Data centers: o Brasil se submeterá às big techs?
Há enorme atraso tecnológico a recuperar. Mas proposta do ministério da Fazenda atropela o debate sobre o tema, entrega os dados brasileiros a corporações transnacionais e bloqueia as chances de autonomia em área estratégica
Publicado 06/05/2025 às 20:23 - Atualizado 06/05/2025 às 21:41

Nada como forçar um fato consumado para sepultar um debate promissor. O Brasil acumula um longo atraso no domínio dos dados gerados por sua sociedade e na construção dos data centers necessários para armazená-los, tratá-los e empregá-los em benefício da população. Está em curso, há anos, um debate promissor sobre como recuperar o tempo perdido. No último domingo (4/5), porém, o ministro da Fazenda precipitou um movimento que pode tornar o país ainda mais dependente das big techs e dos Estados Unidos nesse terreno estratégico para a soberania nacional.
Primeiro, o ministro avistou-se com um dos assessores mais íntimos de Donald Trump – o bilionário Scott Bessent, secretário do Tesouro. Sustentou que o governo brasileiro está empenhado num esforço de “aproximação” com a Casa Branca, algo jamais enunciado antes por Lula ou pelo chanceler Mauro Vieira. Em seguida, na segunda-feira (5/5), iniciou visitas a executivos das big techs, o oligopólio de megacorporações norte-americanas que domina, no Ocidente, os fluxos da internet e as tecnologias de informação. Esteve com capos da Nvidia, do Google, da Microsoft.
Para estimular seus interlocutores, acenou com uma oferta. Alardeou que o Brasil prepara-se para lhes propor, por meio de um programa denominado Redata, isenção total de impostos de importação para os bens necessários a instalar data centers; zero impostos também na exportação de serviços; água e energia fartas e baratas. Ao falar a jornalistas, mais tarde, Haddad mencionou um número místico. Garantiu que as benesses propostas às corporações atrairão investimentos de “2 trilhões de dólares em dez anos”, um número que, como se verá, expressa uma fantasia.
O gesto cortês de Haddad ao governo Trump e às big techs norte-americanas era, porém, uma cotovelada no rosto dos que refletem, no Brasil, sobre o atraso do país no tratamento de seus dados e na construção de data centers. O debate sobre o tema é amplo e antigo. Ressente da falta de canais de diálogo no Estado (inclusive sob Lula). Mas consideram-se soluções de sentido oposto ao enunciado pelo ministro. Elas incluem desenvolvimento autônomo, soberania digital, investimento público.
Há algo ainda mais espantoso. A precipitação de Haddad procura driblar um debate ainda em curso no próprio governo. A ideia de incentivo à construção de data centers não nasceu no Ministério da Fazenda, mas no MDIC — a pasta do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, cujo titular é Geraldo Alckmin. Tinha, porém, características muito distintas. Fontes muito próximas do assunto, no governo, descreveram a Outras Palavras como a Fazenda a capturou. De qualquer forma, a decisão está pendente. Lula ainda hesita em assinar o projeto de lei, ou medida provisória, que enviará ao Congresso sobre o tema. Entre outras considerações, há a relação do Brasil com os Brics — vista no governo, ao menos para consumo externo, como geopoliticamente prioritária. O atropelo de Haddad pode significar, segundo as mesmas fontes, a tentativa de encerrar prematuramente a polêmica.
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Estima-se que haja hoje cerca de 11,8 mil data centers no mundo — pouco menos de 200 destes, no Brasil. O número deve crescer exponencialmente nos próximos anos. Estas estruturas — enormes construções, cujos corredores podem abrigar dezenas de milhares de computadores (ou “servidores”, no jargão do setor) — concentram-se no hemisfério Norte, como mostra o mapa a seguir. A China, por exemplo, desenvolveu-se tanto quanto os EUA nas tecnologias de informação e comunicação, mas o alcance de suas redes sociais é incomparavelmente menor.

As plataformas de redes sociais e, mais recentemente, os sistemas de inteligência artificial, são enormes devoradores de dados e de data centers. Mas eles são indispensáveis para uma miríade de outras aplicações da vida contemporânea. Quando alguém lê um texto em Outras Palavras ou em qualquer outro site, um “servidor”, quase sempre instalado num data center, é acionado. O mesmo ocorre em qualquer compra online e, mais criticamente, numa movimentação de conta bancária, na reserva de uma passagem de ônibus ou avião, ou no preenchimento de uma declaração do Imposto de Renda. As atividades humanas dependem, e dependerão cada vez mais, de que estas estruturas reajam, com prontidão e o mínimo de falhas possível, a milhões de comandos simultâneos.
