SP: O que há por trás da troca de comandos na PM

Pesquisador analisa a exoneração de Comandante Geral e deslocamento de outros 33 coronéis. Mudança abriu espaço a oficiais da Rota para comando em cargos chave. Aumento de políticas violentas e autonomia perigosa das polícias é um dos riscos, avalia

Créditos: Reprodução redes sociais
.

Almir Felitte em entrevista a Jeniffer Mendonça, na Ponte

Num movimento fora do comum, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e o secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, trocaram 34 de 63 coronéis de cargos da Polícia Militar do Estado de São Paulo nesta quarta-feira (21/2).

Na escolha dos novos integrantes, o governo privilegiou ex-integrantes das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), uma das forças especiais da PM paulista, da qual o próprio Derrite já fez parte. Entre eles, José Augusto Coutinho, que assumiu o posto de subcomandante-geral no lugar de José Alexander de Albuquerque Freixo, que foi rebaixado para comandar a Escola Superior de Sargentos. Na corregedoria da PM, coronel Fabio Sérgio do Amaral, ex-comandante da Rota e que liderava a Academia de Polícia Militar do Barro Branco (APMBB), foi designado no lugar do coronel Edson Luis da Silva Simeira, que foi para a Coordenadoria de Assuntos Jurídicos (CAJ).

De acordo com o jornal Folha de S.Paulo, o coronelato ficou revoltado ao saber das medidas pelo Diário Oficial e prometeu retaliações. Freixo é visto como principal defensor da PM contra interferências políticas e o avanço da “mentalidade bolsonarista” na corporação. Ele também teria desagradado o secretário ao deixar de cumprir medidas consideradas políticas, além de ser crítico das operações na Baixada Santista e apoiador da ampliação do programa de câmeras nas fardas que constantemente vem sendo alvo de ataques por Derrite. A pasta afirma que as decisões foram técnicas.

Outro destaque é o coronel Aleksander Toaldo Lacerda, conhecido por ter sido afastado por indisciplina do Comando de Policiamento do Interior 7, em 2021, pelo governador João Doria (PSDB) após fazer postagens de apoio às manifestações convocadas pelo então presidente Jair Bolsonaro em 7 de setembro e contra o Supremo Tribunal Federal (STF). Ele retomou as funções em 2023, a partir da nomeação de Tarcísio, como chefe do Estado Maior da PM. Agora, com a nova troca, ele passa a comandar o Centro de Altos Estudos de Segurança (CAES).

Almir Felitte, autor de “A história da polícia no Brasil: Estado de exceção permanente?” | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Autor de A História da Polícia no Brasil: Estado de exceção permanente? (Autonomia Literária, 2023), o advogado e pesquisador Almir Felitte considera que essas movimentações ampliam a autonomia das forças policiais, que vem se fortalecendo desde a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, e contribuem para um “processo de milicianização das polícias”. “Isso mostra bastante a essência dessa movimentação que o Tarcísio está fazendo aqui em São Paulo: ele quer uma polícia cada vez mais próxima, como se já não fosse o suficiente, mas também quer uma polícia cada vez mais próxima dessa política policial bélica”, analisa.

Como você avalia a exoneração do subcomandante da PM paulista e a troca de cargos de outros 33 coronéis?

Eu diria que é um modus operandi para você trocar um comando em uma estrutura que é muito hierarquizada, como é a Polícia Militar. Com a troca de posições, esses militares perdem as funções de comando. Eles não chegam a sair da corporação, mas isso pode gerar um descontentamento em coronéis que já estão no fim de carreira. É muito provável que esses coronéis possam acabar, a partir de uma desmoralização com a tropa por essa perda do cargo, indo para a reserva. Se eles forem para a reserva, isso abre espaço para que Tarcísio e Derrite possam fazer as promoções dos militares que sejam mais próximos à política deles.

A gente tem, por exemplo, o caso do coronel Aleksander [Toaldo Lacerda], que em 2021 foi afastado por insuflar o golpismo na PM de São Paulo. Ele foi nomeado para uma função muito importante de comando, que é uma função de educação militar, de ensino militar na escola de oficiais.

Você fez uma publicação dizendo que existe um risco de “milicianização” da PM paulista. O que isso significa?

Esse movimento [de troca de comandos] por si só não significaria exatamente uma milicianização. A questão que a gente está vendo aqui em São Paulo, que eu chamo de um processo de milicianização, é um movimento de autonomização das forças policiais agindo cada vez mais em função dos próprios interesses, de interesses privados.

Isso a gente consegue ver, e vocês têm acompanhado muito bem na Ponte, com a questão da Operação Escudo, que agora virou a Operação Verão, é que são verdadeiras operações de vingança policial, transformadas em algo oficial, em algo de Estado.

Tendo um governador que aponta para essa milicianização, que sempre apontou para uma polícia cada vez mais autônoma, que cada vez age mais em razão dos próprios interesses. A partir do momento em que ele faz um movimento para os comandos dessas polícias serem trocados a fim de ficarem mais próximos dos seus objetivos políticos, então eu vejo aí também uma espécie de recrudescimento dessa milicianização que já vinha sendo operada pelo Tarcísio em São Paulo.

