A manipulação “nas entrelinhas” do Brasil Paralelo

Produtora camufla seu ultradireitismo sob o manto da suposta imparcialidade. Estratégia é o negacionismo cognitivo, borrando fronteiras entre conhecimento e crença. O que isso revela sobre a crise da comunicação e da confiança nas instituições?

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I. As produções da Brasil Paralelo, fundada em 2016, ainda no âmbito da crise democrática instalada no Brasil após 2013, aparecem como fatos e indicadores da ascensão das novas direitas no país. O intuito da empresa, como deixado em evidência pelo sócio Filipe Valerim, é o de propor uma perspectiva dita alternativa para a abordagem da história brasileira que, segundo ele, estaria fundada em alicerces ideológicos de esquerda, o que moveria o desejo da BP em promover uma “reforma cultural”. Isso fica perceptível através da explicação que oferece ao nome e ao logo da empresa, que representa um buraco de minhoca que daria acesso a outra realidade, paralela, cuja inspiração seria a obra Interestelar de Christopher Nolan. No caso, explica Valerim: paralela ao que as pessoas estavam acostumadas a ver na grande mídia. A imagem se legitima a partir de uma teoria conspiracionista, cujo maior artífice foi o astrólogo Olavo de Carvalho, a qual indica um movimento das esquerdas que teria se posicionado para além do campo político propriamente dito, chegando ao âmbito das universidades públicas brasileiras, sendo elas uma espécie de difusor ideológico daquilo que ficou conhecido como marxismo cultural — responsável, como apontam as performances midiáticas da empresa, por corromper e por deturpar os valores da dita civilização ocidental. A reforma cultural encampada pela produtora responderia a essas demandas iniciais, onde sugestiona-se que teriam apelo e respaldo social, acentuando-se que estaria em jogo a necessidade de se promover, e de se resgatar, a “verdadeira história do Brasil”.

As performances da BP podem ser percebidas através de uma paisagem mais ampla e complementar: a da manipulação da verdade, conforme teorizado por Patrick Charaudeau (2022). Entre os dispositivos que oferecem esteio para esse cenário estariam os meios de comunicação digitais, cujos veículos são as redes sociais geradoras de fake news. No caso, nos valeremos das próprias produções da BP como mídia que se encontra inserida nesse contexto maior. O autor argumenta, de todo modo, que esse não é um fenômeno novo, mesmo que se apresente atualizado. A publicidade e o marketing comercial também abusaram de recursos próximos. O estudioso, em busca da abordagem das formas de manipulação da verdade atuais, se vale de dois conceitos de fundo: princípio de alteridade e de regulação. Essa teorização nos faz entender as produções da BP, reforçando os usos que fazem do dito marxismo cultural que orienta, por vezes subterraneamente, os seus modos de conceber a história e a sociedade. No princípio de alteridade há a necessidade, enquanto um modo de afirmação identitária, da existência de um outro que, em sua diferença, imprime o questionamento sobre si e sobre como se relacionar com este. Nessa dinâmica, são criados movimentos de aproximação e de recusa recíprocos, cuja finalidade não seria outra do que a ativação do princípio de regulação, que visaria o controle das relações de força. Estão em questão as formas de regulação das trocas entre o “si” e o “outro”, que imprimem artifícios de sedução em situações nas quais não há ascendência, controle ou autoridade sobre o outro. O objetivo final, e daí a manipulação da verdade, seria fazer com que esse outro aderisse a suas visões de mundo.