Esta prontidão e eficiência têm pelo menos dois preços. Um, no momento, é inevitável. Consomem-se muitos recursos hídricos e energéticos. Um data center médio usa de 11 a 20 milhões de litros d’água por dia, o mesmo que uma cidade de 30 a 50 mil habitantes. Estima-se que os data centers hoje instalados no mundo consumam, em seu conjunto, tanta eletricidade quanto o Japão, a quinta maior economia do planeta. É possível que, com o tempo, a própria tecnologia reduza este ônus. Data centers mais modernos, por exemplo, usam muito menos água. Ao invés de descartá-la, reciclam-na e a reutilizam incessantemente, o que reduz de modo considerável sua pegada ecológica.
A segunda conta a pagar é política — por isso, muito mais grave. Quem controla os data centers exerce controle sobre os dados que neles circulam. Pode capturá-los, processá-los, vendê-los ou manipulá-los. Pode utilizá-los para impor comportamentos sociais, de consumo, eleitorais. Os dados quase infinitos que oferecemos incessantemente, em nossas interações digitais, por certo “sabem” mais sobre nós do que nós mesmos. Podem ser empregados, por um lado, para planejar o crescimento harmônico das cidades, a geração adequada de ocupações ou o descarte e reciclagem ambientalmente corretos do lixo. Mas servem, ao mesmo tempo, para oferecer a cada pessoa, no momento certo, a compra que confortará suas pulsões imediatas (ainda que inteiramente desnecessárias). E para apresentar a cada cidadão a proposta que instigará seus desejos políticos inconscientes, ou aplacará seus medos (resultando em eleições nas quais o espaço público e os temas de interesse coletivo são substituídos pela microssegmentação das mensagens).
O controle sobre os data centers e os dados que neles circulam é exercido de duas maneiras. A propriedade destas estruturas está nas mãos de um oligopólio de corporações norte-americanas. Destacam-se entre elas Microsoft, Google e Amazon Web Services (AWS). Além disso, há leis extraterritoriais. Nos EUA, sobressai o Cloud Act, que permite ao Estado norte-americano requisitar dados que circulem ou estejam armazenados em qualquer empresa com sede no país — esteja o data center no estado da Virgínia, em Varsóvia, no Cairo ou em São Paulo. Foram precisamente estes dois atores políticos (as big techs e o Estado norte-americano) que o ministro Haddad escolheu para seus parceiros preferenciais.
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O grande déficit de data centers no Brasil é um tema debatido há muito por ativistas, programadores e pensadores envolvidos com as tecnologias digitais. Faltam recursos e visão estratégica. Nos últimos anos, foram migrando para estruturas fora do país dados como os das universidades e institutos de pesquisa; os do Judiciário — inclusive relativos às eleições; os da Receita e Previdência; os do IBGE; os do SUS. Instituições públicas tradicionais como o Simpro e a Dataprev estão sendo forçadas a “parcerias” em que, na prática, privatizam seus data centers — quase sempre em favor do trio norte-americano: AWS-Google-Microsoft.
Um primeiro gargalo é financeiro: o aluguel de espaço nos data centers destas empresas é pago em dólares e gera déficit expressivo na balança comercial. Outro, ainda mais grave, é a perda de soberania e capacitação. O Brasil teve, até há poucos anos, uma comunidade vibrante de desenvolvedores de tecnologia de informação e comunicação. Por falta de políticas para o setor, as empresas nacionais — públicas ou privadas — perderam pujança. A grande maioria dos profissionais brasileiros que se mantêm ativos (formados em excelentes universidades públicas no país) foram levados a trabalhar em transnacionais ou em empresas que delas dependem.
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Baseada hoje em parcerias com as big techs norte-americanas e a Casa Branca, a proposta do governo brasileiro para superar o atraso do país em dados e data centers já teve outras configurações. Sua e(in)volução foi relatada a Outras Palavras por pessoas que se envolveram diretamente no processo, mas preferem, por razões óbvias, permanecer no anonimato.
A iniciativa coube ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), de Geraldo Alckmin. É ele o órgão do governo responsável por implementar o projeto de Nova Indústria Brasileira (NIB), anunciado com alarde por Lula em janeiro de 2024. A Missão 4 da NIB trata de transformação digital. Desenvolver serviços de nuvem é, em princípio, meta prioritária no plano de reconstrução industrial do Brasil.
