Como a Agroecologia pode vencer a fome

Estudo inédito analisa a extensão do desmonte das políticas voltadas à agricultura familiar e segurança alimentar – e propõe a reconstrução do país em base agroecológica. Mais de 300 candidatos já aderiram à carta-compromisso dos movimentos

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Por Redação Outras Palavras, baseado em informações da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA)

Um estudo recém-lançado pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), que congrega centenas de movimentos, redes e organizações em todo o país, mostra que a volta do Brasil ao Mapa da Fome, em 2021, não é obra do acaso ou mero reflexo de crises globais contras as quais nada se possa fazer. Ao contrário, é o resultado de um acelerado desmonte das políticas públicas federais de apoio à agricultura familiar, agroecologia e segurança alimentar e nutricional no país. O documento, que contém, além do diagnóstico, um plano de reestruturação, é parte de uma ampla mobilização para influenciar as eleições de 2022 em torno das pautas da agroecologia, da sustentabilidade ambiental e do combate à fome. Uma Carta-Compromisso com essa agenda, proposta pelos movimentos, já foi assinada por mais de 300 candidatos a cargos nos poderes Legislativo e Executivo em todo o país.

O estudo, intitulado Brasil, do flagelo da fome ao futuro agroecológico permite formar uma visão de conjunto do desmonte que está em curso desde 2016. Além disso, mostra que muitas das principais ações que hoje resultam em empobrecimento e fome são medidas sistêmicas tomadas, a partir de 2016, nos governo de Michel Temer e Jair Bolsonaro, que criam uma nefasta sinergia com os focos específicos do desmonte.

A conclusão imediata é que a superação da fome tampouco acontecerá naturalmente, sem esforço e direcionamento político baseados em um conhecimento profundo do fenômeno da fome e dos meios para superá-la. Por isso o documento se propõe como um diagnóstico aprofundado do problema da fome e das distorções que o causam, e também inclui uma segunda parte propositiva, em que traça as bases para a formulação de um projeto de superação da fome no país, trazendo a agroecologia e suas práticas para o centro do debate. 

“Nos últimos anos, vimos a redução ou extinção das políticas públicas federais para o campo, por isso, reunimos um conjunto de elementos e argumentos sobre esse processo de desmonte, que acaba sendo muito mais amplo que isso”, diz a pesquisadora Catia Grisa, coautora do estudo. “Para além de mudanças nas políticas públicas – o que, por si só, já é bastante significativo –, o documento mostra mudanças nas prioridades do Estado, na forma de fazer e nas capacidades de construir e implementar essas políticas”, explica.

O documento, elaborado por especialistas da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade Livre de Berlim, é parte de uma jornada de mobilizações que a ANA realiza no contexto das eleições de 2022, o pleito mais crucial das últimas décadas para definir o presente e o futuro do Brasil em questões como a fome, a segurança alimentar e muitas outras questões correlatas. A rede coordena a mobilização em torno da campanha Agroecologia nas Eleições, que busca fortalecer a defesa do meio ambiente e da soberania e segurança alimentar e nutricional, valorizando iniciativas da sociedade civil organizada e dando visibilidade às práticas bem-sucedidas na produção e distribuição de alimentos saudáveis em diferentes territórios brasileiros.

Além da publicação de Brasil, do flagelo da fome ao futuro agroecológico, apresentada esta semana, a campanha divulgou uma carta-compromisso com demandas e propostas para adesão de candidaturas alinhadas às práticas agroecológicas, que já conta com a assinatura de cerca de 300 candidatas e candidatos em todo o país. A relação completa e atualizada de adesões à carta está disponível aqui.

Se o quadro agravou-se radicalmente nos governos de Temer e Bolsonaro, os fundamentos dos problemas se construíram já a partir do governo FHC e dos governo petistas, o que faz do documento também um alerta para o resultado das alianças de um eventual novo governo de Lula em 2023. Porém, diferente de 20 anos atrás, quando Lula assumiu para o seu primeiro mandato, hoje o setor do agronegócio encontra-se muito bem organizado politicamente, tem uma poderosa rede de lobby e elegeu nas últimas legislaturas a maior bancada tanto na Câmara Federal como no Senado. 

Nos últimos anos, alertam os autores, o “Estado passou a atuar na flexibilização de normas e regulamentações de interesse do setor privado — que afetaram, por exemplo, a legislação trabalhista, ambiental e fundiária —, apostando nas privatizações, em detrimento de gastos públicos e investimentos. Essa modificação das prioridades do Estado foi particularmente favorecida a partir da amplificação da participação de alguns grupos e representações no debate político. É fato que durante os governos petistas fortaleceu-se o que Delgado (2012) chama de ‘pacto de economia política do agronegócio’.”  

Nos governos de Temer e Bolsonaro, “é possível perceber mudanças nas prioridades do Estado em diversas áreas, com retrocessos importantes no que diz respeito ao reconhecimento, no âmbito dos programas e ações governamentais, da existência no Brasil de duas agriculturas. A produção e exportação de commodities passa a figurar cada vez mais como a grande prioridade reforçada, de um lado, pela demanda por produtos agropecuários no mercado internacional e, de outro, por uma política econômica favorável às exportações, em um cenário de desvalorização do real. Registra-se, ainda: a desconstrução das políticas de abastecimento alimentar em favor de soluções ancoradas em uma crença no “livre mercado”; a flexibilização dos marcos regulatórios, intensificando os processos de transferência de terras públicas para particulares; um aumento considerável de conflitos sociais no campo e da violência sobre povos e comunidades tradicionais”. 

Para os autores, a análise não deixa dúvidas que o desmonte acabou por favorecer setores do agronegócio e a indústria de alimentos processados. “Não há dúvidas de que os desmontes em curso foram fruto da entrada de uma nova coalizão de atores na estrutura do Estado, os quais defendem o Estado mínimo, a existência de uma única agricultura no Brasil e não reconhecem a importância e a diversidade de modos de vida da agricultura familiar e camponesa”, diz Grisa.

Para o pesquisador Paulo Niederle, não há dúvida quanto à intencionalidade do processo: “A análise trouxe muitos resultados interessantes, mas creio que o principal deles é desvelar que o que ocorreu com as políticas agrícolas, ambientais, alimentares e de desenvolvimento rural nos últimos anos foi o resultado de uma estratégia deliberada para favorecer determinados setores das elites agrárias e financeiras, em detrimento da ampla maioria da população brasileira”.

O diagnóstico é bastante contundente e deveria ser uma contribuição importante para o que esperamos para um próximo governo de Lula. Os pesquisadores, no entanto, procuraram também fazer um esforço de formular as bases para a construção de “uma nova geração de políticas públicas e ações coletivas”. A reestruturação do aparato federal de apoio ao meio rural deve priorizar a agroecologia como alternativa viável para recuperação da capacidade de produção, distribuição e comercialização de alimentos saudáveis para a população do campo e das cidades. 

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