesar dessa força repressiva tecnocrática, que oprime bilhões de pessoas pelo mundo, ainda não emergiu um movimento global de contestação ao modelo de gestão da vida baseado no capital. Esse modelo coisifica e destrói vidas por meio de jornadas extenuantes de trabalho, da produção e comercialização de armas, da fome e da miséria.
É nesse panorama que atua a contenção. Mesmo diante de uma realidade marcada pela miséria e desumanização, a revolução parece cada vez mais distante. Uma das explicações para isso está na eficiente produção de falsas necessidades que o sistema capitalista impõe. Trata-se de uma fabricação de desejos que atua coletivamente, mas que se expressa individualmente em cada sujeito.
Esse processo, segundo Marcuse, produz um nivelamento ideológico entre as classes sociais. Ele observa:
Se o trabalhador e seu chefe se divertem com o mesmo programa de televisão e visitam os mesmos lugares de lazer e descanso, se a datilógrafa está tão atraentemente maquiada quanto a filha do patrão, se o negro possui um Cadillac, se todos leem o mesmo jornal, então essa assimilação indica não o desaparecimento das classes, mas a extensão na qual as necessidades e satisfações que servem para preservação do Establishment são partilhadas por toda a população subjacente (Marcuse, 2015, p. 47).
Marcuse antecipa, assim, a padronização tanto das necessidades quanto dos desejos. O operário, assim como o patrão, passa a almejar lucro, riqueza e conforto, e não mais a contestação do modelo que o submete. Essa subjetividade é apropriada pelo discurso do “empreendedor de si”, pelo trabalho de plataforma e por um capitalismo 24/7, no qual o trabalhador se submete voluntariamente a uma lógica de produção constante — a mesma que perpetua a miséria, a pobreza, a guerra e os genocídios.
Dessa forma, Marcuse denuncia um dos aspectos mais irritantes da civilização industrial avançada: o caráter irracional de sua racionalidade. Trata-se de um sistema que expande a comodidade enquanto gera desconforto, que transforma desperdício em necessidade e destruição em progresso. Tudo isso é administrado de modo sutil — e é nesse contexto que as narrativas distópicas entram em cena.
As distopias, apropriadas pela indústria cultural, operam uma crítica esvaziada, domesticada. Ao mesmo tempo em que geram bilhões em lucros por meio de produções audiovisuais, elas também funcionam como mecanismo de contenção simbólica, impedindo a mudança real. Ao apresentar futuros catastróficos como possíveis alternativas, essas narrativas reforçam a ideia de que o presente, apesar de suas falhas, ainda é o “menos pior”.
Essa reflexão busca justamente explicar por que tantas distopias são produzidas. Quanto mais tecnologicamente avançada se torna a sociedade, mais profundas se tornam suas contradições: a pobreza e a guerra crescem, enquanto os milionários se tornam bilionários. Trata-se da administração da contradição.
Eis o paradoxo central dessa civilização: a irracionalidade da sua própria racionalidade (Marcuse, 2015).
A extinção do lucro enquanto acúmulo de capital improdutivo é essencial para essa transformação. Apenas assim será possível construir um modelo alternativo — que não seja nem a repetição do presente, nem a catástrofe distópica projetada pelas narrativas culturais. Em seu lugar, propõe-se uma realidade fundamentada na solidariedade, na coletividade e na justiça social.
Reconhecer o potencial ideológico das distopias, portanto, é o primeiro passo para desativar seus efeitos paralisantes. Em vez de temer o colapso ou resignar-se ao conforto alienante da estabilidade, é preciso imaginar o novo. Não o novo como mais uma mercadoria tecnológica ou simulacro de liberdade, mas como outra forma de vida — possível, sensível e comum.
A crítica, nesse contexto, não é apenas denúncia: é gesto criador. É nesse gesto que reside a superação das contradições da racionalidade capitalista.
Referência:
MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional: estudos sobre a ideologia da sociedade industrial avançada. Tradução de Robespierre de Oliveira, Deborah Christina Antunes e Rafael Cordeiro Silva. São Paulo: EDIPRO, 2015.
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