Vemos esse gesto sendo articulado pela BP, ainda mais se pensarmos no cenário político e social ancorado na polarização. A manipulação da verdade executada pela empresa tem a intenção, primeiramente, de deslegitimar os trabalhos históricos produzidos nas universidades e, também, a atuação educativa dos/as professores/as do ensino básico, dado que estariam corrompidos pelo chamado marxismo cultural. Por outro lado, a noção de verdade serve mesmo como um paralelo, sendo agenciada a estratégia dos duplos: se valem de um vocabulário que pauta o trabalho historiográfico profissional, como no caso da intenção veritativa e da confiabilidade, contudo, se esvazia o significado desses termos, que passam a ser amalgamados a seu discurso através de uma retórica persuasiva de defesa/ataque, sendo o modo encontrado para sustentar as suas versões manipuladas da história brasileira. Percebam que a manipulação da verdade, sendo um forte mecanismo de sedução, ocorre através do próprio conceito de verdade.

Leva-se, correlatamente, a discussão para o âmbito político, desviando a atenção do público para o fazer histórico propriamente dito, sendo que essa retórica da verdade inverte a ordem dos fatores: as/os historiadoras/os e os demais analistas dos conteúdos da empresa passam a ser os deturpadores do passado e a Brasil Paralelo a defensora de uma história considerada verdadeira. Essa estratégia dos paralelos utilizada pela empresa é a forma com que autoriza a difusão dos seus produtos, que em uma análise mais detida nos oferece uma perspectiva bastante conservadora e desatualizada, em que se percebe uma abordagem da história mais condizente com o que era produzido no século XIX e não contemporaneamente (NICOLAZZI, 2020): o ufanismo patriótico, o estabelecimento de uma história única, uma história factual, o desenvolvimento de uma abordagem política em seu sentido mais restrito, a escolha do foco em grandes personalidades (biografismo), uma história de matriz cristã e eurocentrada, uma história que encobre os conflitos sociais, divisões periódicas rígidas e não mais utilizadas. É possível dizer que a empresa se vale do saber de crença, enredado a certo imaginário social, sobre o que se seria a prática dos/das historiadores/as, negando o que é produzido atualmente e presente nos horizontes dos saberes de conhecimento. Assim se vê, novamente, a estratégia dos duplos paralelistas, que se projeta para uma prática historiográfica própria ao século XIX: verdade, imparcialidade e o resgate do que chamam de “bons valores”. O diálogo da empresa é com um tipo de história há muito tempo não praticada, mas que nem mesmo nessa ambiência seria satisfatória, pois não se verifica nas produções da empresa pesquisa documental satisfatória e crítica das fontes, algo que faria a história da BP ser interditada pelos mais conservadores historiadores oitocentistas. Essa persuasão é intencional, dado que no âmbito do imaginário social, próprio aos saberes de crença, o/a historiador/a deve mover esses elementos operatórios, sendo considerados fatores de autoridade epistêmica.

A narrativa histórica produzida pela BP se voltaria, nesse sentido, para a dita reforma cultural, como se pode ver a partir da série Brasil: a última cruzada, que estabelece uma longa continuidade histórica, com desdobramentos naturais e factualistas (superficiais) e dispostos em formato de causas e de consequências, das Cruzadas ao regime militar. Se opera um maniqueísmo fundante: o resgate de uma história dita verdadeira, que traria consigo a essência do pensamento e da cultura nacional-patriótica, ante uma história feita por partidos e por ideologias de esquerda, responsáveis por aparelhar as universidades e por corromper a produção histórica brasileira. Aqui está o revisionismo, conjugado com manipulação da verdade e muitas das vezes com teorias conspiracionistas, da empresa, que caminha, pari passu, com omissões factuais intencionais, distorções as mais diversas, reificação de preconceitos seculares, silêncios profundos, chegando ao negacionismo cognitivo, isto é, aquele que desconsidera deliberadamente os aspectos mais bem conhecidos sobre o estudo do passado pelo saber historiográfico na atualidade (AVILA, 2019). Não há pesquisa histórica esmerada. Não há dimensão crítica. Não há o estabelecimento de um modelo investigativo operatório. Não há diálogo com as pesquisas contemporâneas nos campos da história. Não há o estabelecimento de elementos de criticidade. Não há aprofundamento teórico. Não há nem mesmo uma perspectiva aceitável para a ideia de documentário, já que se possui uma verdade colocada de antemão, bastando reafirmá-la ou, como dizem, regatá-la, nem que para isso seja necessário a falsificação, a fantasia e o embaralhamento (PEREIRA, 2015).

