No Alerta de Ipanema, retratos do fascismo quotidiano

Um morador em boa hora fotografou um tiozinho daqueles de Copacabana dando moedas a uma criança. Dinheiro! –àqueles que “juntam como pombos onde encontram farelo”

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Por Priscila Figueiredo | Imagem: Bernhard Heisig

Desde o ano passado há uma campanha em página do Facebook, seguida por milhares de moradores da zona sul no Rio de Janeiro, para punir quem ajude a população de rua presente nessa região com o que quer que seja, comida, roupa e, claro, dinheiro, caso em que a sanção deve ser ainda maior.[1] A ideia é pegar no pulo, ou melhor, no grito, qualquer bom samaritano que se vir abrindo a bolsa. Frequento seu posto virtual habitualmente desde então, em especial o de Ipanema, acompanhei os passos da Intervenção Federal na cidade, vi o administrador da página pedindo que não se divulgassem fotos de ações de soldados, por mais estranhas que fossem, pois poderiam indispor a população contra eles, cujo trabalho seria para o bem de todos; deparei lá pelas tantas, ainda antes da intervenção e no dia seguinte a um grande tiroteio entre a polícia e o tráfico, com uma foto em que um policial puxava um carrinho de cimento no qual estavam deitados dois jovens negros e creio que mortos, e vi ainda a propósito da imagem alguns reclamarem que era muito pouco, ou que “a colheita foi pequena” dessa vez. Mas sempre há pessoas que manifestam estranhamento com o conteúdo da campanha, e como alguém disse certo dia: sim, dinheiro eu nunca dei por causa disso… mas um bom prato de comida etc. Não fora convencido pela explicação  razoável, para não dizer silogística, do administrador: “(…) a Superintendência da Zona Sul e a Guarda Municipal do Rio de Janeiro têm retirado estas pessoas e encaminhado a abrigos, mas vocês percebem que eles sempre voltam? Não vão para Santa Cruz, nem para Nova Iguaçu, Campo Grande; eles vêm para Ipanema. Por que será? Nascer aqui eles não nasceram. Vêm porque tem algo de bom. Esse algo de bom são as pessoas que dão esmola e comida”. Nós os mandamos para longe, mas eles sempre voltam, como aqueles seres fabulosos, meio idiotas, meio geniosos – os atiramos pela janela e quando nos viramos estão sentados na nossa cama. Seria da ordem da maldição, como a Cracolândia, que sempre se refaz.

Como se revelasse um nível de consciência historicamente mais atrasado, uma senhora que passava pela página realmente não conseguia compreender por que o que sempre fizera era agora algo vergonhoso, passível de punição. Uma moradora então lhe responde que onde há esmola os pobres se juntam como POMBOS (realçou assim, no que é um grito gráfico), é preciso proibir então que se joguem farelos, seja de que tipo for. Mais radical, porém, pensei comigo, tinha sido um vereador de Piraí, no Estado do Rio, que propusera alguns anos atrás, por ocasião de sessão comemorativa da Constituição Cidadã, transformar os pombos em farelos:

“Mendigo deveria virar ração de peixe”.[2] Eu espiava o diálogo e ia fazendo livres associações: de farelo fui para ração e daí à farinata do ex-prefeito João Dória, resultado de restos processados de alimento em via de apodrecer e destinada a alimentar os miseráveis; mas esta ainda vinha a ser uma “modesta proposta”, que o referido vereador, José Paulo, o Russo, do PT do B, poderia radicalizar: e se a farinata, conforme uma engenharia logística mais enxuta, pudesse ser feita dos (made of) mesmos miseráveis? Feita de, por e para – pobres. O agente ou operário, a matéria e o destinatário da gororoba seriam um só, não necessariamente ao mesmo tempo. Ora, mas nem é preciso sonhar com isso, pois em breve algum gênio da gestão haverá de concebê-lo. Convenhamos que o tempo favorece esse tipo de “modest proposal” – uso agora os termos em inglês, dando uma piscadela afetada para os que sabem a quem estou me referindo: àquele escritor atrevido que em 1729 fizera ao Parlamento britânico uma proposta para prevenir que os filhos de mendigos na Irlanda continuassem a ser um fardo para os seus pais e o país.

