Marxismo e psicanálise: o mito do egoísmo inato

Marx analisou as pulsões que governam os agentes econômicos e conformam as relações de troca. Lida com as lentes da psicanálise, esta lição destrói a crença liberal no egoísmo atávico e no indivíduo centrado apenas em si mesmo

Imagem: Keith Negley
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Por Eleutério F. S. Prado

Este estudo parte de duas lições que se aprendem no “intelecto geral” da sociedade contemporânea. A primeira vem de Vladimir Safatle e vai orientar a redação do escrito que se segue; diz o seguinte: “nenhuma perspectiva sociológica pode abrir mão de uma análise das disposições subjetivas” (2008, p. 16) dos indivíduos que habitam a sociedade. Ou seja, tem de compreender como os “sujeitos” investem a libido na conformação de seus comportamentos, na manutenção de seus vínculos sociais com outros “sujeitos”, na aceitação ou rejeição das instituições etc. Ao fazê-lo, formulam representações imaginárias, aderem a códigos simbólicos e adquirem expectativas de satisfação.

Se assim for, interessa aqui perguntar que compreensão das pulsões humanas está implicitamente admitida na obra madura de Karl Marx, ou seja, em O capital?

Para responder essa pergunta, estuda-se aqui uma segunda lição e esta última vem de Adrian Johnston, um filósofo norte-americano da corrente de pensamento conhecida como lacano-marxista. Segundo ela, “o materialismo histórico e a crítica da economia política contêm uma teoria da pulsão antropológica e filosófica” (2017, p. 286). Mais do que isso, esse autor sustenta mesmo que essa teoria antecipa até certo ponto a metapsicologia de Sigmund Freud.

Como encontrar nos textos de Marx, com o risco do anacronismo, as evidências dessa hipótese um tanto audaciosa? Eis que é preciso ler logo um trecho da introdução dos Grundrisse:

A produção (…) produz não somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto. Logo, a produção produz o consumo, na medida em que 1) cria o material para o consumo; 2) determina o modo de consumo; 3) gera como necessidade no consumidor os produtos por ela própria postos primeiramente como objetos. Produz, assim, o objeto de consumo, o modo do consumo e o impulso do consumo. Da mesma forma, o consumo produz a disposição do produtor, na medida em que o solicita como necessidade que determina a finalidade.

(Marx, 2011, 47-48)

Nesse trecho é bem evidente que Marx liga a interação social na produção e na circulação mercantil à formação de disposições psíquicas na cabeça dos agentes econômicos. Emprega, mesmo antes de que esse saber nascesse, os termos “disposição” e “impulso” que pertencem ao léxico atual da psicanálise. Mostra, assim, que o comportamento do indivíduo social é governado por pulsões que se originam na natureza orgânica do ser humano, mas que se manifestam necessariamente por meio da mediação da linguagem, fundamento da sociabilidade humana. Indica claramente que produção e consumo estão numa relação de complementariedade que se dá de modo interativo, mostrando assim que não podem ser tomados meramente como atributos redutíveis aos indivíduos enquanto tais.

Nesse sentido, Johnston assegura que “para ambos, Marx e Freud, a pulsão [que orienta o comportamento econômico] é produzida de modo mediado, ao invés de ser dada de imediato. Mais precisamente, as pulsões em geral, tanto para o materialismo histórico quanto para a psicanálise, são produzidas por mediações sociais – econômicas, familiares ou de qualquer outra natureza – nas dimensões estruturais e fenomênicas” (2017, p. 279-280). É patente, pois, que, para eles, o sujeito e o objeto das pulsões produzem-se um ao outro. Condições históricas específicas, ademais, determinam que “externalidades objetivas sejam introjetadas e metabolizadas como internalidades subjetivas” (idem, p. 280).

Mas Marx vai bem além disso na caraterização das pulsões que governam os agentes econômicos. Como se sabe, mostrou, primeiro, que a pulsão subjetiva do produtor de mercadorias aparece replicada na pulsão subjetiva do consumidor de valores de uso e que ambas estão determinadas estruturalmente pela pulsão objetiva do capital. Para se autovalorizar, o capital requer continuamente que a produção de mercadorias gere não apenas novas mercadorias, mas principalmente mais-valor. Como a pulsão do capital é insaciável, esse traço vai aparecer também no caráter do produtor e do consumidor enlaçados imediatamente por meio dos mercados, mas em última análise pelas relações sociais do capitalismo.

E isso fica claro num trecho do Capítulo do Capital dos Grundrisse, em que Marx fala da lógica compulsiva da expansão do capital. Eis que o sujeito automático do modo de produção capitalista se move por um processo de recursão próprio que tende a se expandir interminavelmente:

(…) a produção de valor excedente relativo, i.e., a produção de valor excedente fundada no aumento e no desenvolvimento de forças produtivas, requer a produção de novo consumo; requer que o círculo de consumo no interior da circulação se amplie tanto quanto antes se ampliou o círculo produtivo. Primeiro, ampliação quantitativa do consumo existente; segundo, criação de novas necessidades pela propagação das existentes em um círculo mais amplo; terceiro, produção de novas necessidades e descoberta e criação de novos valores de uso.