Cabe dizer que a manipulação da verdade, dialogando com Patrick Charaudeau, possui a sua especificidade, que difere da propaganda, da desinformação e da doutrinação, por exemplo. As produções da BP apresentam essa dimensão manipulatória pelo fato de não revelarem as suas intenções. Há algo de falseamento intencional e efeitos de impostura, como se pode ver através da maneira como deslegitima a produção acadêmica e as práticas docentes. É típico do discurso manipulador movimentos discursivos como a generalização, que pode ser percebida através da ideia de que todos os centros educacionais do Brasil formam um grande aparelho ideológico de esquerda; o exagero, notado no modo como enquadram toda a produção historiográfica do país como sendo promotora do marxismo cultural; o amálgama, como se pode acompanhar pelos efeitos de explicação global que oferecem em sua versão da história brasileira, em que predomina o maniqueísmo entre esquerda (mau) e direita (bom), sendo que aquela atentaria contra as verdadeiras tradições patrióticas; e até mesmo o humor, como se pode assistir em vários quadros da produtora. Através dessas estratégias a empresa cria, correlatamente, efeitos de sugestão e de consentimento e modos de impostura e de mistificação, além de outras formas manipulatórias não intencionais. Fica evidente a estratégia do medo, quando se amparam em uma longa tradição presente no imaginário social acerca dos partidos de esquerda e do comunismo, onde as famílias tradicionais e os seus valores conservadores estariam prestes a sucumbir ante o marxismo cultural. Por fim, sendo essa uma estratégia importante, a retórica da verdade da BP ampara-se, aparecendo praticamente em ações combinadas, com os discursos do rumor e da mídia, que não buscam a manipulação em si mesma, mas contribuem, pois, para uma paisagem pautada pela desinformação.

II. Outra estratégia utilizada pela empresa BP é a retórica da neutralidade, ou da imparcialidade. Algo que, conforme já pontuado pelas mais diferentes concepções filosóficas, sociológicas, historiográficas, antropológicas na contemporaneidade, apresenta-se destituída de operacionalidade conceitual e analítica, mas que para a produtora mostra-se como condição para a sua atuação. Mais uma vez vemos a história da BP em sintonia com os ideais de história majoritários do século XIX. Isso fica evidente quando associam a dita imparcialidade com o compromisso do resgate dos bons valores. Um contrassenso, dado que isso implica escolhas francamente deliberadas. A verdade essencializada da BP combate o que chamam de relativismo, imbuindo-se na causa de reviver o passado. Encaminha-se a perspectiva do lado “bom” da história, mas que se evidencia como uma disposição muito pouco aberta ao dissenso, ao argumento e ao reconhecimento e à valorização da alteridade. O que está em questão é o estabelecimento de uma verdade universal, genuína, a qual seriam os seus guardiões morais. Para tanto, devem mover toda forma de revisionismo histórico e científico possíveis, o que os lança a eleger fatos, abordagens, reflexões, raciocínios que não são operacionalizados no modo investigativo, que não são postos como uma agenda de pesquisa em movimento, mas são dispostos como uma forma de confirmar algo já estabelecido a priori, resultando em simplificações, silenciamentos múltiplos, deturpações, falsificações e negações. O desejo é a reforma cultural, e para tanto a história deve afiançar a sua perspectiva, considerada atrelada ao que consideram ser os bons costumes e as legítimas tradições da pátria. A retórica da neutralidade aparece como um modo de persuadir o público através dos seus saberes de crença, do imaginário, que identificam essa disposição como indissociável à prática dos historiadores e das historiadoras, sendo orientada como um modo de seduzir os espectadores de que não estão, assim, interessados em envolver história com política.