Jonnathan Swift fez o cálculo: descontadas as acidentadas, abortadas e mortas por doença, são 120 mil crianças que nascem por ano de pais pobres, não terão trabalho na indústria ou na agricultura, nem casa ou terra dado o nível de miséria da nação e não poderão prover seu sustento roubando até antes de completarem 6 anos, com exceção dos casos precoces, e, mesmo que já aos 12 anos venham a ser empregadas no mercado, não renderiam mais que 3 libras, insuficientes para comprar sua comida e seus farrapos e compensar aos pais por terem vindo a este mundo. Sendo assim, conclui, seria apreciável que depois de 1 ano de idade, quando não tivessem mais o leite materno e gratuito, fossem vendidas como vitelos “às pessoas de qualidade e fortuna reino afora”, procurando-se advertir antes às mães, no entanto, que as amamentem bem para ficarem rechonchudas. Em país católico romano, acrescenta, em razão do hábito de comer peixe na Quaresma, alimento benéfico para a fertilidade, a tendência é haver mais crianças nascidas 9 meses depois dessa época.

O Russo pensou que mendigos podiam servir como alimento para peixes; Swift, que estes podiam ajudar a multiplicar os bebês de mendigos para o comércio. Os pais já eram devorados pelos senhores poderosos, dizia – então que estes tivessem a primazia também em comer os filhos deles na forma de guisados. Os mais frugais poderiam “esfolar a carcaça, e a pele, artificialmente tratada, fará luvas admiráveis para as senhoras, e botas de verão para os finos cavalheiros”. Esse uso da pele nos faz lembrar que campos de concentração e experimentação nazista foram alguns dos que não ignoraram a sugestão, levando a sério o que era sarcasmo iluminista. “Triste uma nação que sendo há tempos civilizada ainda faz uso de costumes atrozes!” – é Voltaire falando da tortura, então existente na França; mas poderia ser um lamento de seu amigo Swift em relação a outros hábitos. De todo modo, imagino que os seguidores do Alerta de modo geral não diriam da tortura o contrário – um costume atroz que receio ainda existir aqui, mas a marcha da civilização há de remover para sempre, ainda que com atraso. Marcha da civilização… O que significa mesmo? Creio que usei um automatismo ou adereço de linguagem, talvez uma forma de ganhar tempo para em algum momento começar a pensar. Mas esqueci de mencionar uma das vantagens adicionais que o panfletista e pastor inglês viu em sua moção: diminuir o número de católicos, assim como os crimes de aborto e infanticídio cometidos por mães desesperadas em sua miséria. O aborto era então muito malvisto.

Voltando aos pombos: a conversa acima referida me trouxe à memória o que se tornou quase uma pequena fábula familiar. Eu era criança quando uma tia contou certa vez, sentada na ponta do seu fogão de lenha, como tinha tido “a graça de resolver” um dilema que a perturbava fazia tempo e tinha que ver com dar ou não dinheiro para um pobre que batesse em sua porta. Num vilarejo de Minas, sem grandes aglomerações a não ser na Semana Santa, sem vias públicas com passantes anônimos indo e vindo, essa era a única forma de ser acometida pela dúvida. Nas missas, os eventuais mendigos, muitos deles de passagem pela cidade ou então loucos de nascença, que vira e mexe filavam um almoço numa casa, aproveitavam para fazer seus pedidos a Deus e a mais ninguém, e não raramente depositavam uma moedinha na cesta das oferendas. Mendigo podia ser também alguém que saía de seu casebre de pau-a-pique e terra batida, situado numa zona mais distante e desamparada, pra ir pedir na cidade um saco de farinha ou açúcar, um leite para os filhos. Era difícil que não fossem conhecidos, certamente mais que os ciganos, que às vezes armavam sua tenda nas proximidades da vila, ficavam ali por meses e mesmo assim não eram chamados pelo nome, o que é curioso de lembrar agora.

