A revolução de Allende, 52 setembros depois

Coletânea organizada por Vladimir Safatle para a Ubu Editora reúne principais discursos do socialista chileno na presidência. Leia o posfácio com exclusividade em Outras Palavras. Nossos apoiadores concorrem a 2 exemplares

Salvador Allende em seu discurso de posse
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Os setembros têm sido decisivos para a história recente do Chile. Em setembro de 1970, o povo chileno se fez governo com a eleição de Salvador Allende. No fatídico 11 de setembro de 1973, o projeto socialista da Unidade Popular foi golpeado pelos militares e pela CIA. A odiosa constituição pinochetista, ainda em vigor, foi “aprovada” em referendo (fraudado) no dia 11 de setembro de 1980. Mais recentemente, a derrota da nova Constituição se confirmou no plebiscito do dia 4 de setembro deste ano.
Contribuindo para o avivamento da chama das lutas de setembro de 1970, a Ubu Editora lança agora A revolução desarmada – discursos de Salvador Allende, reunindo as principais declarações do médico marxista durante sua presidência, todas inéditas no Brasil.
Abrangente, a coletânea vai do discurso da vitória feito logo após a eleição até a transmissão clandestina proferida do Palacio de la Moneda quando o golpe militar já estava em curso, passando pelos anúncios da estatização do sistema bancário e da reforma agrária.
A seleção dos discursos ficou por conta de Vladimir Safatle, nascido em 1973 no Chile durante o exílio de seu pai, guerrilheiro da ALN, e estudioso dos processos históricos e políticos do país. O livro faz parte da coleção Explosante, coordenada pelo filósofo e professor da FFLCH-USP para a Ubu, e que também já publicou obras de Frantz Fanon, Alain Badiou e Carlos Marighella.
Chamam a atenção nos textos: a centralidade do marxismo para a conformação do pensamento de Allende; sua capacidade de fazer de suas falas, ao mesmo tempo, convocatória militante e educação política; e a atualidade de suas posições, radicalmente anticapitalistas, para nosso tempo.
Traduzida por Emerson Silva, a edição conta ainda com prefácio de Gabriel Boric, atual presidente do Chile, e posfácio de Rodrigo Karmy Bolton, filósofo e professor da Universidad de Chile.
Sortearemos dois exemplares de A revolução desarmada – discursos de Salvador Allende entre os apoiadores do jornalismo de Outras Palavras, em parceria com a Ubu Editora. O formulário de participação será enviado por e-mail e aceitará inscrições até segunda-feira, 3/10, às 14h. Quem é Outros Quinhentos também tem direito a até 30% de desconto no site da editora.
A seguir, confira o posfácio de Karmy Bolton, que oferece uma mirada sobre a história chilena até 1970 e os caminhos que fizeram da vitória de Allende o desaguadouro de um poderoso movimento histórico das massas chilenas em busca da emancipação e da construção de um socialismo todo seu, “con sabor a empanadas y vino tinto”.
Boa leitura!


POSFÁCIO PARA A REVOLUÇÃO DESARMADA – DISCURSOS DE SALVADOR ALLENDE

Por Rodrigo Karmy Bolton

Partamos de uma premissa histórica e material, sem a qual é impossível compreender como e por que existiu o governo da Unidade Popular liderado por Salvador Allende Gossens: a amálgama da República do Chile, desde o primeiro triênio do século XIX, é um paradigma autoritário que despreza o povo, concebendo-o como carente de virtudes cívicas. Por isso, o poder é compreendido a partir de um “governo forte e centralizador”, cujas decisões competem sempre a uma oligarquia que supostamente goza das virtudes das quais carece o povo. Esse paradigma, imposto desde 1830 no contexto da modernização do Estado, foi articulado pelo ministro Diego Portales Palazuelos e consolidado, não sem grandes sobressaltos e mutações, durante o restante do século XIX e todo o século XX. A maneira como a política é entendida no Chile repousa, pois, sobre esse paradigma propriamente autoritário e centralizador, que despreza a possibilidade de que o povo possa se governar e tomar decisões. Trata-se do paradigma “portaliano”.