De todo modo, essa retórica da imparcialidade, ou da neutralidade, não é nada mais do que a própria negação da verdade, ainda discutindo com Charaudeau. É possível, recobrando o modus operandi da empresa, verificar as quatro figuras de negação estabelecidas pelo estudioso: a mentira, em que se percebe a ocultação de modos de saber, a má-fé e a denegação, estar consciente ou não do seu saber, e a impostura, se passar por aquilo que não é. Essas figuras sustentam os modos de manipulação da verdade. Há, diferente do que é dito pela empresa, uma manipulação contundente da verdade, sendo muitas as estratégias discursivas acionadas para o estabelecimento do seu “fazer crer”.

É o que se vê em Brasil: a última cruzada, que segundo a empresa apresenta-se como “o maior resgate da nossa história”. Cabe frisar que esta série foi chancelada, à época, pelo MEC. A produtora desejou promover uma cruzada contemporânea em nome da defesa da civilização ocidental, que no caso se justificaria pela necessidade da manutenção da herança colonial: Quando vivemos o nosso dia a dia, aqui no século XXI, desfrutamos desse legado: a filosofia grega, o direito romano, a moral judaico cristã e a experiência acumulada de nossos ancestrais fazem parte de nós. Essa é a herança que chamamos de civilização ocidental. Ora, o que temos, aqui, é legitimação do colonialismo e das suas violências, o apagamento dos conflitos sociais, a minimização dos passados indígenas e africanos que nos constituem conjugados com a eleição de uma mitologia fundadora instituída por homens brancos, heteronormativos, cristãos e europeus (SALGADO; JORGE, 2021). Essas operações estão pautadas nas quatro figuras de negação. Se estabelece um sentido para a história brasileira, sendo o passado resgatado a condição para a abertura do futuro, que não seria outra coisa do que o próprio passado.

Há um total, forçando as figuras de negação, negligenciamento dos milhares de artigos, de livros, de monografias, de dissertações, de teses presentes nos campos historiográficos, enganando os expectadores ao dizer que a produção de história no país seguiria, por exemplo, o padrão do historiador Caio Prado Júnior, que enxerga a história em ciclos econômicos. A ótica é a mesma que a da Revolução Francesa. O que isso significa? Factualmente nada, porém é algo com grande alcance em termos estratégicos para a manipulação da verdade, sobretudo, por abarcar o negacionismo cognitivo.

O desenvolvimento da referida série, para continuarmos em um caso específico, se move através da sequência factualista e pelo biografismo, atravessado por imagens que desejam passar uma mensagem grandiloquente, remontando algo muito desenvolvido no século XIX, que eram as galerias dos varões ilustres. Esse foco nos personagens históricos é alicerçado nas expectativas de um presente neoliberal, que entende esses sujeitos pela meritocracia e pelo empreendedorismo (MORAES; CLETO, 2023). Os demais sujeitos da história são negligenciados, apagados, silenciados: indígenas, africanos, escravizados, indivíduos pobres, mulheres, pessoas LGBTQIAP+. Esses sujeitos são secundarizados, invisibilizados na narrativa ou, quando muito, orbitam as ações dos protagonistas, que seriam os portugueses, os seus descendentes diretos e os herdeiros do trono bragantino — esses sim esquecidos deliberadamente pela historiográfica acadêmica e profissional, posto que empenhados em estabelecer uma ordem política ideologicamente amparada pelo marxismo cultural das esquerdas e dos movimentos sociais minoritários. Valerim é contundente: nossa pátria não pode ser compreendida apartada daquela que a concebeu e gestou, sendo essa a afirmação necessária para assinalarmos os objetivos desta empresa, isto é, promover a reforma, em um sentido de restauração, dos ditos verdadeiros valores nacionais, que teriam, então, sido corrompidos por professores/as doutrinadores/as.

