Para hackear o colonialismo e o racismo digital

Lançamento da Boitempo expõe como as novas tecnologias e a perpetuação das desigualdades estão intimamente ligadas – além de refletir sobre os possíveis enfrentamentos. Leia, com exclusividade, um trecho. Sorteamos 2 exemplares

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Quais os efeitos das novas tecnologias em nossas vidas? O algoritmo reflete as opressões de nossa sociedade ou ele próprio é o agente opressor? Por que a produção de tecnologia está sob o domínio de uns poucos empresários norte-americanos? E por que o debate sobre soberania digital ainda é tão incipiente no sul global? Além disso, é possível uma outra relação com a internet e as novas tecnologias?

Essas e outras questões acerca da tecnologia e seus impactos são debatidas no livro Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana, de Deivison Faustino e Walter Lippold, recém-lançado pela Boitempo Editorial.

Tendo como referenciais teóricos autores como Frantz Fanon e Karl Marx, além das “encruzilhadas teóricas e políticas entre o hacktivismo anticapitalista e o pensamento antirracista radical”, os autores travam um debate histórico e conceitual acerca do dilema das redes e da atualidade do colonialismo para compreender como mídias digitais e redes sociais são construídas. Além de também proporem alternativas e formas de enfretamento possíveis.

Outras Palavras e Boitempo Editorial irão sortear 2 exemplares de Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana, de Deivison Faustino e Walter Lippold, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 31/7, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui.

Relacionando ciências humanas e tecnologias para analisar de maneira contundente temas como racismo algorítmico, inteligência artificial, internet das coisas, big data, soberania e segurança digital, software livre e valor da informação, os autores nos incitam a reagir à dominação tecnológica capitalista.

Leia, com exclusividade, a apresentação de Sergio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC que investiga as possibilidades de desenvolvimento e uso da IA para além do mercado.

Boa leitura!


COLONIALISMO DIGITAL, IMPERIALISMO E A DOUTRINA NEOLIBERAL

Sérgio Amadeu da Silveira[1]

Este livro trata do colonialismo digital não como metáfora ou força de expressão, mas como a dinâmica do capitalismo tardio que constitui sua existência a partir de dois elementos intercambiáveis: uma nova repartição do mundo em espaços de exploração econômica e o colonialismo de dados. Assim, Deivison Faustino e Walter Lippold atacam o “coração gelado” do big data e do imperialismo que atualmente se alicerça cada vez mais na tecnologia.

Não há dúvida de que o colonialismo histórico, definido por Karl Marx como um dos métodos utilizados pelos capitalistas europeus para realizar a acumulação primitiva de capital, não existe mais. Países como Brasil ou Argélia não são mais colônias, em que pese a Martinica de Frantz Fanon, um dos principais teóricos da luta anticolonial, ser ainda hoje um departamento ultramarino insular francês no Caribe. O novo colonialismo é dataficado, e sua violência muitas vezes sutil produz a precarização nada suave do trabalho e aponta para uma submissão social enredada e gamificada que formata sujeitos submetidos à servidão maquínica e aos sistemas algorítmicos das grandes empresas do Norte global.

Milton Santos, grande geógrafo brasileiro, em A natureza do espaço[2], nos alertou de que a principal forma da relação entre a humanidade e o meio natural é dada pela técnica. As técnicas são um conjunto de meios instrumentais e sociais com os quais as sociedades efetivam sua vida, produzem e criam espaço. Influenciado por Simondon, Santos expressa que a tecnologia é uma das expressões mais relevantes da cultura e, portanto, está submetida às disputas ideológicas.

Agora, os atores hegemônicos, armados com uma informação adequada, servem-se de todas as redes e se utilizam de todos os territórios. Eles preferem o espaço reticular, mas sua influência alcança também os espaços banais mais escondidos. Eis por que os territórios nacionais se transformam num espaço nacional da economia internacional e os sistemas de engenharia mais modernos, criados em cada país, são mais bem utilizados por firmas transnacionais que pela própria sociedade nacional.[3]

A US International Trade Commission (USITC), em 2012, foi acionada pelo Senado norte-americano para documentar e quantificar o impacto econômico da restrição ao fluxo transnacional de dados que começava a ser reivindicado por pesquisadores, ativistas e governos de diversos países. Como resultado, a USITC estimou que, em 2011, o comércio e os serviços digitais que incluem o fluxo de dados aumentaram o PIB dos Estados Unidos entre 517 bilhões e 715 bilhões de dólares e geraram aproximadamente 2,4 milhões de empregos. Essas informações se encontram no relatório Measuring the Value of Cross-Border Data Flows, de 2016[4]. Notamos que a manutenção do livre fluxo de dados para o Estados Unidos não é uma questão vinculada à defesa das pequenas e médias empresas do mundo empobrecido, como lemos nos discursos de seus consultores, mas é um elemento fundamental de extração de riquezas de países tecnoeconomicamente pobres e dependentes.

Faustino e Lippold, aqui, trataram também dos mecanismos de sustentação ideológica desse novo colonialismo a partir do novo fetichismo da técnica, da ilusão da neutralidade tecnológica e de ingênuas crenças na libertação pelos dispositivos, como se fosse possível eliminar problemas sociais apenas implementando e manuseando aplicativos digitais. Complementando essa perspectiva, é importante destacar o papel das consultorias internacionais para a adesão dos gestores públicos e privados a discursos que dão cobertura à expansão do colonialismo digital. As consultorias têm demonstrado grande capacidade de sedução com relatórios e levantamentos aparentemente impecáveis, bem como com seus power points motivacionais.

De modo significante, as consultorias são disseminadoras das estratégias das big techs, das métricas que portam as exigências de adequação e conformidade a produtos e práticas específicas do imperialismo. Como bem demonstrou David Beer em Metric Power[5], formas de medir são métodos de poder e de controle que moldam comportamentos e decisões são construções sociais, refletindo os valores e os interesses de quem as cria e as utiliza. As consultorias polinizam ideologicamente as classes dominantes e os gestores públicos dos países tecnoeconomicamente secundarizados. Consultorias são exércitos numerosos e operam em escala global, como a Pricewaterhouse-Coopers, que emprega 276 mil pessoas; a Accenture, com mais de 500 mil empregados; a Capgemini, grande consultoria em tecnologia, com mais de 270 mil funcionários em todo o mundo; entre outras.

Outras Palavras e Boitempo Editorial irão sortear 2 exemplares de Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana, de Deivison Faustino e Walter Lippold, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 31/7, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui.

Observe que a expressão “transformação digital”, amplamente adotada por agências internacionais, governos e pela imprensa mundial, surgiu no meio empresarial norte-americano e foi consolidada pela consultoria Capgemini e pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), que publicaram, em 2011, o texto Digital Transformation[6]. Em seguida, inúmeros países passaram a seguir as orientações à digitalização. O Brasil também possui sua estratégia de transformação digital (2016), que segue a lógica de documentos similares de países completamente diferentes.

Apesar das profundas mudanças no capitalismo do século XIX para o capitalismo do século XXI, ele continua estruturado em classes, em agrupamentos sociais divididos pela posição que ocupam na produção e na apropriação da riqueza produzida. Nesse sentido, Faustino e Lippold perguntam “o que, de fato, é o colonialismo digital e, sobretudo, quais são suas implicações para a dinâmica da luta de classes contemporânea?” (p. 80). Eis a questão crucial. Além disso, os autores trazem a descrição dos processos codificados que articulam os conflitos de classe aos raciais e étnicos.

A digitalização e a dataficação não eliminaram o racismo, mas o reproduziram e, em alguns casos, o expandiram pela gestão algorítmica. Bancos de dados que portam decisões racistas ao alimentar os sistemas algorítmicos de machine learning, como uma rede neural artificial, têm gerado padrões racializados e modelos racistas para tratar novos dados. Assim, a chamada inteligência artificial baseada em dados pode não apenas reproduzir, mas também ampliar, discriminações que buscamos superar.

Vivemos hoje uma informática de dominação, uma computação que bloqueia a tecnodiversidade e as possibilidades dos povos de criarem e recriarem seus aparatos tecnológicos. Mulheres, negros, povos originários são orientados a se contentar com a condição de usuários das soluçõescriadas pelas big techs. O colonialismo dissemina que o único modo de criar tecnologias é esse que nos subordina e nos modula. Anal, as plataformas digitais alegam buscar apenas e tão somente a melhora de nossa experiência. Para tal, extraem constantemente nossos dados afim de realizar predições, a ponto de não precisarmos mais querer, uma vez que os algoritmos que aprendem com os dados de comportamento poderão predizer nossas vontades.

Uma das consequências desse modelo de digitalização baseado em dados é a crescente necessidade de armazenamento e processamento. Faustino e Lippold ressaltaram que “63% da receita operacional total da Amazon é obtida pelo serviço de computação em nuvens, e não pela disponibilidade logística de seus produtos físicos ou digitais” (p. 75). Isso não implica que dados sejam materiais. Dados são imateriais e, por isso, podem ser reproduzidos milhares ou milhões de vezes. Ocorre que o fato de os dados serem imateriais não implica que não necessitem de máquinas para armazená-los e processá-los. Os comportamentos e os fluxos da vida estão sendo convertidos em dados, e estes, sendo guardados em datacenters gigantescos. A competição intercapitalista não desapareceu no mundo dataficado, mas se intensificou. Empresas do grupo Alphabeth não entregam seus dados para as empresas Meta, que, por sua vez, não compartilham o que coletam para a Microsoft, a IBM, a Amazon ou quaisquer outras. Cada clique, cada ação nas redes, cada e-mail pode trazer uma informação importante para compor o perl dos consumidores de produtos, serviços e ideologias. A coleta de dados parece não ter fim.

