O Atentado de Paraty e a fissura fálica dos fascistas
Rojões disparados contra Glenn Greenwald e multidão durante debate na Flipei e inveja do microfone alheio caracterizaram ato de fiéis da religião sergiomorista
Publicado 16/07/2019 às 16:12 - Atualizado 18/07/2019 às 14:02
Por Alceu Luís Castilho
Entre os dois grupos, um rio. Como em “O Grande Fosso”, álbum de René Goscinny e Albert Uderzo na série Asterix, onde dois grupos disputam o poder numa aldeia, uma fissão cinematográfica rendeu ampla repercussão durante a Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (Flipei), na sexta-feira em Paraty, durante debate que contou com a presença de Glenn Greenwald.
Fissão, mas não ficção. Com uma divisão desproporcional: não exatamente uma batalha, mas um atentado. De um lado, cerca de 3 mil pessoas para assistir a um debate sobre “Os desafios do jornalismo em tempos de Lava Jato”. Do outro, algumas dezenas de fascistas, seguidores fanáticos do ministro da Justiça, Sergio Morto, dispostos a calar os adversários. Gente autoritária – e perigosa.
Método fálico de comunicação: rojões. Sociopatas ou (na melhor das hipóteses) irresponsáveis – com dificuldades cognitivas para avaliar riscos – dispararam fogos na horizontal, em direção à mesa onde estava Greenwald e a multidão composta por homens, mulheres e crianças. Com risco embutido de pânico. (Falo como testemunha, pois também estava na mesa, ao lado de Gregório Duvivier, Sabrina Fernandes e Sérgio Amadeu.)
Não ocorreu uma batalha folclórica, portanto. E não que fosse legítima e democrática uma batalha pelo espaço sonoro, como quer certa parte da imprensa, diante do carro de som em alto volume dos bolsonaristas, esses que não sabem que “Pavão Misteriozo” (uma descendente do histórico cordel Romance do Pavão Misterioso) era uma música de Ednardo contra a ditadura.
Nessa cauda
Aberta em leque
Me guarda moleque
De eterno brincar
Me poupa do vexame
De morrer tão moço
Muita coisa ainda
Quero olhar….
Foi uma batalha onde só um lado foi violento, embora a imprensa graúda tenha minimizado esse aspecto unilateral das agressões. (O que não aconteceria, evidentemente, se um grupo de esquerda tivesse atirado tomates ou bolinhas de papel – e não rojões – em direção a uma multidão de direita.)
MANIFESTANTES FIZERAM MARKETING DO EVENTO ALHEIO
Na origem do problema, uma certa inveja do microfone alheio. Os adeptos fervorosos de Moro não se conformaram com a hipótese de uma iniciativa contra-hegemônica – a Flipei – reunir milhares de pessoas para discutir os impactos da Lava Jato na liberdade de expressão. Optaram por agir de forma metonímica, amalgamando-se à narrativa como exemplos concretos de intimidação.
Afinal de contas, os microfones do outro lado do Perequê-Açu tinham mais ancance. Pela história de cada debatedor. E este singelo fato deve acionar uma espécie de crise interna entre os fiéis, como se estivessem sendo desafiados em relação ao que lhes é de mais caro: o desejo incontido por impacto (às favas os escrúpulos de consciência) e a volúpia pelo discurso único.
Durante uma das falas, em momento de silêncio da multidão, ouviu-se um berro de um desses espadachins: “Gringo de meeerrrda”. Em potente sotaque fluminense. Esse o poder de argumentação – introdução, desenvolvimento, conclusão – daquela facção: “Gringo de merrda”. O vocativo escatológico como discurso desprovido de qualquer qualidade intelectual ou estética. “Seus merdas”.
O xingamento pouco elaborado se soma à inveja do microfone alheio e ao tesão por empunhar rojões. Os fascistas brasileiros decidiram fazer marketing involuntário do evento que eles queriam calar e amplificaram, com isso, a própria condição de miséria intelecutal e estética. “Seus merdas”. (Fico apensar em como Graciliano Ramos enfatizaria essa recorrência. “Seus merdas”.)
No fim das contas, o debate foi realizado, registrado para a posteridade e o jornalismo independente continuará bem, obrigado, apesar desses gritos quase primais e da disposição dos fundamentalistas de calar a voz dos adversários. Ele sobreviverá à Lava Jato, aos mafiosos (aos milicianos) e aos fascistas.
E sobreviverá à omissão da polícia e da organização da Flip – a oficial. Curiosamente alinhada olimpicamente ao Exército que dizimou Canudos (Euclides da Cunha foi o homenageado deste ano da festa literária), em detrimento daqueles que resistem aos assédios. Literatos ao lado de arremessadores de rojões.
A caravana da liberdade passará.
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