Sempre havia uma anedota para contar dos pedintes da região, que eram presença certa nos velórios, lembrando atos piedosos do morto ou da morta, sentados perto do caixão, atravessando a madrugada, já com a sala mais vazia e às vezes gelada, de onde só saíam para o enterro. Mas foi assim que essa tia católica resolveu a questão que a afligia: um dia, em sonho, ela estava num confessionário e formulava sua dúvida essencial ao padre que a escutava e então por fim aconselhava: “Minha filha, não importa o que e com que fim lhe peçam; se pedem, é porque precisam”. E então, sentindo-se aliviada com a resposta, viu o que parecia ser um rosto muito branco se levantar e na verdade era uma pomba, que voou atravessando a igreja até sair pela porta principal. Uma outra versão desse sonho circulou e então alguns juravam que, em vez de ser o Espírito Santo, o confessor que resolveu o dilema tinha sido na verdade Santo Antonio de Pádua. Eu mesma, sem a convicção de um e outro lado, a cada vez que repetia essa história alternava com um ou com outro. O fato de todo modo é que isso resolvera a mesma questão quando ela se apresentava para quem a tivesse ouvido de primeira ou segunda mão, sempre em contraponto com uma das vozes dizendo “ah mas é para comprar cachaça, é pra comprar droga [e, mais contemporaneamente], ele vai torrar no craque”. Esse dilema, dar ou não dinheiro (em vez de gêneros de primeira necessidade), creio que permeou de fato a vida de muita gente por aí, e nem todos tiveram a sorte de dispor de uma anedota assim para sacar da cartola familiar. Como uma objetividade de psicanalista o pombo sagrado dizia que o destino que se vai dar ao dinheiro não é problema nosso, mas do outro etc. Aquela visitante no Alerta, que não tivera a revelação da minha tia, se entendia a velha repreensão a quem desse dinheiro, agora se sentia muito obtusa por não entender o mandamento ali de não ajudar de forma alguma.

Terá sido o pássaro do sonho na verdade um sem-teto falando em causa própria? Foi o que pensei vendo moradores de Ipanema substituir tranquilamente um pelo outro, sendo o termo comum de comparação a sujeirada que deixam na rua. Mas então continuei minha etnografia remota, e eis que um rapaz – muito bonito, aliás , de quem sabemos, clicando rapidamente no seu nome, que mora em Los Angeles, estudou na PUC-Rio e é fã de Bolsonaro, como não esconde a grande foto de fundo em seu perfil – diz que não aguenta mais esse bando de pobres. Uma moça, pertencente também à mesma juventude dourada, diz que por ela se exterminava toda essa gente; uma mulher negra, intrometida como eu na página e que vem de bairro em outra zona, pede ao moço que defina pombos, quero dizer, pobres, e então ele esclarece (com a aprovação de muitos seguidores indicada pelo uso de uma carinha divertida, um emoji, que nesse momento me lembra alguma máscara ritualística) que “pobre é quem faz biquinho [em selfie]”. Mais adiante o mesmo rapaz lamenta, diante de uma jovem de Nova Iguaçu, que ninguém sabe o que é comprar um apartamento de 4 milhões, pagar um IPTU altíssimo e ainda por cima sair para o trabalho (“pois eu não sou um vagabundo”) com a calçada toda cagada e urinada – de pombos? Que estão ali porque muita gente os está alimentando.

É desanimador mesmo, tento me por no lugar dele para imaginar sua desilusão e pensar em alguma forma de reparação – mas também quem mandou ele acreditar naquelas maquetes e simulações higiênicas, para não dizer dissimuladas, ou nos folders publicitários que vemos muita mão encardida e suada distribuir no semáforo dominical? Ele deveria ter pedido um bom desconto à incorporadora ou mesmo processá-la, recorrer ao Código do Consumidor ou o que seja por terem lhe ocultado essas coisas incômodas, por terem lhe vendido gato por lebre. Não poderia ser tipificado como crime de estelionato não terem desenhado um pouquinho de bosta e feiúra nos folhetos, nos quais só se vê gente loura e com os dentes tão brancos quanto o piso do apartamento à venda? Na porcelana dos dentes e do chão o brilho do sol chicoteava como a felicidade que não tem freios, e ninguém iria imaginar obstáculos a ela na calçada logo em frente.

Um morador ativista em boa hora fotografou um tiozinho daqueles de Copacabana – não mais Princesinha do Mar, como alguns ali lembraram nostalgicamente – que tinha dado moedas pra uma criança. Dinheiro! A câmera captou a mão no ar, na mesma altura da bundinha do menino que passava ao lado e a certa distância dele, e o velho, que segura um pacote de pão, talvez estivesse a ponto de lhe dar uma palmadinha – o militante preferiu dizer, no entanto, apalpadinha. Mas, pensei com meus botões, a imagem provava que tivesse havido palmada ou apalpadela, esta sem dúvida mais grave? E era possível dar como certo que o homem era “ainda por cima!” um pedófilo? Para os meus botões, a foto não provava nada, nem mesmo que ele tivesse atendido ao pedido de esmola. O fato é que o senhor, ao fim daquele debate digital, saía julgado criminoso e era xingado de todos os nomes. Receio que se alguém do grupo o reconhecesse na rua não faria apenas soar seu grito primevo de alarme, mas talvez chamasse a polícia, incitasse ao linchamento desse comedor de criancinhas… Os pedófilos merecem mesmo a fúria de um tribunal popular; eles são como os “bandidos”, a quem podemos matar sem dó e receio, como quase aconteceu, aliás, com o Vampiro de Düsserldorf, que efetivamente sumia com menininhas e depois foi submetido a um tribunal de exceção. E pensar que quando fez o filme, lançado em 1931, seu diretor, Fritz Lang, estava era preocupado menos com o caso do criminoso, uma exceção mórbida afinal, como este diz em sua própria defesa, acossado por impulsos que não conseguia controlar, do que com o fato de não ter sido submetido a um julgamento formal, como seria praxe no nazismo, que estava no ar e logo começaria sua ascensão irresistível. Mas por que estou dizendo isso? Por que meu pensamento voou tão longe? Deve ter sido estimulado pela imaginação desses cidadãos em acusar um homem de pervertido e incitador da mendicância só por ter uma mão aberta no ar e olhar na direção da criança a seu lado.

Essas pessoas estão decididas a gritar … a quem doar. Doe a quem doar, e viva a premonição das paranomásias. Confesso que senti grande interesse em presenciar uma cena dessa, que me pareceu tão, tão… tão grega. Um coro digno de Ésquilo, formado por copacabanenses, leblonenses ou ipanemeus e que, sob a inspiração das Erínias, ou seja, com toda a fúria arcaica, emitiria um brado primal para imobilizar de pânico aquele cujo braço está no ar pronto a cometer o crime, os atraidores de pombos, estes muitas vezes de peito negro e gordo. Praticamente se perguntam, como o fez Bolsonaro, quantas arrobas não devem pesar esses que se esparramam no chão, tão parasitas como quilombolas, ajudados pelos parasitinhas de seus filhos multiplicados. Eu não gostaria de perder aquela cena por nada. Em todo caso, sou uma mosca pairando no ar daquela sala de visita e, temendo que sintam minha presença próxima e espiritual, amarro o bico para não sucumbir à tentação de dar um pitaco, pois talvez corresse o risco de ser apedrejada conforme o veredito dessa nova shariah. Mas não deixa de ser divertido contemplar as rixas de classe tomando a forma de rixas de bairro.