III. O modus operandi da BP está ligado a seus interesses francamente ideológicos, que sob o manto da retórica da imparcialidade escamoteia as suas reais intenções, em que a estratégia dos duplos paralelistas novamente aparece: o que é acusado como sendo uma prática da história profissional, isto é, movimentar interpretações interessadas politicamente, no caso de esquerda, é a própria prática da produtora em versão extremo-direitista. E isso é feito conscientemente, sendo um caso de impostura. Os efeitos disso são muito preocupantes, porque o seu discurso conforma comportamentos e subjetividades, estabelecendo modos de sentir e de pensar. A retórica da imparcialidade é desonesta, porque, correlatamente, ela estabelece um virtual pacto de verdade entre quem narra a história e quem a consome, o que não se confirma, pois o que se percebe é o revisionismo como forma de elaboração de uma versão da história pré-concebida. A diferença em se executar uma revisão e o revisionismo é que, de um lado, se deseja uma leitura crítica da literatura existente sobre determinado assunto, o que torna possível colocar a investigação em movimento e abrir novas interpretações possíveis em que se faz o confronto de perspectivas a partir da certificação científica, enquanto o segundo quer adequar a investigação ao seu ponto de vista, o que torna a pesquisa secundária, sendo que ela seria apenas a confirmação de algo estabelecido. A suposta pesquisa histórica que dizem produzir significa somente adequação ao seu ideário. Seus vídeos de história estão repletos de incoerências, de deturpações e de simplificações, em que há a eleição de uma história única e o silenciamento dos conflitos e da pluralidade de vozes que compõe a história brasileira. E é exatamente aí que reside o problema do revisionismo levado adiante pela empresa. “E, ainda, opera fornecendo ferramentas retóricas que não visam a complexificar o debate público, tampouco a enriquecê-lo, mas sim miná-lo, cerceá-lo e reduzi-lo à sua própria interpretação da realidade”. A dita verdade torna-se algo a priori, rigidamente operada, única, inalienável, que se conjuga com a falta de certificação factual, projetando-se, num terceiro nível, para a assunção de preocupantes polarizações em que se elege um inimigo comum (SALGADO; JORGE, 2021, p. 12).

A BP oferece supostas perspectivas alternativas para a compreensão da história do país, movendo-se belicosamente, sendo um capítulo das chamadas “guerras culturais”, contra a história acadêmica, a história ensinada por professores e por professoras e, também, as articuladas pelos movimentos sociais. “Articulam uma política da história que pretende estar à altura das disputas que estão em curso no país, e, de modo mais amplo, se constituem como parte importante da supracitada atuação política das novas direitas brasileiras” (MORAES; CLETO, 2023, p. 24). Essa polarização pré-existente é fomentada e serve de alimento para a BP, muito em função daquilo que chamamos de modos de persuasão do outro através do princípio da regulação, que invoca, pois, a manipulação da verdade como forma de alcançar os seus objetivos e os seus interesses.

Talvez o projeto da BP chegue a seu ponto de maior visibilidade, em que se pode ver com maior clareza a conjugação entre revisionismo, negacionismo e conspiração, categorias de entendimento para o fenômeno da manipulação da verdade, com o último episódio de Brasil: a última cruzada, que recebeu o título 1964: o Brasil entre armas e livros. O objetivo da produção é remontar as circunstâncias que levaram à ditadura militar brasileira. O trinômio aludido é, então, intensificado, em que há a atualização das versões adesistas ao golpe e o fomento de todo um imaginário anticomunista que atravessa os tempos no Brasil. O enredo do longa é o da ameaça comunista, o que faria do Brasil um país alinhado à URSS, onde se destaca uma conspiração contando com toda sorte de espiões e de infiltrados da KGB. A produtora alegou ter em mãos documentos secretos que confirmam o ensejo. Mas o que se perceberia, com o tempo, seria o investimento em outra seara, não mais através do incentivo à luta armada, mas ao aparelhamento da cultura através do suposto plano teórico estabelecido por Gramsci que previa a hegemonia das esquerdas e a sua perpetuação no poder. Aqui encontramos o nascedouro do que chamam de marxismo cultural. Uma teoria conspiracionista, dado que não há nada disso no pensamento de Gramsci. Também é falso que professores, alunos, movimentos sociais invocam essa suposta abordagem da cultura, que não passa de uma invenção de matriz olavista. Uma invenção, diga-se de passagem, pouco involuntária, pois move afetos políticos. É produtora de uma verdade adequada ao senso comum, sendo informada por crenças as mais variadas, que, no caso em questão, são as que alimentam o universo simbólico das direitas, em que se vê, entre outros elementos presentes, a reificação de preconceitos seculares, o conservadorismo e a tradição do intervencionismo de Estado.