(…) Daí a exploração de toda a natureza para descobrir novas propriedades úteis das coisas (…) A exploração completa da Terra, para descobrir tanto novos objetos úteis quanto novas propriedades utilizáveis dos antigos; bem como suas novas propriedades como matérias-primas etc.; daí o máximo desenvolvimento das ciências naturais; similarmente, a descoberta, criação e satisfação de novas necessidades surgidas da própria sociedade; o cultivo de todas as qualidades do ser humano social e sua produção como um ser, o mais rico possível em necessidades, porque rico em qualidades e relações – a sua produção como um produto social universal o mais total possível (porque, para um desfrute diversificado, tem de ser capaz do desfrute e, portanto, deve possuir um elevado grau de cultura) – tudo isso é igualmente uma condição da produção baseada no capital .

(Marx, 2011, p. 287)

Como se vê, o trecho expõe um achado central da crítica da economia política, qual seja ele, a sede inesgotável de mais-valor da relação de capital, a qual só pode se materializar se houver uma expansão da apropriação da natureza e da subsunção do próprio ser humano. Assim, mostra em especial que o desenvolvimento do capital só é possível porque as necessidades humanas são extremamente flexíveis. Elas podem ser comprimidas ao mínimo para possibilitar a exploração do trabalhador, mas podem também ser alargadas indefinidamente para expandir a demanda efetiva por meio do consumo crescente da burguesia como um todo. Eis como Johnston apresenta isso:

Na crítica de Marx à economia política, essa elasticidade das necessidades pode e se move em duas direções opostas. Por um lado, a flexibilidade dos requisitos dos seres humanos é tal que eles podem suportar e até serem pressionados a tolerar privações nas quais o relativo se aproxima do absoluto, ou seja, da miséria absoluta. (…) Por outro lado, essa mesma flexibilidade permite o estímulo e o crescimento de impulsos e anseios multiplicados em que as “necessidades” são amplamente ampliadas e/ou intensamente aprofundadas como ocorre no capitalismo tardio consumista (…).

(Johnston, 2017, p. 282)

O trecho mostra ainda que tais níveis de consumo – provindos de necessidades criadas pelo estômago ou pela fantasia, como diz Marx nas primeiras linhas de O capital – são engendrados pela própria reprodução ampliada da economia capitalista no curso de sua turbulenta história. Sobre esse ponto, Johnston enfatiza que a expansão quantitativa do capital só é possível devido à possibilidade de expansão qualitativa do consumo. Em suas palavras: “A atividade frenética, autoestimuladora do capitalismo que devora a Terra é dinamizada pelo mais-valor contido no valor de troca” (2017, p. 281) que, por isso mesmo, define-se especificamente por ser quantitativo. A expansão do sistema, em consequência, não pode advir da proliferação dos valores de uso, já que estes são qualitativamente distintos entre si. Mas, em contrapartida esses últimos têm de proliferar indefinidamente, de forma subordinada, conforme ocorre a acumulação de capital.

Há, entretanto, uma condição implícita em tudo isso e Johnston faz questão de ressaltá-la. Para que pudesse existir um sistema econômico autoexpansivo na época moderna, era preciso que o ser humano enquanto tal fosse já dotado desde sempre, antes que ela emergisse e se desenvolvesse do século XVI em diante, de uma economia libidinal maleável e ajustável historicamente.

Para ser ainda mais exato, a estrutura pulsional plástica, como teorizada na antropologia metapsicológica, filosófica e psicanalítica, é uma condição necessária para que a economia libidinal peculiar do capitalismo, conforme afirma o próprio materialismo histórico, passasse a existir. Torna-se condição suficiente quando a produção capitalista, estimulada pela busca da mais-valia, passa a explorar essa plasticidade [dos consumidores] para seus ganhos (Johnston, 2017, p. 283).

Para tentar completar esse quadro, é preciso lembrar que as concepções de Marx sobre o capitalismo requerem – e isto fica geralmente implícito – uma noção de inconsciente. Mesmo se ele não empregou essa conceituação, ela está implícita sem dúvida no texto de O capital e nas obras preparatórias que o antecederam. A duplicidade consciente/inconsciente, que marcará de modo indelével a obra de Freud, está presente já na compreensão do valor simbolicamente implícito no valor de troca.

Após explicar em sua obra magna que a forma valor está subjacente à forma preço das mercadorias, Marx diz dos agentes econômicos, os quais operam nos mercados com base no conhecimento dos preços, que “eles não o sabem, mas o fazem”. Ora, isso só possível se se admite que há um inconsciente social criado pela sociabilidade mercantil generalizada. Mas é preciso admitir também que os próprios valores, ainda que velados, encontram-se já também no inconsciente psíquico dos agentes econômicos. E isso se revela justamente no fetichismo das mercadorias, pois ele consiste numa ilusão real que é produzida na interação espontânea dos agentes com as mercadorias. E essa ilusão, por sua vez, consiste justamente em atribuir valor ao próprio valor de uso, quando o valor é forma de uma relação social.