I

A cena histórico-jurídica da qual surge Allende é a seguinte: o Chile vinha saindo de uma custosa guerra civil (1891) na qual o presidente José Manuel Balmaceda enfrentou as forças oligárquicas entrincheiradas no Congresso Nacional. O conflito, que foi possível graças ao regime parlamentar então vigente, terminou de maneira trágica, com o suicídio do presidente e o triunfo das forças parlamentares que representavam a oligarquia. A ordem política instaurada na sequência restabeleceu o paradigma “portaliano” sob o novo presidente da República, Arturo Alessandri Palma, que exigiu a redação de um novo texto hiperpresidencialista, justamente em razão do regime parlamentar que sucumbira no fim do século XIX, com a guerra civil. Assim, o texto constitucional foi referendado por um acordo entre os partidos políticos da época – não pelos cidadãos – e veio a constituir a matriz jurídica a partir da qual foi impulsionada uma concepção “desenvolvimentista” do Estado e da economia.

Diante desses fatos, uma crise econômica se arrastava desde a Primeira Guerra Mundial; a exportação do salitre se viu profundamente afetada pela invenção de um substituto “sintético” (mais barato) e pela crise econômica de 1929, quando o PIB chileno caiu cerca de 14%. Desde o início do século XX, a exportação do salitre seria substituída pela exportação do cobre, graças à penetração no Chile de grandes companhias estadunidenses que investiram no maquinário necessário à exploração – e cujo papel na desestabilização do governo Allende, já desde 1970, seria determinante.

O caráter autoritário da Constituição de 1925 e as sucessivas crises econômicas articularam uma cena complexa: as massas de operários e camponeses, afetadas diretamente pelas crises, tinham pouquíssima capacidade de influência sobre a vida política nacional. Nesse cenário, e em virtude da organização dos operários, surgiram novos partidos políticos no início do século XX: o Partido Comunista do Chile (1922) e o Partido Socialista (1933), atores-chave na aliança que daria origem à coalizão da Unidade Popular e levará Salvador Allende à presidência da República em 1970.

Os anos 1930 foram decisivos: os partidos progressistas e de esquerda (entre os quais o Partido Comunista e o Partido Socialista), inspirados na luta internacional contra o fascismo, articularam uma ampla coalizão denominada “Frente Popular”, cujo primeiro presidente foi Pedro Aguirre Cerda. De 1939 a 1942, ela seria dirigida por um jovem médico eleito deputado da República em 1937 e membro fundador do Partido Socialista do Chile: Salvador Allende Gossens.

“Santinho” da primeira campanha ao Senado de Allende.

Em 1945, Allende foi eleito senador (ele seria reeleito até 1969) e a trajetória política do país experimentou uma transfiguração geopolítica fundamental: o fim da Segunda Guerra Mundial situou os Estados Unidos como potência mundial e a inspiração “antifascista” dos governos radicais foi mudando progressivamente. O novo cenário da “Guerra Fria” começava a se impor.

A eleição de Gabriel González Videla à presidência da República (1946-52) teve papel crucial nesse contexto, pois com ele foi selado um pacto geopolítico entre o Chile e os Estados Unidos. Uma das primeiras expressões da nova situação que surge com a eleição de González Videla foi a proposta de uma “lei de defesa da democracia” (também conhecida como “lei maldita”), que tornou ilegal o Partido Comunista do Chile. Seus militantes, entre os quais Pablo Neruda, foram forçados ao exílio ou levados, pela primeira vez, a campos de concentração (Pisagua, que voltaria a funcionar sob a ditadura de Pinochet, era um desses campos).