Essa enorme coleção de dados reflete em milhares de datacenters, muitos com mais de 50 mil metros quadrados e milhares de servidores, gerando impacto ambiental e contrariando quem dizia que a digitalização melhoraria o meio ambiente. Segundo o relatório do Synergy Research Group de 2021, existem cerca de 8,8 mil datacenters em todo o mundo,  centenas deles de hiperescala – ou seja, que têm a capacidade de suportar aplicações robustas e escaláveis, seja pelo processamento, seja pela conectividade disponível[7]. A localização dos data centers parece não esconder mais uma face do colonialismo digital: quase a metade deles está na América do Norte. São consumidores intensivos de energia e de água e geram um impacto ambiental nefasto.

Levanto outra grande qualidade deste trabalho de Faustino e Lippold: as possibilidades da resistência. Os autores se inspiram na visão do psiquiatra e militante da resistência argelina Frantz Fanon para organizar o pensamento, a estratégia e a ação da luta contra o colonialismo de dados. Isso implica, teoricamente, a perspectiva ambivalente da tecnologia. O digital pode ser colocado a serviço da luta emancipatória? A IA pode ser reformatada e repensada para assegurar o interesse das classes populares, das comunidades tradicionais, ou está intrinsecamente vinculada à eficácia e à eficiência exigidas pelo capital? Protocolos anticapitalistas inspirados no ativismo hacker e nas ideias de Fanon poderão gerar o mesmo efeito do rádio na luta contra o colonialismo francês? É possível inaugurar uma IA anticapitalista? Ou nada disso importa, pois dados, algoritmos, modelos estatísticos seriam neutros?

Os caminhos a trilhar exigem decisões sobre situações complexas em que o poder se estrutura também pelas tecnologias. O controle do intelecto geral pelo capital reforça a alienação técnica e anula a inteligência coletiva local consolidando sua submissão ao marketing. Assim, vivemos na névoa da guerra, e nossa visão turva nos impede de perceber as armadilhas do neoliberalismo, fase doutrinária atual do capitalismo mundial. O fetiche da tecnologia é uma dimensão da alienação técnica que robustece a alienação do trabalho.

O capitalismo construiu subjetividades alienadas do produto de seu trabalho. Para isso, teve de aprofundar as separações e os isolamentos sociais. A cultura se apartou da tecnologia, como se esta não fosse também sua expressão e ambas não fossem social e historicamente condicionadas. A tecnologia se tornou uma espécie de solução mágica, cada vez mais distante da compreensão das pessoas. Quanto mais a indústria avança no processo de divisão do trabalho, quanto mais vai substituindo o trabalho vivo pelo trabalho objetivado, mais distantes ficam os trabalhadores da apropriação do fruto de seu trabalho.

Há um jargão da cultura digital que diz que não foi da melhoria do cavalo que se chegou à máquina industrial, bem como não foi a melhoria da máquina que nos levou ao silício. Por exemplo, a guerra pelo controle dos semicondutores se dá em batalhas por conhecimento, por bloqueio econômico dos detentores dessa tecnologia a seus inimigos geopolíticos. A alienação técnica e a alienação do trabalho atingiram seu ápice no mundo informacional das máquinas cibernéticas.

Essa alienação contribui de modo decisivo para consolidar a subordinação da nossa inteligência local e nacional à conveniente ideia de sermos felizes consumidores e usuários de tecnologias inventadas nos países tecnoeconomicamente ricos. Estamos aptos a comprar, nunca a desenvolver nem a criar. Desse modo, não teria sentido armazenar nossos dados em infraestruturas locais que permitissem criar nossas tecnologias, reconfigurar os algoritmos, avançar em novos experimentos. Ter o controle dos dados que expressam nosso cotidiano impediria ou dificultaria que os sistemas de IA das big techs criassem soluções voltadas a nosso interesse. Com uma classe dominante que não apostou na industrialização em um mundo industrial e, agora, não aposta em criar e desenvolver a infraestrutura cibernética necessária para um mundo informacional. E o Estado? Nada pode fazer? Poderia, caso seus gestores não estivessem subordinados à doutrina neoliberal. Assim, como em um loop computacional, em uma repetição infindável, o neoliberalismo reforça o colonialismo digital e nega às sociedades o direito à invenção e ao desenvolvimento tecnológico. Este livro traz a reflexão indispensável para descolonizar nosso pensamento e rompermos com essa condição.


NOTAS

[1] Professor da Universidade Federal do ABC, é pesquisador CNPq. Investiga as possibilidades de desenvolvimento e uso da IA além do mercado.

[2] Milton Santos, A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção (São Paulo, Edusp, 2002).

[3] Ibidem, p. 163.

[4] Measuring the Value of Cross-Border Data Flows, 2016. Disponível em : <https://www.ntia.doc.gov/les/ntia/publications/measuring_cross_border_data_ows.pdf>; acesso em: abr. 2023.

[5] David Beer, Metric Power (Londres, Palgrave Macmillan, 2016).

[6] Capgemini e MIT, Digital Transformation: A Roadmap for Billion-Dollar Organizations, 2011. Disponível em: <https://www.capgemini.com/wp-content/uploads/2017/07/Digital_Transformation__A_Road-Map_for_Billion-Dollar_Organizations.pdf>; acesso em: abr. 2023.

[7] Relatório da Synergy Research Group, 2021. Disponível em:<https://www.srgresearch.com/articles>; acesso em: abr. 2023.


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