Memória e resistência: Mestre Ananias vive

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Mestre de capoeira, Ogã do candomblé, sambista de roda, Ananias Ferreira ajudou a dar visibilidade à riqueza do patrimônio espiritual e estético do negro brasileiro

Por Inês Castilho

A Conselheiro Ramalho estava enegrecida. Ocupada por homens, mulheres e crianças, a maioria morena, negra, cabelos crespos, turbantes. Uma cena da Bahia no Bixiga, bairro incomum de São Paulo, nascido de um quilombo. Mestre Ananias, cuja Casa e Ponto de Cultura é vizinha da redação de Outras Palavras, havia falecido na noite anterior e estava sendo velado.

O corpo chegou às 8 da manhã de quinta-feira, 21 de julho. Ao meio-dia, a rua fervia. Roupas brancas, dreadlocks, crianças no colo, no chão. Alguns brancos e brancas. Muitos capoeiras órfãos: mestres, contramestres, professores, aprendizes. O povo do bairro, curiosos se amontoavam na homenagem. Abraços, palavras de consolo, sorrisos, vozes baixas – a atmosfera não era exatamente triste, havia alguma alegria no encontro daquela comunidade.

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Dentro da sala, ali onde tantas vezes tocou seu atabaque de Capoeira e Ogã do Candomblé nas festas e rodas de samba, deitado no caixão, o rosto e as mãos muito negras brilham no branco das flores, no branco do véu, no terno branco que vestia. Quatro velas acesas.

Na parede amarela atrás do caixão, cinco coroas de flores ladeando a bandeira do Brasil e berimbaus alinhados. Bandeirolas coloridas de São João pendem do teto.

Ao lado do caixão, Brasília, mestre dos meus filhos, fecha os olhos, abaixa a cabeça, faz uma oração. Emoção. (Fotografia não.)

– Era meu amigo-irmão, camarada. Nos ensinou a ser mais tolerantes, deixa o exemplo do grande artista que era.

No chão de cimento queimado, uma estrela marcada em madeira.

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Contramestre Rafael: “Tchau, Mestre, obrigado por tudo!”

– Como é que posso te chamar? – pergunto.

– Rafael – responde.

Vestido de branco, contramestre formado pelo Mestre, Rafael fala.

– Mestre Ananias trouxe um grande legado da terra dele, o Recôncavo Baiano. Conviveu com os melhores da capoeira – se formou com mestre Canjiquinha depois que mestre Valdemar morreu. Com grandes nomes do samba de roda do Recôncavo e baluartes do candomblé. Era um Ogã feito de santo, um Ogã do Candomblé de Angola.

Sentado num canto, de branco – pés descalços, olhos cerrados –, turbante alto sobre as dreads, entre indiano e africano, um “orixá” balança o tronco devagar, pra lá, pra cá. Como encantado, em contato com a passagem entre a vida e a morte. Na passagem, acompanhando o Mestre.

Agora ao lado do caixão, Rafael faz sorrir até a neta do vô Ananias, olhos vermelhos. Fala dele, conta histórias.

O motorista do carro funerário da prefeitura quer ir embora, é hora de fechar o caixão.

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– Tchau, Mestre, obrigado! Obrigado por tudo! – a voz de Rafael soa por todos.

Na salinha lotada, uma salva de palmas irrompe e mantém a emoção no ar durante alguns minutos. A tampa desce até o caixão e um canto fúnebre de candomblé é puxado pela voz serena de Rafael. Um choro, um grito: Pai!

Sob aplausos do povo na rua, o carro funerário da prefeitura sai devagar às duas e meia, meia hora atrasado, para o cemitério de Itaquera.

Algumas pessoas saem atrás. Um povo fica ali, conversando. Mais abraços. A casa do Mestre já está fechada. Logo logo a rua estará novamente só a serviço dos carros.

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Rodrigo Minhoca e Mestre Ananias: a riqueza da cultura afro-brasileira

E da memória. A Casa Mestre Ananias – Centro Paulistano de Capoeira e Tradições Baianas – Associação Capoeira Angola Senhor do Bonfim, mantida com a luta incansável do sempre sorridente Rodrigo Minhoca, continua aqui. Viva no som do berimbau, do atabaque, do pandeiro e da viola, no jogo, no canto e na dança das crianças, nos projetos sociais, nas festas do bairro, nas bandeirolas que insistem em colorir a rua e embalam nosso fazer jornalístico. Apesar de tudo.

Embaixador da cultura afro-brasileira

A capoeira em São Paulo foi conduzida por mestres baianos como Ananias Ferreira, nascido em São Félix, no Recôncavo Baiano, em 1924, e aqui chegado em 1953. O Mestre manteve viva a ancestralidade africana no coração da cidade, a Praça da República, onde instituiu uma roda de capoeira dominical que acontece há mais de 50 anos. “Uma autêntica ágora, espaço de resistência, de confronto e diálogo dos talentos e dos estilos mais diversos, e também de aprendizagem. Poucos capoeiristas na cidade de São Paulo não conheceram de perto esta roda ou estiveram cientes da oportunidade de entrar livremente nela”, como diz em seu site.

Contribuiu para dar visibilidade à riqueza do patrimônio espiritual e estético do negro brasileiro, que durante tanto tempo foi criminalizado. Em São Paulo, onde conheceu o poeta e ativista Solano Trindade e o dramaturgo Plínio Marcos, passou a integrar o elenco de peças de teatro que apresentavam o candomblé, o samba e a capoeira ao grande público. Atuou na peça Balbina de Iansã, em 1970, e em Jesus Homem, em 1980, de Plínio Marcos, e participou do elenco da primeira encenação de O Pagador de Promessas, de Dias Gomes dirigida no TBC por Flávio Rangel em 1960 – em cujo filme (aqui, completo), dirigido por Anselmo Duarte e premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1962 – fez parte da trilha sonora.

Referência para diversas gerações da capoeira e do samba de roda na capital, Mestre Ananias conviveu, neste mais de meio século, com grandes capoeiristas baianos que viveram e passaram por São Paulo, tais como Zé de Freitas, Limão, Valdemar (do Martinelli), Hermógenes, Gilvan, Silvestre, Paulo Gomes, Suassuna, Brasília, Joel.

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Um comentario para "Memória e resistência: Mestre Ananias vive"

  1. lucia costa disse:

    Gostei do blog. Partilho Uma linda mensagem de Aline e Osíris. https: // www. youtube.com/watch?v=Upv-P5 h2opw …

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