Quando a esfera política é patologizada

Perverso! Esquerdopata! Doentio!… Seria apenas um modo revoltado de falar? Ou usar tal expediente, explorado por fascistas e neoliberais, pode reduzir a política, cuja essência é o conflito e a divergência, a uma clínica de exame médico?

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Durante determinado período da pandemia de covid-19, muitos críticos classificaram de “perverso” o atual presidente por conta de seu comportamento como governante e de seu desastroso governo. Infelizmente, parece que essa onda da patologização da política vai demorar muito para passar. Muito tempo antes, já havia sido cunhado o termo “esquerdopata” para se referir àqueles que votam ou seguem uma orientação política à esquerda. Nunca é demais lembrar que o termo está associado à ideia de uma suposta doença da esquerda e serve para acusar um esquerdista de ser doente – como se uma orientação à esquerda não pudesse possuir nenhuma justificação política, mas somente uma explicação médica.

Talvez, tudo não passe de um “modo de dizer” as coisas. É verdade: classificar um governante de “perverso” e acusar uma orientação política de ser patológica é um modo de dizer, mas esse modo de dizer diz de um debate político esvaziado de política e preenchido de patologia. Ainda que não passe de um xingamento, e não da avaliação de um especialista, estamos diante de um processo de redução do político à patologia e, mais ainda, à área médica.

A patologização da política, entretanto, também chegou à própria esquerda ou àqueles que se encontram em um espectro progressista, o qual havia sido justamente uma de suas vítimas. Em artigo de 31 agosto deste ano, em sua coluna do UOL com o texto Leo DiCaprio, 47, só namora mulheres de até 25: parece piada, mas é doentio, Nina Lemos abordou as escolhas amorosas do ator Leonardo DiCaprio. Ao que parece, DiCaprio nunca iniciou ou manteve um relacionamento com uma mulher com mais de 25 anos de idade. Embora digam respeito à sua vida privada e íntima, as escolhas amorosas do ator podem ser mais bem compreendidas no interior de uma sociedade que valoriza a juventude feminina e ainda caminha a passos lentos para reconhecer a beleza da mulher mais velha. Existe, entretanto, uma longa distância entre criticar politicamente esses valores e patologizá-los.

De acordo com as palavras de Nina, “Não sou psicanalista de Leo DiCaprio, mas acho que não é preciso ter esse título para ver que esse comportamento é doentio.” Eu estaria de acordo com essa frase se houvesse uma pequena correção. Ao invés de “não é preciso ter esse título [psicanalista] para ver que esse comportamento é doentio”, eu diria “é preciso não ter esse título para ver que esse comportamento é doentio”. Pode haver quem julgue como doentio o comportamento amoroso de DiCaprio unicamente com base nas notícias dos famosos, mas a riqueza e a complexidade da psicanálise certamente não residem nisso. E aqui valem algumas considerações.

Em primeiro lugar, a psicanálise pode nos apresentar uma versão subversiva da relação entre saúde e adoecimento. Muito daquilo que é socialmente valorizado enquanto realização plena das capacidades de um indivíduo (ou mesmo enquanto “saúde”) pode ser entendido, dependendo do contexto de um paciente, como adoecimento. A extenuante dedicação de um gestor à sua equipe pode ser reconhecida como um valor na empresa em que trabalha, mas pode ser também a compensação por um casamento falido ou por um reconhecimento paterno que nunca chegou. Dito de outra maneira: a psicanálise pode caminhar em sentido contrário ou mesmo sem sentido quando a comparamos com nossos valores e preconceitos pessoais e sociais.

Em segundo lugar, um psicanalista elabora um diagnóstico a respeito de seu paciente somente no interior de sua clínica e depois de várias sessões. Esse diagnóstico não é definitivo e pode ser mais bem calibrado de acordo com o andamento do tratamento. A função do diagnóstico, portanto, não é determinar se o paciente é ou não é doente, e sim orientar a maneira como o tratamento será dirigido pelo psicanalista. É verdade que Freud utilizou diversas vezes a expressão “adoecimento neurótico”, mas em psicanálise o adoecimento não está associado exatamente à capacidade do paciente se adaptar ou não às demandas sociais ou a determinados valores políticos, e sim ao sofrimento relatado pelo paciente. O adoecimento, se assim podemos dizer, seria mais a expressão de um sofrimento do que de um desajustamento.

E isso nos leva ao terceiro ponto: o que se entende por doença. Onde residiria a doença: nos sintomas ou no sofrimento? Se considerarmos o que dissemos anteriormente, doença está associada ao sofrimento. Evidentemente, uma análise pode levar à remissão ou à atenuação dos sintomas, como as paralisias corporais de origem psíquica, os pensamentos obsessivos, as compulsões e as crises de ansiedade. Entretanto, nem todo sintoma provoca sofrimento. Um bom revisor de textos pode empenhar sua compulsão pela regra e pela ordem na correção dos originais que lhe são entregues antes da publicação. Por outro lado, um professor pode sofrer intensamente com o fato de seus alunos não responderem ao questionário da matéria exatamente de acordo como se encontra no manual do professor do livro didático.

Por fim – e isso é um dos pontos mais importantes –, a associação entre um discurso de patologização e um discurso político nos conduz inevitavelmente ao esvaziamento da política. A política deixa de ser um campo social do conflito e da divergência para se tornar uma clínica do exame médico. Todos perdemos – e principalmente a esquerda. Nunca é demais lembrar que o discurso de patologização foi amplamente utilizado pelo fascismo e continua sendo utilizado pelo neoliberalismo. A psicanálise pode oferecer instrumentos analíticos e conceituais riquíssimos para a realização da crítica da desigualdade de gênero e do patriarcado em suas mais variadas modalidades. Mas a partir do momento em que pisamos na arena política, se me parece temeroso exercer o papel de clínico que identifica a patologia de seu adversário para submetê-lo à racionalidade médica, vejo com interesse o esforço de exercer o papel de um orador ou de um escritor que busca, por meio de seu discurso, construir um espaço radicalmente mais democrático e liberar potências afetivas mais universais.

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