Foi precisamente em 1952, quando terminou o mandato de González Videla, que o então senador Allende se lançou pela primeira vez candidato à presidência pela Frente Nacional do Povo (Frenap), um agrupamento formado pela aliança entre o Partido Comunista (ainda ilegal), o Partido Socialista e outras organizações. Allende obteve apenas 5,45% dos votos – o Partido Socialista se cindira e o Partido Socialista Popular, nascido dessa cisão, apoiou Ibáñez del Campo. Ex-comandante das Forças de Polícia (ou Carabineiros), Ibáñez del Campo impôs-se sobre os diferentes candidatos com 46,79% dos votos.

Em 1956, Allende formou a Frente de Ação Popular (Frap), uma aliança de partidos de esquerda que o projetou como candidato à presidência pela segunda vez. Na eleição de 1958, triunfou o candidato da direita, o engenheiro civil Jorge Alessandri Rodríguez (segundo filho de Arturo Alessandri Palma, presidente em 1925), com uma proposta tecnocrática. Finalmente, em 1964, Allende voltou a sair candidato pela Frap, obtendo 39% dos votos, mas foi derrotado por Eduardo Frei Montalva, candidato do novo partido com o qual as camadas médias se identificavam desde o começo dos anos 1960: a Democracia Cristã.

Aqui merece registro um dado importante. A candidatura de Frei triunfou graças a dois fatores: em primeiro lugar, a aliança que a Democracia Cristã estabeleceu com a direita; em segundo lugar, o apoio dos Estados Unidos, que injetaram milhões de dólares na campanha de Frei para impedir que Allende vencesse. Trata-se de um momento fulcral: Allende nunca obteria um percentual maior de votos. Naquela ocasião, no entanto, ele não chegou à presidência da República, o que só ocorrerá na eleição de 1970, quando obteve 36% dos votos.

II

Salvador Allende atravessou o século xx com uma carreira política ininterrupta, exercendo cargos específicos como deputado, ministro da Saúde, senador e quatro vezes candidato à presidência da República, até o triunfo em 4 de setembro de 1970, ratificado pelo Congresso Pleno (procedimento que ocorria quando um candidato não obtinha a maioria dos votos). Essa carreira, contudo, não foi produto simplesmente de uma virtude pessoal, mas, sim, expressão de um processo de composição de forças “desde a base” que, sob a liderança de Allende, estabeleceu uma dupla unificação: por um lado, a coalizão “política”, plasmada na união dos partidos políticos de esquerda em torno de um projeto comum e, por outro, a organização das forças operárias e campesinas para tomar o poder e ser protagonistas desse processo.

Sob essa perspectiva, o projeto da Unidade Popular é ímpar, pois rompe o paradigma “portaliano” que ainda se sustentava com base no pacto oligárquico de 1925: tratava-se de fazer com que operários e camponeses tivessem influência sobre a política nacional. Com esse fim, a Unidade Popular traçou um discurso intempestivo apelando para a “segunda independência”. Em 1810, fora convocada na Capitania-Geral do Reino do Chile uma primeira Junta de Governo em razão da invasão napoleônica à Espanha e da queda do rei Fernando VII. Nessa primeira junta a narrativa chilena identificou o início do processo de independência que erigiu Bernardo O’Higgins, que lutou com as forças independentistas do general San Martín, como o “pai da pátria”, o líder da luta do Chile pela independência do jugo espanhol. O’Higgins foi nosso primeiro “Diretor Supremo”, mas terminou exilado no Peru.

