Relatório da Human Rights Watch para o Brasil prima pela superficialidade

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Violações bárbaras e sistemáticas de direitos humanos ganham resumo anódino da organização internacional; imprensa repercute por protocolo, “para americano ver”

Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)

A vantagem de uma organização internacional de direitos humanos fazer um relatório por país é que a imprensa brasileira não se atreve a esnobar. E arruma um espaçozinho para os mesmos temas que costuma ignorar durante o ano. É o que ocorre nesta quarta-feira com o relatório da Human Rights Watch, que aponta violações de direitos por todo o mundo. A apresentação dos dados anuais, em tese bem-vinda, é feita com pompa. Mas os dados sobre o Brasil são extremamente superficiais.

Quem acompanha regularmente os temas sente falta de mais detalhes e de mais contundência. O texto em português chega a ser tão cuidadoso que quase pede desculpas por expor alguns de nossos horrores – da violência policial ao trabalho escravo. E como resumir a violência no campo em dois parágrafos? As violações de direitos das crianças em outros dois? Casos relativos a orientação sexual e identidade de gênero, mais dois?

Dessa forma, os abusos policiais (quatro parágrafos) e as condições das prisões (seis parágrafos) acabaram motivando as principais notícias nos jornais brasileiros. Que se preocuparam, basicamente, com o modo como os estadunidenses viram nossas violações de direitos; e, como de costume, não com elas mesmas. Aceitaram a autoridade da organização internacional sem observar que ela fez apenas um resumão, uma cozinha mal feita e distraída.

A VIOLÊNCIA NO CAMPO

Tomemos a violência no campo, por exemplo. Primeiro parágrafo do item no relatório:

Camponeses e líderes indígenas envolvidos em conflitos de terra continuam enfrentando ameaças e violência. De acordo com os números mais recentes da Comissão Pastoral da Terra, um grupo católico, 46 pessoas envolvidas em conflitos por terra foram assassinadas entre janeiro e novembro de 2015. Muitas das mortes, de acordo com a comissão, foram supostamente ordenadas ou executadas por grandes fazendeiros ou madeireiras ilegais.

Mortes “supostamente” ordenadas por fazendeiros ou madeireiras? “Muitas” mortes? Ora, a violência no campo no Brasil tem relatos de puro horror, tem evidências de envolvimento de latifundiários e madeireiros. Essas seis linhas passam muito longe de resumir os conflitos agrários – ou o massacre agrário – eternizado no país há séculos. E não é que os camponeses continuam enfrentando ameaças e violência. Essa violência aumentou em 2015.

Escrevi a palavra “camponeses” porque o primeiro parágrafo se refere a eles. Que não representam todos os povos do campo. Faltaram os quilombolas, os pescadores, extrativistas, todos os demais povos tradicionais. Os povos indígenas, sim, esses ganharam um parágrafo inteiro da Human Rights Watch, o segundo e último parágrafo do item:

No Mato Grosso do Sul, por exemplo, o povo Guarani-Kaiowá, que luta para reaver suas terras ancestrais, sofreu violentos ataques em 2015 por parte de grupos ligados a fazendeiros, de acordo com o Conselho Missionário Indígena da Igreja Católica. Um membro do povo Guarani-Kaiowá foi morto em agosto, após a chegada de um grupo de fazendeiros a um terreno sob litígio, ocupado e reclamado pelos Guaraní-Kaiowá. Até a elaboração deste relatório, a polícia ainda não havia identificado quaisquer suspeitos do assassinato.

Mais uma vez o texto pisa em ovos. Eles não sofreram ataques violentos “de acordo com o Cimi”. Eles sofreram e sofrem um verdadeiro massacre, um confinamento, vivem um apartheid. E relatar apenas um caso de assassinato (sem nome, sem vida) não resume o que acontece no Mato Grosso do Sul. Vivemos o principal conflito indígena da América Latina, ao lado da repressão aos mapuches, no Chile. E também um acirramento da tensão, com a organização miliciana – e assumidamente miliciana – dos fazendeiros.

SUPERFICIALIDADE

As milícias (rurais e urbanas) poderiam compor um item específico do relatório. Ao lado dos grupos de extermínio. Que existem em todas as Unidades da Federação. São desafios estruturais a esse esboço de democracia que existe no Brasil. Mas a Human Rights Watch optou por fazer algo preguiçoso. Burocrático. Protocolar. É praticamente uma façanha os jornais (reverentes ao marketing da organização) terem extraído títulos desse relatório anódino, que não representa a violação sistemática e criminosa de direitos humanos no Brasil.

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