Também apreciei muito na página dos ipanemeus a, digamos, hermenêutica da mendicância, que sempre houve, é verdade, mas agora parece alcançar uma nova etapa: “Vi outro dia aquela sem-vergonha na fila do cartório atrás de mim”, uma moradora denuncia. Uma mendiga estava numa fila! Foi então que me dei conta de algo que tinha passado batido por toda a minha vida: estar em fila, senão é pelo sopão, não é pra qualquer um, pois seria sinal de status. Estes, sim, conhecem o valor do trabalho!, exalta a frase sobreposta à reprodução de uma fotografia provavelmente dos anos 60: um pai e o filho negro pegando na enxada, em meio rural. Fora retirada da página a imagem, depois reproduzida em jornais, com um homem negro, de idade avançada, segurando uma placa em que dizia estar estar na rua porque lhe dão esmola. Resolveram “animá-lo” a falar, tal como fazemos aos objetos: “Por favor, joguem na minha boca”, diriam as latas de lixo.

Haveria muito ainda a dizer desse interessantíssimo zoológico, aberto 24 horas à visitação…. Me senti um pouco no simba safári, é verdade, com as feras todas soltas. Aliás, não têm muito decoro na linguagem – o Alerta Ipanema, voz impessoal e abstrata, da qual esperaríamos alguma formalidade, chama alguém de “merdinha”. Essa falta de coerência estilística incomoda mais que tudo. Um leitor da notícia da campanha num portal diz, com toda a razão, que então agora dar dinheiro a morador de rua é ser tachado de comunista. Outro concorda, dizendo que humanismo não é necessariamente comunismo. Ele reivindicava o direito de não ser considerado de esquerda e ao mesmo tempo continuar a doar o que ele quisesse e se quisesse. Defendo também sua posição, tanto mais justificada pelo fato de que a crítica ao samaritanismo sempre fora feita pela esquerda, ao menos quando esta começou a existir, e começou a existir quando colocou a questão social no centro da política a partir da Revolução Francesa. Um comunista como Brecht realçou em peças e poemas o caráter não-político da bondade, por vezes com consequências desastrosas como em Santa Joana dos matadouros ou com cisões de personalidade inevitáveis, como em A alma boa de Setsuan. Como se manter bom em circunstâncias sociais sombrias? “Como posso ser boa se tudo é tão caro!”, pergunta a solidária Shen Ten, “Não temos nada com isso”, diz um dos deuses, “Não nos metemos em problemas de economia”. Já Spinoza, que não era nem podia ser ainda de esquerda, embora fosse dar muito o que pensar a Marx, dizia que caridade não era uma boa paixão, que cabia ao Estado cuidar do problema da pobreza etc. Poderia juntar uns trocados mais para provar facilmente o óbvio – que caridade nunca indicou que alguém fosse bolivariano ou algo assim [3]. Começará a sê-lo agora? E, como tal, malvista? E mesmo penalizada?

Outro também protesta: “Agora qualquer ato de solidariedade, compaixão ou até de respeito, virou ‘coisa de esquerda’? Quer dizer que ‘coisa de direita’ é ser agressivo, frio, calculista e ganancioso’? Pra mim isso não tem a ver com política, tem a ver com ser uma pessoa boa ou ruim.” Concordo com ele, embora não seja certo que a caridade venha sempre de pessoa boa, como já mostrou aquela parábola cristã sobre o fariseu que ajuda com espalhafato para que todos vejam sua virtude (pelo menos, julgava-se então que piedade era digno de apreciação pública, e não de escracho ). A esmola — nem sempre —  pode ter motivo vaidoso ou egoísta e, como já tinha recomendado o evangelista Mateus, o mais rigoroso entre todos, o que a mão direita faz a esquerda não deveria saber e tal. Agora isso mudou um pouco e, caso eu não tenha trocado as mãos, o que a mão direita faz a esquerda deve logo denunciar para a Vigilância Comunitária.

Boa ou ruim, só sei que minha tia não era comunista, nem o Espírito Santo ou Santo Antonio de Pádua o são, considerando que esses seres divinos, estando fora do tempo, são eternamente válidos e presentes. Solidariedade não é coisa de esquerda, ou não era até há pouco.

É verdade que não foi preciso pesquisar muito para achar alguns antecedentes do Alerta Ipanema, os quais mostram em relação a este, porém, uma diferença curiosa, pois ocorreram por iniciativa de órgãos do Estado ou de parlamentares: a Prefeitura de Orlândia, o Ministério Público do Ceará, uma vereador de Varginha, em Minas Gerais, a Secretaria de Assistência Social de Maceió, entre outros, ao menos no período 2008-2014.  A última citada pede que imaginemos a soma de todas as esmolas já dadas para que se aquilate o valor que poderia ter sido empregado para reconstruir “projetos de vida”: Não lhe parece curioso o fato de que aquelas mesmas pessoas sempre permanecerem na situação de pobreza? .[4] Curioso mesmo, mas achei que essa questão já tinha sido respondida. Há mais dessas movimentações, e, para lembrar, não estamos aqui falando de leis que proíbem a mendicância, mas apenas dos interditos à caridade, e à exceção do Alerta, que é inovador e de iniciativa civil, as ações mencionadas vieram do Estado, e nisso não há inovação — para variar de tempo e lugar, mencionemos um decreto de Eduardo III, em 1349, ainda sob o “obscurantismo” medieval e conforme o qual que “ninguém poderá, sob pena de sanção, a pretexto de piedade ou de esmola ajudar aqueles que podem trabalhar, ou os encorajar em suas inclinações, pois é preciso constrangê-los a trabalhar para viver”.[5] Eduardo III era cruel, mas essa campanha no Rio de Janeiro parece inovadora pelo gosto teatral, refletido na forma de sanção que concebeu, o berro coletivo e improvisado, e por ser inteiramente comunitária.

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Num vídeo postado há algumas semanas na página em questão, vemos sob o sol de verão um gigante se destacar da paisagem natural do Rio, não sem ocorrer alguns estremecimentos ctônicos, e caminhar pela cidade, deslumbrando mais que atemorizando os passantes. O fundo musical provavelmente arremeda algum pop latino-americano, com a letra trocada para o momento, e nela se faz alusão ao “gigante deitado em berço esplêndido” do hino nacional, que corresponderia ao boneco feito por computação gráfica, tosco e inexpressivo, como a própria filmagem. Mas o boneco é também o “mito”, Bolsonaro, que caminha a passos largos. Em todo caso faz tremer a associação entre o que se quer um Leviatã da extrema-direita e o destino de vulto que de forma vaga foi prefigurado para nós, um teórico e esfumaçado corpo social, pouco depois de 1822, num hino que já teve o nome de Marcha Triunfal.

Referências 

[1]   https://oglobo.globo.com/rio/campanha-prega-fim-da-caridade-para-evitar-mendigos-em-ipanema-21819967; https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/09/12/campanha-na-zona-sul-do-rio-pede-gritaria-contra-quem-da-esmola.htm

[2]           http://g1.globo.com/rj/sul-do-rio-costa-verde/noticia/2013/10/mendigo-deveria-virar-racao-para-peixe-diz-vereador-de-pirai-rj-veja.html

[3] Não é o caso de aqui fazer a distinção, que em outro contexto poderia ser de praxe, entre solidariedade, compaixão e piedade, tal como faz Hannah Arendt no capítulo “A questão social”, em Sobre a revolução. 

[4]   https://oglobo.globo.com/brasil/prefeitura-de-cidade-paulista-inicia-campanha-contra-esmolas-2954681; https://www20.opovo.com.br/app/fortaleza/2014/05/16/noticiafortaleza,3251881/mp-lanca-campanha-contra-esmolas-para-criancas-de-rua.shtml; http://www.jornalvarginhahoje.com.br/2014/07/racibe-da-acrenoc-sugere-campanha.html, http://www.maceio.al.gov.br/semas/promova-cidadania-nao-de-esmola/

[5] Robert Castel, As metamorfoses da questão social, edição francesa de 1995, p.73.

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