No imaginário allendista, O’Higgins foi quem possibilitou a “independência política” do Chile, mas não sua “independência econômica”: “Somos países potencialmente ricos”, afirmou Allende em seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, “vivemos na pobreza”. A tarefa da Unidade Popular, portanto, seria completar o processo de independência rumo à “independência econômica”. Isso implicava, é claro, pôr fim aos privilégios da oligarquia fundiária chilena e, portanto, “transferir aos trabalhadores e ao povo em seu conjunto o poder político e o poder econômico”. Um processo como esse geraria conflitos, mas, para Allende, estes poderiam ser solucionados no interior da institucionalidade existente. “O Chile, em sua singularidade, conta com as instituições sociais e políticas necessárias para materializar a transição do atraso e da dependência para o desenvolvimento e a autonomia, pela via socialista”, disse Allende em seu discurso no Estádio Nacional em 1970. A “transição” mencionada não refletiria o modelo “cubano” de tomada do poder por uma revolução violenta; segundo Allende, a singularidade chilena consistiria em realizar a revolução pela “via pacífica”, pelos canais legais dessa mesma institucionalidade: seria preciso modificar a institucionalidade, mas a partir dessa mesma institucionalidade.

Esta é a premissa fundamental de todo pensamento e de toda ação, tal como Allende os concebe: se a violência é necessariamente alheia ao socialismo, sendo sempre exercida pela oligarquia “portaliana” e pelo imperialismo, a “via chilena para o socialismo” consuma um longo processo que vem de “baixo” para transformar verdadeira e democraticamente as condições do país. Assim, o projeto da Unidade Popular abriu uma temporalidade de corte intempestivo que investiu o triunfo de 1970 da força independentista de 1810. Allende se tornaria o novo O’Higgins, e a Unidade Popular, a nova força libertadora.

A transformação do país em favor das maiorias negligenciadas implicou várias medidas do governo da Unidade Popular que fortaleceram os trabalhadores do campo e da cidade. Disse Allende em seu discurso sobre a propriedade agrária, em 1971: “O cobre é o ordenado do Chile, a terra é seu pão”. A simplicidade da frase compõe as duas forças, camponeses e operários, num único e mesmo projeto.

Outras Palavras e Ubu Editora sortearão dois exemplares de A revolução desarmada – discursos de Salvador Allende, organizado por Vladimir Safatle, entre os apoiadores do nosso jornalismo. O formulário de participação será enviado por e-mail e aceitará inscrições até segunda-feira, 3/10, às 14h. Quem é Outros Quinhentos tem até 30% de desconto no site da editora.

No que tange aos operários, a nacionalização do cobre, cujo processo foi iniciado com a “chilenização” implementada por Frei, tinha amplo consenso político. Allende nacionalizou o precioso metal em 11 de julho de 1971, graças à aprovação de uma reforma constitucional. Isso gerou imediatamente um conflito imperialista com os Estados Unidos, já que o país do Norte explorava esse metal desde o início do século, quando a monoprodução do salitre foi substituída pela monoprodução do cobre por algumas grandes corporações. Essas corporações, por intermédio da CIA, já haviam elaborado todo o programa de bloqueio de créditos internacionais e promoção de sedição interna que Allende denunciará fortemente em seu discurso de 1972 nas Nações Unidas.

Além disso, a transformação do sistema econômico implicava a “estatização do sistema bancário”: “A taxa de juros será um instrumento efetivo de orientação do desenvolvimento econômico” e não um instrumento lucrativo que favorece apenas a oligarquia dominante e seus bancos. Tratava-se de fortalecer o desenvolvimento produtivo dos pequenos e médios empresários e assim redistribuir o crédito para torná-lo acessível a setores negligenciados.

No que tange ao campesinato, o governo popular intensificou o que já havia sido realizado em termos de reforma agrária. Pela “Aliança para o Progresso”, os Estados Unidos haviam pressionado o então presidente Alessandri para modernizar a agricultura em favor das corporações estadunidenses, fazendo-o assinar, em 1961, um compromisso de reforma que só começaria a ser efetivada no governo democrata-cristão de Frei (1964-70). Para Allende, a reforma agrária era importante na medida em que mudava a propriedade da terra em favor do campesinato, mas exigia “ganhar a batalha da produção”, como disse em um de seus discursos. Nessa lógica, a reforma agrária, que foi pensada originalmente como uma modernização capitalista do campo, trouxe a emergência do campesinato como sujeito histórico e político que a Unidade Popular impulsionaria como parte das necessárias transformações que deveriam ser realizadas.

