Pra não dizer que não falamos nos golfinhos

São colaborativos, sensíveis, inteligentíssimos. Talvez, os animais que mais amamos. Mas seu massacre em massa persiste, diante de nossa cegueira cúmplice. Os governos omitem-se. Uma atitude de boicote nos resgataria da alienação?

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Por George Monbiot | Tradução de Simone Paz

Quem quer a morte dos golfinhos? Além dos atiradores psicopatas da Flórida e dos caçadores japoneses que massacram golfinhos anualmente na enseada de Taiji, eu arriscaria dizer que ninguém. Eles devem ser os animais selvagens mais adorados do mundo. Porém, todo dia, os assassinos de golfinhos se agrupam nas filas dos mercados do Reino Unido e no mundo todo. Se você compra peixe, e nele não tem nenhuma garantia clara ou explícita, é provável que você seja cúmplice daquilo que lhe revolta

Um relatório assustador, publicado há algumas semanas, demonstrava que a quantidade de golfinhos do Oceano Índico caiu 87% desde 1980, pois eles têm morrido asfixiados nas redes de pesca instaladas como armadilhas para atum. Mas o problema não se restringe só aos oceanos distantes nem à pesca de atum. Em média, dois golfinhos ou botos aparecem mortos nas praias do Reino Unido por dia. Muitos deles apresentam arranhões e cortes específicos, causados por redes de pesca. As descobertas de golfinhos mortos na região do Golfo da Biscaia este ano provavelmente irão bater o recorde macabro atingido em 2019, quando 1.100 foram encontrados na costa francesa. Um grande número de golfinhos mortos também está aparecendo nas praias da Irlanda.

Não todo golfinho ou boto morto que o mar arrasta até a praia foi assassinado pela indústria pesqueira. As infecções são hoje mais recorrentes do que antes, talvez como resultado das persistentes substâncias químicas sintéticas acumulando-se nos tecidos dos animais e destruindo seu sistema imunológico. Mas, ainda assim, em muitos lugares, incluindo o Golfo da Biscaia, a Irlanda e, provavelmente, o Canal da Mancha, a pesca industrial parece ser a causa principal.

Os golfinhos encontrados na costa devem ser apenas uma pequena parte do total de golfinhos mortos. A maioria dos cadáveres afunda ou some no mar. Como o massacre é terrivelmente subnotificado pelos governos, temos apenas alguns palpites sobre o número de mortes. Uma estimativa científica sugere que cerca de um oitavo dos golfinhos assassinados aparece nas praias. Golfinhos têm vida longa e se reproduzem lentamente. No Atlântico Norte, o golfinho padrão só dá cria a cada quatro anos. Se permitirmos que esse massacre não contabilizado, causado pelos barcos pesqueiros, continue, é bem provável que eles entrem em extinção logo.

Quase toda a pesca comercial representa uma ameaça aos golfinhos e botos. Só que algumas técnicas são mais letais do que outras. Enquanto redes de emalhar matam um grande número de botos, e todo tipo de redes de arrasto e de cerco põem golfinhos em risco, há uma correlação particularmente forte entre mortes de golfinhos e dois tipos de pesca: arrastões emparelhados, que capturam robalos, e super arrastões que capturam peixes menores, de águas menos profundas.

Os arrastões emparelhados funcionam com dois barcos puxando uma rede entre eles, e andam muito mais rápido do que arrastões de um barco só. Os super arrastões — com comprimento de 100 metros ou mais — rebocam redes gigantescas que pegam cardumes inteiros, junto com os predadores desses cardumes. Como esses navios tendem a caçar espécies usadas para fazer ração para peixes de cativeiro — como salmão, robalo, linguado e camarão — quase nenhuma espécie de peixe comercializado hoje em dia pode-se dissociar da sua responsabilidade pela matança de golfinhos. Ativistas da Grã-Bretanha e da Irlanda estabeleceram uma conexão entre o pico de golfinhos mortos e o aparecimento dos super arrastões.

Os governos da União Europeia e do Reino Unido estão fracassando propositalmente em deter essa catástrofe. Eles têm ciência de que seu sistema para monitoramento da caça de golfinhos é inútil. Consiste em colocar observadores em cerca de 1% dos navios de pesca e apenas com o consentimento do capitão do navio. Inevitavelmente, aqueles navios com a maior responsabilidade sobre o problema são os menos monitorados. Por um quarto do preço desse sistema ineficaz e desatualizado, cada barco poderia ser munido de um equipamento de monitoramento remoto e CCTV. Mas eles se recusam a entrar no século XXI.

No ano passado, o grupo ativista Sea Sheperd embarcou nesse abismo regulatório e filmou um navio francês de pesca por arrastão no Golfo de Biscaia, levando um golfinho morto para o convés. Qual foi a resposta oficial? O presidente do Comitê de Pesca da Bretanha desqualificou a filmagem como “perseguição”.

Nem a comissão europeia nem o governo britânico, a julgar pelo atual projeto de lei de pesca, consideram enfrentar a situação. A recusa em monitorar ou regular adequadamente o setor demonstra um encobrimento intencional e sistemático. As medidas necessárias para proteger os golfinhos são similares às medidas que precisamos tomar para que as populações de peixes se recuperem. Grandes extensões deveriam ser declaradas fechadas para todo tipo de pesca. Em vez disso, quase todas as nossas “zonas de conservação marinha” podem ser legalmente exploradas por arrastões durante o ano inteiro. São regiões “protegidas” somente no papel, e não na prática — e portanto, não fazem sentido. Outras regiões deveriam ser fechadas nas determinadas épocas em que os golfinhos se reúnem.

As políticas de pesca deveriam partir da proteção aos golfinhos e a outras espécies vulneráveis, para só então decidir onde e como navios pesqueiros podem operar. Mas acaba-se adotando a estratégia oposta: permitindo que barcos pesquem em quase qualquer lugar, de forma não monitorada e raramente controlada, para depois se perguntar como fazer com os golfinhos mortos. O controle da indústria da pesca sobre as políticas governamentais permanece tão poderoso e misterioso como sempre.

Existe alguma diferença entre o assassinato massivo de golfinhos de forma acidental, porém inevitável, pela indústria da pesca e o massacre anual realizado deliberadamente no Japão (e que causa, com razão, tanta indignação pública)? Quando algo é moralmente errado, nenhuma quantia de dinheiro conseguirá torná-lo correto. O extermínio de golfinhos e de outros animais selvagens magníficos é, sob qualquer hipótese, moralmente errado.

Se você concorda, a resposta é simples: pare de comprar peixe. Até que a indústria consiga se regular — e que seus impactos devastadores acabem — devemos retirar nosso consentimento. Se não, também nós seremos os assassinos.

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Um comentario para "Pra não dizer que não falamos nos golfinhos"

  1. josé mário ferraz disse:

    O instinto de destruição aliado à estupidez levará a humanidade à autodestruição. Os primeiros grupos humanos concluíram pela necessidade de uma instituição com poder de aparar as arestas da brutalidade humana e lhe deu o nome de governo. Não havendo nenhum ser humano isento da estupidez e do instinto de destruição, e sendo os governos compostos de seres humanos estúpidos e destruidores, a autoridade conferida aos seres humanos brutos e estúpidos elevados à categoria de governantes serviu mesmo foi para facilitar o incremento da estupidez uma vez que a princípio jogavam soltos porque sendo fiscais, não eram fiscalizados. Percebendo, posteriormente a falha e a necessidade de fiscalizar os fiscais, foram criadas outras instituição para esse fim. Novo redundante fracasso porque os novos fiscais se ajuntaram aos primeiros e como duas cabeças pensam melhor do que uma só, vieram a aperfeiçoar os modos de uso da autoridade para atitudes estúpidas e destruidoras das quais resultam as guerras e as fortunas individuais imensuráveis com sacrifício do bem-estar coletivo.

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