O marxismo cultural é uma teoria conspiracionista, que serve de pretexto para o ataque às formas de compreensão da história que se identificam com as minorias, com a justiça social e com as pautas afirmativas. O revisionismo é movimentado nessa teoria, que ganha materialidade instrumental para negar as conquistas progressistas do Estado democrático de direito, bem como as inclusivas, orientadas pelos direitos humanos. Ela seria fruto das hegemonias de esquerda. Há, assim, a distorção do real, oferecendo condições para a manipulação da verdade, visando assegurar uma autoridade de fala possível e um horizonte social de credulidade. Professores universitários, ou especialistas em humanidades, como historiadores, não teriam condições de confrontar as narrativas da BP por conta das suas perspectivas analíticas já estarem, de antemão, embebecidas de marxismo cultural. Estaria em curso, e a empresa necessita dessa polarização para continuar existindo, uma guerra cultural subterrânea, “(…) armada a partir da Rússia, refinada na Itália e financiada pela China, [cabendo] aos templários da verdade e da liberdade reescrever nossa história e ofertá-la ao povo brasileiro, no intuito de redimir o país (e o capitalismo) de escusas forças totalitárias (SALGADO; JORGE, 2021, p. 12).

IV. Não deve deixar de ser dito que as produções da BP se dirigem para o consumo capitalista. Ora, a identidade que se quer assumir, ante o outro “marxista cultural”, é a do neoliberalismo. Como sabemos, a marca do capitalismo é o consumo e o lucro. As produções da BP possuem como público as novas direitas emergentes, que se identificam com um mundo neoliberal e com valores conservadores. Jerome de Groot (2009) sinalizou para a tendência da comercialização do passado, como se pode ver no caso da BP. O passado evocado pela empresa torna-se comercializável e tem o seu público alvo, algo que possui implicações econômicas, mas que os espectadores, de uma maneira ingênua, acreditam, quase que de maneira alienada, constituir-se enquanto verdade.

Rodrigo Turin se atentou para as modalidades de representação histórica elaboradas pela BP a partir de uma dupla perspectiva: mercadológica e política. “A forma da mensagem espelha o conteúdo conceitual no qual essa empresa se ancora, pressupondo a defesa de uma sociedade composta de indivíduos e da livre iniciativa do mercado, sem as amarras de um Estado controlador” (TURIN, 2020, p. 30). Temos a conjugação entre política, através da conservação da tradição pátria e da família, e economia, onde vemos as noções de livre-iniciativa e de consumo, o que faz da história uma prestadora de serviços. Não apenas os conteúdos dispostos em suas produções são atravessados por essa dupla dimensão aludida. O próprio acesso a esses produtos é modulado por esse vetor mercadológico. Se no capitalismo digital os indivíduos são consumidores e produtores do próprio consumo, vemos na plataforma da empresa a seguinte operação: “A plataforma fornece à empresa uma série de dados, contendo seu perfil de consumo, que lhes permitem ajustar os seus produtos a fim de otimizar e fidelizar seu consumidor” (TURIN, 2020, p. 30). Não se tem a elaboração de um produto massificado. Se quer, então, individualizar o consumo e não promover a sincronização com um todo social, gerando um “consumidor fiel”. A estratégia, amparada na razão algoritmo-comercial, faz com que, assim que um conteúdo é acessado, o consumidor seja “(…) bombardeado em diferentes plataformas por um conjunto de propagandas que oferecem produtos semelhantes a fim de otimizar e direcionar o seu consumo, confiando-o em uma bolha” (TURIN, 2020, p. 30)

Abordemos, em todo caso, o documentário As grandes minorias (2020), que sustenta supostas ações ocultas junto aos movimentos sociais minoritários. O primeiro episódio, Antifas, argumenta que os black blocs seriam formados por comunistas radicais e imbuídos de eliminar o capitalismo. Os antifas abarcariam: neopunks, ativistas ecológicos e movimentos como o Occupy Wall Street. No enredo do documentário há uma inversão dos preconceitos presentes no tecido social, que é a estratégia dos duplos paralelistas: as vítimas seriam as pessoas posicionadas no espectro político da direita — atingidas por ataques intolerantes por não compactuarem com as minorias, quer dizer, por defenderem a propriedade privada, a família tradicional e não visarem modos de justiça social. Estamos ante um desdobramento do dito marxismo cultural. O segundo episódio é Geração sem gênero. O seu objetivo é deslegitimar as pautas de gênero em agência nos planos políticos, educacionais e culturais. O alvo são os feminismos, opressores em termos de liberdade de confronto ante as suas orientações, consideradas ofensivas, como no caso da linguagem neutra, da educação sexual e da inclusão de pessoas trans nos esportes. O último episódio, Vidas (negras) importam, se vale da conspiração interessada, em que se quer interditar as práticas dos movimentos antirracistas, como o Black Lives Matter, por tentarem implodir o sistema capitalista patriarcal visando não outra coisa do que a implementação de regimes repressivos organizados e capitaneados pelas minorias.

Dipesh Chakrabarty (1992, p. 64) argumentou que no capitalismo tardio há um paradoxo subjacente: a emergência de cidadãos e de consumidores. Através dessa dualidade o historiador indiano sugere a possível “morte da história”, que se daria a partir do momento que as contradições entre cidadão e consumidor pendessem em favor do consumidor e do capital. Vê-se, a partir de As grandes minorias, o imperativo neoliberal e não do cidadão, que em última medida estaria preocupado com o Estado democrático e, consequentemente, imbuído na promoção dos direitos civis, sociais e políticos, para lembramos das colocações de José Murilo de Carvalho (2002). A BP propõe, assim, uma história como serviço, a qual se enreda a toda uma rede semântica neoliberal em que, conforme Turin (2020), se esvazia referências como o Estado, a soberania e a cidadania.

A história da BP se direciona ao consumidor-produtor, personagem de destaque no capitalismo digital. A lógica operatória é a do mercado, em que se privatizam, segundo Turin (2020), as representações históricas com vistas aos perfis de consumo, oferecendo novas vinculações político-econômicas. O consumo das produções da BP tem como horizonte de recepção as novas direitas, o que nos faz compreender os objetivos do documentário As grandes minorias. O que está em jogo é, então, a exploração do ressentimento social, tornado objeto de consumo. O espectador ideal não é o indivíduo em busca de cidadania plena. Pelo contrário: almeja-se a intensificação do ressentimento presente no tecido social, derivado, justamente, das pautas minoritárias, que, nesta lógica, teriam ocupado lugares de poder e de representação, antes restritos e elitizados, nas dinâmicas do Estado democrático de direito. Esse afeto é a abertura para assinalarmos a guinada neoliberal atual, que destitui a autoridade das instituições que garantem direitos, pois se move através da proteção das causas minoritárias, sendo vistas como concorrentes no âmbito do poder, e o neoconservadorismo, que se dirige contrário aos modos da vida social pautados pelo progressismo, pela dignidade humana e pela afirmação da diferença.