Chama a atenção que nessas trocas há muitos ex-integrantes da Rota, como o agora subcomandante-geral [José Augusto Coutinho] e o novo corregedor [Fabio Sérgio do Amaral]. Como você enxerga esse destaque para batalhões como esse?

Eu sou terminantemente contrário à existência de batalhões de elite na polícia. Acho que foge completamente a qualquer propósito de mediação de conflitos e de auxílio à justiça que a polícia poderia ter, porque são batalhões voltados única e exclusivamente para um confronto militarizado, um confronto bélico. Isso mostra bastante a essência da movimentação que o Tarcísio está fazendo: ele quer uma polícia cada vez mais próxima [dele], como se já não fosse o suficiente, mas também quer uma polícia cada vez mais próxima dessa política policial bélica. E, volto a repetir, isso está muito escancarado com a Operação Escudo.

E qual a consequência para as populações mais afetadas por ações como a Operação Escudo?

Primeiro eu acho que a gente precisa ver o que vai acontecer internamente dentro das polícias, porque com certeza isso gerou um descontentamento em parte do oficialato. A gente sabe que perder uma função antes mesmo de ir para a reserva, em fim de carreira, é algo que dentro do mundo militar acaba sendo visto como algo desmoralizante. Então a gente precisa esperar um pouco. Podem ser duas respostas. Isso pode balançar o governo Tarcísio e acabar até com a queda do Derrite, ou pode fortalecer ainda mais essa política, caso esses coronéis entrem para a reserva e o Tarcísio tenha a oportunidade de promover vários coronéis que sejam mais próximos à sua política.

Se essa segunda hipótese acontecer, tenho medo que a gente veja essa Operação Escudo virando algo generalizado em São Paulo, como se já não fosse um pouco, mas é claro que o que a gente está vendo agora na Baixada Santista foge até da violência comum aqui de São Paulo.

Derrite é o primeiro policial militar que assume a Secretaria de Segurança Pública. Ao mesmo tempo, não é um militar que atingiu o cargo máximo da hierarquia, já que ele é capitão e está tecnicamente abaixo dos coronéis. Quais as consequências disso para o papel que ele desempenha?

Eu acho que da mesma forma que a gente fazia esse questionamento com o Bolsonaro no governo federal, como um capitão seria comandante das Forças Armadas, eu acho que também na Polícia Militar de São Paulo isso pode gerar um atrito. A gente ouve alguns descontentamentos de oficiais que chamam o Derrite de tenente propositalmente como uma forma de mostrar que ele na verdade deveria ser um subalterno.

Agora, a grande realidade é que esse é um cargo deveria estar sendo ocupado por alguém da sociedade civil. Pouco importa a patente de quem está ali, porque sequer deveria ser um policial. É muito importante que o controle ali nas secretarias das polícias seja exercido por alguém da sociedade civil.

O jornal Folha de S.Paulo publicou que existe a possibilidade de esses coronéis que foram rebaixados resistirem às mudanças, como tirar férias, pedir licença, para evitar as trocas. Isso pode realmente acontecer?

Acho que é possível que aconteça, mas eu também acho importante que a gente olhe um pouco para as movimentações nas bases policiais. Se tem uma coisa que esses anos de governo Bolsonaro mostraram para a gente é que as bases policiais têm tido uma voz cada vez mais forte no encaminhamento político das corporações. Apesar de achar que pode ter alguma movimentação desse oficialato, do outro lado pode ter a movimentação do oficialato mais próximo ao Tarcísio e também pode haver uma movimentação das bases que são mais próximas ao governador. Ainda fica a dúvida e é algo que a gente só vai ter a resposta nos próximos dias.

Em comparação com a extrema-direita, como a esquerda atua em relação à hierarquia militar, tanto nos estados, em relação às PMs, como na União, em relação às Forças Armadas?

Acho que muitas vezes a esquerda perde oportunidades. Agora no governo federal, por exemplo, a gente vê a manutenção de uma cúpula militar nas Forças Armadas que poderia ser trocada. Os partidos de esquerda já tiveram governos estaduais em outros estados, não em São Paulo, e também perderam essa oportunidade. E é irônico porque quem faz essa movimentação toda é justamente a direita. A esquerda se abstém de fazer essa movimentação com medo de que colem nela a pecha de antidemocrática. No fim, o que a gente tem é justamente que lidar com uma força policial e Forças Armadas que são cada vez mais antidemocráticas por se abster de fazer essas reformas que são necessárias.

Que reformas são essas?

Reformas que podem ser no âmbito Legislativo (lógico que isso exige um esforço muito maior), mas que incumbem ao próprio poder Executivo também, como a nomeação de pessoas mais ligadas aos direitos humanos. Uma questão que eu tento sempre colocar é que essas forças de segurança, essas forças policiais, Forças Armadas, não têm que ter uma autonomia para se autonomearem, para nomearem suas próprias funções, seus próprios cargos.

Isso cabe ao governo. E aí é que está a grande ironia. A esquerda se abstém de fazer isso, enquanto a direita faz bastante quando está no poder. E ela faz isso numa nomeação como a gente está vendo agora: o Tarcísio nomeando militares que foram ligados ao movimento antidemocrático dos últimos anos, militares que chegaram a ser afastados por golpismo policial.

Leia Também: