Ainda falta povo na equação do governo Lula

Vale celebrar a vitória de Rodrigo Pacheco no Senado. Mas uma pesquisa de opinião relembra: o fascismo não será vencido com acordos de gabinete. Reconstruir o país em novas bases exige mobilização social – e um novo horizonte político

Lula, Rodrigo Pacheco (esquerda) e Arthur Lira no Congresso Nacional, no dia da posse do presidente
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A vitória de Rodrigo Pacheco sobre o bolsonarista Rogério Marinho, na disputa pelo Senado, coroou ontem uma série impressionante de êxitos institucionais do governo Lula, no primeiro mês de mandato. O comandante do exército, que namorava o golpismo, foi defenestrado sem crise militar. Fardados que ocupavam indevidamente cargos civis nos ministérios estão sendo demitidos. Bolsonaro está implicado no inquérito sobre os atos de vandalismo na Praça dos Três Poderes e o STF pode processá-lo por crime de genocídio contra os Yanomami. A mídia mantém-se favorável ao governo, na agenda de defesa da democracia. Lula começa a recompor o espaço diplomático do Brasil e é festejado por governantes liberais.

Tudo isso tem importância real, mas não deveria ofuscar algo de profundidade maior: a imensa tarefa da reconstrução nacional está por ser lançada. Enquanto ela não começar, as maiorias empobrecidas que asseguraram a vitória a Lula continuarão à míngua. E a semente do fascismo se manterá viva, como mostra a pesquisa incômoda divulgada ontem pelo Instituto Atlas.

Reconstruir o Brasil em novas bases é árduo e complexo porque exigirá o que o jornalista Giancarlo Summa chamou de “um choque brutal de investimento público”. O investimento privado estagnou há quatro décadas e além disso seu objetivo é o lucro, não o bem-estar das maiorias e o resgate do país. É o Estado que poderia garantir, por exemplo, um novo SUS, fortalecido e ampliado; a construção de uma escola pública de excelência; a universalização do saneamento; a despoluição dos rios urbanos; a construção de redes de metrô nas cidades e de uma nova malha ferroviária no Brasil; a transição para energias limpas. Tudo isso teria o efeito saudável de gerar milhões de empregos – do peão de obra e do pequeno instalador de painéis solares ao engenheiro, o sociólogo e o ambientalista. Um novo horizonte coletivo, erguido com base em valores populares como a solidariedade, o cuidado e a repartição, é o único antídoto potente contra o culto à brutalidade e ao salve-se quem puder.

Mas a Faria Lima não quer investimento público. O baronato financeiro, que cobra do Estado, as taxas de juros mais altas do mundo (e que as obteve de novo ontem, na reunião do Copom), regula cada tostão destinado às maiorias. A mídia, o Congresso e o Judiciário combatem a superfície do fascismo – o que é muito importante –, mas alimentam sua semente. Na pauta do Legislativo não está como dar abrigo às famílias que hoje habitam as calçadas, mas a “nova regra fiscal” capaz de “garantir segurança aos mercados” – ou seja, aos rentistas. Nenhum dos grupos empresariais que controlam o jornalismo está focado em investigar caminhos para tornar as cidades brasileiras menos hostis. O que eles querem é evitar uma reforma tributária que penalize a especulação imobiliária. Para que as famílias trabalhadoras possam, em alguns momentos, assar uma picanha acompanhada de cerveja, será preciso elevar os salários. Mas veja a ferocidade com que estes meios reagem ao mínimo de R$ 1.320, promessa de campanha de Lula.

É por isso que ainda falta, na equação política do governo, o povo. A pressão das maiorias é o contraponto indispensável ao toma-lá-dá-cá que o Palácio do Planalto foi obrigado a praticar ontem, e ao qual terá de recorrer para cada milímetro de avanço nos salões atapetados das instituições. Abrir mão das ruas, deixando-as nas mãos dos vândalos, pode ser um erro catastrófico. Brasília – e as ruas do Brasil – têm de ser tomadas. Não pelas hordas ressentidas que defecam nos palácios, mas por multidões dispostas a exigir a civilização de um teto e uma cama para todos, em vez da barbárie da transferência de recursos do Tesouro para os bilionários.

As ruas podem ser mobilizadas. As enormes festas populares que reuniram milhões de pessoas no país, no dia da vitória de Lula sobre Bolsonaro, são um sinal. Mas as praças não se enchem espontaneamente. Para reconstruir o Brasil, superando as resistências ferozes das oligarquias, não basta costurar governabilidade institucional. É preciso que o pensamento político se volte à construção de um futuro oposto ao que o fascismo propõe; e à mobilização dos sujeitos sociais capazes de lutar por ele.

Ao se reunir com as centrais sindicais, em 18/1, ainda sob o impacto da tentativa de golpe perpretada dias antes, Lula lembrou: “A democracia, a gente garante com cultura, livro, debate, educação, comida, emprego. Não adianta falar em democracia para o povo se ele fala: ‘Eu quero saber quem vai me dar comida (…) quem vai colocar o emprego para eu poder trazer comida para minha casa trabalhando’”. A construção política de seu governo ainda precisa processar estas palavras.

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