E essa duplicidade consciente/inconsciente também aparece na compreensão do homem econômico. Para a economia política clássica, o homem econômico é transparente, racional e governa a si mesmo com grande diligência; dado o seu nível de conhecimento sobre o mercado e sobre si mesmo, ele, enquanto produtor, maximiza o lucro e, enquanto consumidor, maximiza a própria satisfação. Stuart Mill, por exemplo, considerando que se tratava de uma abstração metodológica, disse que o homem econômico “é um ser que é determinado, pela necessidade de sua natureza, a preferir uma porção maior de riqueza ao invés de uma menor em todos os casos” (1974, p.301).

Donde vem essa compreensão do ser humano enquanto atuante na economia capitalista? Vem da própria prática utilitária em que os agentes econômicos se empenham cotidianamente, buscando produzir, vender e comprar mercadorias. Ora, essa compreensão parece ser bem razoável para os propósitos da cientificidade que Marx denominou de vulgar. Ela produz um saber econômico que se origina da própria consciência empírica e da auto-observação de tais agentes enquanto teóricos que querem apreender apenas os fenômenos econômicos.

Marx criticou essa abstração que funda grande parte da economia política pelo termo derrisório de robinsonada. Eis que leva a pensar o ser humano como um indivíduo centrado em si mesmo, independente da sociedade e que toma decisões soberanamente. Ora, essa construção teórica só tem sentido e certa validade num entendimento superficial da economia capitalista. Eis que é ela própria, enquanto sistema autopropelido, exige de fato que o indivíduo seja egoísta como primeira opção. Mas ele só pode existir porque a sua economia pulsional se adaptou pouco a pouco ao modo de produção capitalista. O “sujeito” que opera nos mercados e que, assim, se afigura como agente econômico é criatura forjada pela normatividade inerente à própria relação de capital, o verdadeiro sujeito criador do capitalismo.

Esses indivíduos que sentem como tais não o sabem, mas eles não são mais do que “personagens econômicos” ou mesmo “personificações das relações econômicas”, tal como Marx os caracterizou em O capital (1983, p. 80). Se se comportam como homens econômicos na sociedade moderna é porque a normatividade do capital passou a habitar, sem que disso tivessem percepção, as suas mentes, passando a governar seus comportamentos. Essa intrusão do social na psique individual só fica patente por meio do conceito freudiano de superego. Marx não o conhecia como tal, mas nem por isso deixou de admiti-lo implicitamente ao anotar que os indivíduos são suportes das relações sociais inerentes ao capitalismo. Pois, como suportes – repetindo uma frase famosa de Freud –, eles não governam na própria casa.

Mas qual é a importância de toda essa argumentação? Ela derruba a objeção clássica (liberal) e contemporânea (neoliberal) ao socialismo. Pois, essa crítica de direita afirma que o ser humano, por sua própria natureza, é egocentrado; ele busca o seu autointeresse, exceto, talvez, no âmbito familiar e de pessoas muito próximas. E que, por ser assim – metaforicamente, um lobo – ele está em conformidade com as instituições do capitalismo – um sistema que tem as propriedades da auto-organização e do crescimento sustentável. Eis que esse sistema privilegia e estimula – dizem os liberais – um comportamento privatista intencional que vem a ser o único meio de produzir de modo eficiente, ainda que não intencionalmente, a prosperidade e o bem público.

Se as crises, a pobreza generalizada, o colapso ambiental etc. desmentem cabalmente o argumento da mão invisível, a economia pulsional de Marx e Freud desmentem a fantasia do homem econômico racional. À medida que a crítica da economia política compreende o humano como um ser plástico que se adapta ao que ele próprio cria socialmente, fica derrogada a pretensão do liberalismo de naturalizar o indivíduo social. Formado socialmente pelo próprio sistema econômico, o capitalista é, sim, necessariamente insaciável; porém, o consumidor só é insaciável quando sua consciência prática está governada por um superego capitalista que, aliás, a propaganda e o marketing não deixam nunca de alimentar.

Referências bibliográficas

Johnston, Adrian. From closed need to infinite greed: Marx’s drive theory. Continental Thought & Theory, vol. 1 (4), 2017, p. 270-346.

Marx, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.

Marx, Karl. O capital – Crítica da Economia Política. Livro I, tomo I. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Safatle, Vladimir P. Para uma crítica da economia libidinal. Revista IDE, nº 46, 2008, p. 16-26.

Stuart Mill, John. Da definição de economia política e do método de investigação próprio a ela. Coleção Os Pensadores: Bentham e Mill. São Paulo: Editora Abril, 1974.

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3 comentários para "Marxismo e psicanálise: o mito do egoísmo inato"

  1. Maravilhosa matéria.
    Leia o livro, “Agonia do Eros” do BYUNG-CHUL HAN

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