Finalmente, outra transformação fundamental seria substituir a “Constituição liberal” então vigente – aquela de 1925 – por uma nova Constituição socialista, como anunciou Allende no discurso de 21 de maio de 1971. Tal como se pode ler na proposta do governo da Unidade Popular, a nova Constituição expressaria a “transferência” do poder aos trabalhadores, tanto no plano político como no plano econômico, e, portanto, consumaria o processo da “segunda independência”. Esse projeto de uma nova Constituição política de corte socialista nunca se concretizou.

O projeto da Unidade Popular vinha realizar a “democracia econômica” – como a denominava o próprio Allende – e, precisamente por isso, perturbaria a ordem oligárquica chilena e seu entrelaçamento com o imperialismo estadunidense. Essas mudanças, voltadas para as grandes maiorias, só puderam se produzir porque no século XX houve uma intensificação da imaginação popular que não cabia no paradigma “portaliano”, o qual implicava governar autoritariamente a favor da manutenção e do aprofundamento da ordem oligárquica que, desde o governo de Alessandri Palma, se expressava na Constituição de 1925. O projeto da Unidade Popular desbordava o paradigma “portaliano”, já que instituía processos de democratização da vida nacional. Nesse sentido, a Unidade Popular foi um momento crítico para a estrutura “portaliana” do Estado chileno, precisamente porque tal estrutura só admitia o exercício do poder “de cima para baixo” e nunca “de baixo para cima”.

Mas, se era assim, como foi admissível a chegada de um projeto como aquele da Unidade Popular? Antes de mais nada, porque o século XX foi marcado pela intensificação progressiva da imaginação popular e pela efetiva recomposição de forças dessa imaginação no plano social e político. Diante desse processo, a irrupção das maiorias durante esse período implicou uma perturbação do pacto oligárquico de 1925 que se consumou em 4 de setembro de 1970, quando Salvador Allende conquistou a cadeira presidencial. O pacto oligárquico não podia fazer nada para deter o avanço das maiorias e de suas forças democratizadoras. Desestabilizado, tal pacto só pôde apelar para a sedição pró-imperialista concretizado na manhã do dia 11 de setembro de 1973.

III

Manhã do dia 11 de setembro de 1973. Allende chega ao Palacio de La Moneda e é informado das operações golpistas. Há participação do Exército. O país está cercado pela força. Allende decide permanecer no Palácio. Não pode fazer mais do que defender o que está sendo transgredido: não apenas a “via chilena para o socialismo”, mas também a via política como forma de resolução dos conflitos no Chile. A violência se impõe sobre a política, a tragédia clausura o momento popular e abraça com sangue esse dia e o novo período de perseguições. Os trabalhadores são dizimados, suas organizações são aniquiladas. O campesinato é massacrado e, com isso, em virtude do permanente e sistemático apoio da CIA à oligarquia, o golpe de Estado está em curso. 

O presidente Salvador Allende defende o Palacio de La Moneda junto de militantes. 11/09/1973

Diante da situação, Allende se dirige através da Rádio Magallanes aos milhares de “trabalhadores” que contemplam o abominável espetáculo: “Não vou renunciar! Posto neste momento histórico, pagarei com a minha vida a lealdade ao povo”. Por que Allende decide morrer ali? Por que não negocia, não abre uma via política possível? Porque entende que, com o golpe em marcha, não há mais via política e a violência tomou o comando da história. Mais ainda: porque não reconhece como interlocutores válidos os generais que dirigem o golpe, não havendo em sua traição nenhuma via política possível: são usurpadores de um poder legítimo que sua morte há de resguardar. Allende morre no Palacio de La Moneda (por assassinato ou suicídio), levando consigo a legitimidade da República, sem abandoná-la ao golpismo.