Fernando Nicolazzi (2023), em diálogo com Maria Rita Kehl, argumenta que o ressentimento pode ser abordado através da noção de perda, sendo o sujeito ressentido aquele que age em uma direção tanto de acusação quanto de vitimismo, posto que esse gesto transfere a responsabilidade acerca da sua atual situação ao outro, que supostamente ocupou o seu lugar. Temos aqui, também, certa chave explicativa que faz com que professores, historiadores, jornalistas, movimentos sociais e as minorias em geral sejam vistas a partir de uma lógica plenamente concorrencial, própria da subjetivação neoliberal, e que move o fenômeno da “guerra cultural” alimentada pela BP. Assim, a BP está, em sua cruzada, em busca da reconquista do lar perdido, em “(…) que o sentimento nostálgico pretende novamente habitar, um lar onde pátria e história passam a ser conceitos quase que equivalentes: a restauração de uma e o resgate da outra são processos correlatos nessa forma particular de uso político do passado (NICOLAZZI, 2023, s/p).

Interessante como essa disposição voltada ao ressentimento se articula com o âmbito mais amplo da pós-verdade, que é descrita no dicionário Oxford como uma situação que denota circunstâncias nas quais os fatos objetivos têm menos influência na opinião pública que os apelos a emoção e crenças pessoais. Patrick Charaudeau entende essa lógica não apenas através das fake news, mas da mobilização de contraverdades, que se manifestam através da negação (negacionismo), da invenção pura (criação de fatos inexistentes) e acrescentaríamos a falsificação (falseamento de fatos existentes), sendo o mais adequado para tratamos as produções da BP. Contudo, esses elementos amparam-se na credulidade das pessoas, sendo um problema ético-político. Essas contraverdades são aceitas, muitas das vezes, sem reticências, sendo publicizadas, sobretudo nos ambientes virtuais, sem acareação, dado que as pessoas, na atualidade, prefeririam acreditar naquilo que consideram ser o verdadeiro. Uma subjetivação neoliberal, que pressiona a privatização das representações históricas e individualiza os valores tidos verdadeiros.

O que a Brasil Paralelo realiza é o apagamento das fronteiras entre saberes de conhecimento e saberes de crença, por onde direciona o seu discurso manipulatório. Isso é capaz de movimentar imaginários sociais e seus respectivos afetos, como o ressentimento, gerando, assim, a atualização de horizontes de credulidade. Interessante recobrar, a partir de Nietzsche (2007), os efeitos desse ressentimento, que sob a dinâmica da perda imprime um caráter reativo ante algo doloroso, no caso a extensão de direitos às minorias. O filósofo argumenta que o ressentimento gera dor, mágoa, raiva e ódio. Para o ressentido, pensando na lógica política minoritária em busca de afirmação de direitos, isso aparece como uma ofensa. Para o filósofo, os afetos apresentam-se como um caminho para o entendimento comportamental e valorativo. Assim sendo, esse ressentimento se manifesta através da violência, do desrespeito, do rompimento com a autoridade, além de atitudes como a negação do Estado democrático de direito, garantidor de condições de cidadania, em prol do Estado mínimo de matriz neoliberal, concorrencial e meritocrático. Há, por fim, os usos manipulados da noção de liberdade como forma de disseminar atitudes conservadoras, mas que não seria outra coisa do que a reificação de preconceitos.

As manipulações da verdade operadas pela BP, percebidas junto aos horizontes da pós-verdade, indicam algo maior: a crise da comunicação, derivada da dissincronia informacional que impede enunciados com sentidos e passíveis de acareação; a crise da verdade, com a redução do pensar crítico ante as emoções e os afetos, derivando em verdades essencializadas; a crise do saber, onde há a prevalência do saber individual ante o conhecimento científico; e a crise da confiança, estabelecida pela perda da autoridade do conhecimento e das instituições, tornando-se, pois, uma ameaça significativa para uma democracia preocupada com a ampliação e a consolidação dos direitos dos seus cidadãos.

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