Humanos, demasiadamente humanos

Relato de um professor entubado por 10 dias com covid: trabalhadores da Saúde não são heróis, infeliz clichê da cultura do individualismo. São profissionais além da técnica: partilham afetos e inspiram à coletividade num país desgovernado

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Ao longo de grandes catástrofes, ou dos acidentes coletivos que nos atingem, muitas vezes de forma inesperada, testemunhamos o trabalho de bombeiros, policiais, médicos e uma gama de outros profissionais prontos a agir para salvar vidas – ainda que muitas vezes coloquem as suas próprias em perigo. Por isso, não é raro que os denominemos “heróis”, sobre-humanos, elevando-os à categoria de seres extraordinários, quase como se fizessem parte de outro mundo que não este nosso, tão humano, em que vivemos.

Durante a pandemia de covid-19, essa condição sobre-humana que conferimos àqueles que se dispõem a zelar e a salvar nossas vidas tem se evidenciado ainda mais. Costumamos referirmo-nos a eles como os “profissionais da linha de frente”, e, dentre estes, principalmente os profissionais de saúde intensivistas, que atuam incansavelmente nos CTI’s (ou UTI’s) de todo o país, como “heróis”. Ali, esses profissionais se revezam para manter o tratamento dos doentes full time; para eles, cada vida importa e cada vida é festejada quando o sucesso da recuperação se concretiza; a recuperação, sabem eles, é a verdadeira recompensa de seu trabalho árduo!

Durante a primeira onda da pandemia no país, em 2020, junto com Paulo Gajanigo, professor e pesquisador da Universidade Federal Fluminense, desenvolvemos uma pesquisa sobre relatos do cotidiano durante o confinamento e a nova rotina que nos foram impostos pela pandemia. Nessa pesquisa, publicada com o título “A pandemia e o ordinário: apontamentos sobre a afinidade entre experiência pandêmica e registros cotidianos”, analisamos como as pessoas experimentavam e relacionavam suas rotinas com as mudanças advindas do isolamento social e do aumento no número de casos e vítimas de covid-19.

Àquela altura, mal podia imaginar que passaria, em 2021, de pesquisador a objeto de pesquisa. Há coisa de meses, fui diagnosticado com covid-19 e, devido a um quadro que se agravou, precisei ser internado e intubado em um hospital privado no Rio de Janeiro, e passei vários dias no CTI. Esta, sem dúvida, foi a mais terrível experiência de confronto com a morte que vivi até hoje. E foi ali, em meio a esse confronto, ao retomar a consciência depois de dez dias intubado, que meu empuxo de pesquisador me levou a observar, com esmero, o conjunto de procedimentos e atividades necessários à reabilitação de pacientes que partilham comigo a experiência desse confronto.

Esta condição, ora de paciente, ora de observador, permitiu-me acompanhar a rotina de dentro do CTI, quase como se fosse mesmo um “trabalho de campo”. Das atividades mais simples às mais complexas — todas igualmente importantes porque, sim, no CTI, tudo é importante! — o que via não eram aqueles “heróis” entronizados pela cultura do individualismo. Havia, ali, uma visão de conjunto, um coletivo de humanos, demasiadamente humanos — e demasiadamente trabalhadores —, empenhados em seu labor, dedicando-se ao máximo para fazer o melhor e da melhor forma possível. Ali, nada pode dar errado, qualquer erro pode ser fatal.

Nas conversas que tive com aqueles profissionais – exímios profissionais! – pude ver, no entanto, que ali havia, de fato, mais do que trabalho técnico; havia mesmo uma partilha de afetos de profissional para profissional, de profissional para pacientes. Como resultado, vi uma síntese entre a boa, isto é, a melhor execução possível do trabalho técnico, conjugada ao mais afetuoso convívio entre a equipe profissional e os pacientes.

Foi aquele convívio afetuoso que pôde reforçar, para mim, a importância do trabalho como construção do ser social; só uma compreensão desse tipo pode contribuir para uma sociedade mais justa, edificante, menos desigual.

Diante dos descaminhos e tropeços da política governamental no que diz respeito ao combate à pandemia, é necessário reconhecer, mais do que nunca, que, a despeito da precarização do trabalho, da dupla (e às vezes tripla) jornada desses profissionais, da péssima remuneração e outros tantos fatores, a estes profissionais, não lhes falta o que há (ou deveria haver) de mais especial em cada um de nós: humanidade. Diante deles, não estamos diante de “heróis”, mas de humanos, demasiadamente humanos, para os quais o valor do trabalho reside na certeza de que cada vida, por mais custoso que isto lhes seja, vale a pena. E como vale!

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