Não convocando o povo a pegar em armas e insistindo na via pacífica da revolução socialista, Allende instalou a resistência mais decisiva de todas, circunscrevendo-a no sacrifício de sua própria vida, que, entende ele, não é a de um simples indivíduo, mas a de um governante que abraçou os valores eternos da humanidade e tentou conduzir o povo chileno à sua “segunda independência”.

Allende se apresenta apenas como um intérprete dos “grandes anseios de justiça”, um profeta que recebe a mensagem e só a traduz para o povo. Ao situar-se dessa forma, reafirma o povo como sujeito histórico, não sua própria pessoa. O desprendimento é a chave desse discurso, porque ele se vê como uma pequena peça no interior de um grande processo de dignificação dos povos. Nunca se tratou de Allende, mas do processo coletivo em germe; jamais se tratou de seus interesses, mas daqueles de uma humanidade que fazia seu caminho com a dificuldade de uma história que lhe fora adversa.

Allende se despede, mas em seu discurso todos cabem: os “trabalhadores”, a “modesta mulher”, a “camponesa que acreditou em nós”, a “operária”, a “mãe”, mas também o “operário, o camponês, o intelectual” e, sobretudo, “aqueles que serão perseguidos, porque em nosso país o fascismo já estava presente muitas vezes nos atentados terroristas”. Todos cabem, porque todos se tornam parte do sujeito histórico (as grandes maiorias do Chile) que não se detém, “nem pelo crime nem com a força”. Enquanto a ditadura assola o povo, Allende sobrevive como um bastião ético irredutível à usurpação acontecida, uma voz que não deixa de ditar ao povo o imperativo de dignidade e esperança: “Mais cedo do que se imagina, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre para construir uma sociedade melhor”.

IV

Os discursos de Salvador Allende Gossens, pela primeira vez traduzidos em português e publicados no Brasil, não devem ser vistos como “peças de museu”, mas antes como expressão da intempestividade de seu pensamento. Estes discursos são verdadeiras peças filosóficas, históricas e políticas, cujo tom nunca será preto ou branco: eles irrompem em uma zona cinzenta repleta de tramas, labirintos e pequenas cifras que enlaçam Allende nas origens da República. São uma peça singular no interior de um mosaico – sempre fragmentário, sempre liminar – da dignidade dos povos do mundo e da América Latina. Não são apenas arquivos, mas relâmpagos que nos abraçam de um futuro do presente em nosso aqui e agora. Allende é um nome que não condiz com sua própria atualidade, é a intensidade que continua a incomodar os donos do planeta, é o momento intempestivo que faz com que o presente nunca coincida consigo mesmo.

Se toda tradução deixa sempre algo intraduzível, se todo texto escrito traz em si o reduto do não escrito, é precisamente porque todo texto, discurso ou palavra sempre se inventa no exato instante de sua leitura, no momento secreto em que outra época acolhe a cifra histórica capaz de oferecer inteligibilidade ao presente. Em outras palavras, os discursos de Allende não devem ser tomados como uma “doutrina” sistemática, mas acolhidos como um chamamento, uma potência que, ainda hoje, não pode passar despercebida. Por isso, o mais relevante nestes discursos não é tanto o que eles dizem, mas a intensidade que expressam quando dizem o que dizem. Talvez seja essa intensidade a chave na atual tradução, se por “tradução” entendermos a capacidade de transmitir não tanto um enunciado, mas as energias da enunciação.

Dessa forma, longe de situar estes discursos como arquivos sagrados, convidamos o leitor à sua radical profanação, ou seja, aos seus usos em comum, nos quais podemos experimentar um assunto que, para a “tradição dos oprimidos”, se revela essencial: todo ato de leitura é, ao mesmo tempo, um ato de criação.


Rodrigo Karmy Bolton é doutor em filosofia pela Universidade do Chile (2010), onde atua desde 2006 como professor no Centro de Estudos Árabes e no departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Humanidades.

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