A proposta original construída pelo MDIC a partir do ano passado incluía o estímulo à entrada de capitais e tecnologia estrangeiros a partir da instalação de novos data centers e da atualização dos já em operação no Brasil. Mas o fazia segundo condições que preservavam a soberania e o desenvolvimento da economia digital do país. Jamais se pensou, por exemplo, em priorizar os EUA. Os dados estratégicos seriam mantidos em data centers públicos, controlados pelo Estado. Havia medidas de simplificação regulatória e a princípios de boas práticas em relação às questões ambientais.
Buscava-se evitar que, nas transformações tecnológicas em curso, o Brasil figurasse apenas como fornecedor de recursos naturais abundantes, dados e incentivos fiscais. Já na proposta original se previu a contrapartida de uma parte da desoneração fosse direcionada para o Fundo Nacional de Desenvolvimento Industrial e Tecnológico (FNDIT) para apoiar projetos de economia digital. Estimulavam-se empresas brasileiras, que já mantêm data centers e oferecem serviços de nuvem (como a Magalu Cloud), pudessem se modernizar.
Abria-se espaço para que milhares de pequenos operadores de internet, inclusive no interior, pudessem implantar seus próprios centros de dados, valorizando mão-de-obra local e gerando riqueza ali mesmo onde os dados são gerados. O mais importante na proposta original era o fomento ao desenvolvimento da cadeia produtiva à montante e à jusante, incluindo fabricantes nacionais de equipamentos, e o financiamento dos diferentes tipos de data centers — não apenas daqueles dedicados à IA, como parece ser o foco do texto atual.
Em certa altura, ainda em 2024, a agenda foi capturada. Transferiu-se a discussão para a Casa Civil, do ministro Rui Costa. Abriu-se espaço para o Ministério da Fazenda. E aí atuaram assessores especiais lotados diretamente no gabinete do ministro. Não fazem parte do quadro regular do órgão. São oriundos de empresas do Vale do Silício.
São ainda desconhecidos os termos exatos do Redata — o programa de incentivos fiscais que o Palácio do Planalto pretende propor ao Congresso. É possível que haja pontos em aberto. Após ter lido minutas recentes, nossa fonte relata: foram limadas as cláusulas que estabeleciam soberania nacional e inovação tecnológica. Surgiu, como resultante, um conjunto de medidas que se limita a oferecer vantagens às big techs norte-americanas, sem exigir contrapartidas.
As estimativas de “investimentos de US$ 2 bilhões” são uma espécie de isca, um chute fantasioso, para o qual não foi apresentado — porque parece não haver — nenhum estudo relevante. A suposta economia de dólares não foi quantificada adequadamente. Haverá menos gasto com aluguel de espaço nos data centers, é verdade. Em contrapartida, o país importará maciçamente chips (que permanecerão sob controle das big techs). E as empresas remeterão lucros ao exterior. Também não surgiu, ao menos até o momento, nenhuma avaliação que pese os prós e contras na balança de transações externas.
A capacidade de geração de empregos dos data centers é pouquíssimo expressiva. São cerca de cem profissionais, numa estrutura de dimensões médias. Faltam até mesmo estudos acerca do possível impacto sobre as fontes de água e energia, nos locais em que forem instalados data centers. Há poucas semanas, por sinal, o Operador Nacional do Sistema Elético (ONS) alertou que diversas regiões do país não são capazes de suportar estas estruturas sem comprometer o abastecimento de seus habitantes e empresas.
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Feita de maneira torta e tardia, a revelação da existência do Redata joga mais luz sobre os limites de Lula 3 e o cenário brasileiro. O governo parece pouco propenso a abrir o debate sobre os grandes temas nacionais — mesmo quando há, como é o caso, vasto acúmulo entre pensadores, ativistas e profissionais da área. Prefere entender-se, na frieza dos gabinetes, com os peso-pesados que capturam a riqueza nacional, ou com as bancadas fisiológicas do Congresso.
Ainda assim, é possível agir. O projeto que dará institucionalidade ao Renova e o remeterá ao Congresso Nacional ainda não foi apresentado. Torná-lo conhecido, combater suas concessões inaceitáveis e, eventualmente, conquistar alguma vitória parcial durante a tramitação no Legislativo é possível.
Mais árduas são as tarefas de sondar os caminhos para a soberania digital do Brasil e, de forma mais ampla, a reconstrução nacional em novas bases. Para isso, será preciso formar consciência e organização novas, e acumular, pacientemente, força política. Não é trabalho que caiba neste governo, nem no imediatismo dos calendários eleitorais.
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