Hipertrofia do debate sobre babá abafa incitação golpista da mídia

https://www.youtube.com/watch?v=E8QdcNLO29U

Debate à esquerda sobre cena política é atropelado pela era da imagem e pela necessidade de se eleger vilões anônimos; donos do Estadão e da Globo agradecem

Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)

Fato 1: um casal caminha de verde e amarelo com seu cachorro, durante protesto anti Dilma no Rio, ao lado da babá negra (de branco), a conduzir um carrinho com dois bebês. A fotos em rede social viralizam. Fato 2: um dos maiores jornais do país pede “Basta!”, nesse mesmo domingo, com as mesmíssimas palavras do Correio da Manhã no dia 31 de março de 1964. Fazendo coro à torcida explícita da grande imprensa – Globo à Frente – por uma derrubada de governo incitada por gente como Ronaldo Caiado e Jair Bolsonaro.

Qual dos dois fatos motivou desde ontem o grande debate nacional, à esquerda? O primeiro. E o que isso significa?

Significa que o pós-modernismo venceu. Conseguimos tornar as discussões relativas ao mundo privado (e a sua própria evasão) mais importantes que a identificação das megatendências do mundo público. Agimos como se a posição do Estadão não tivesse relevância, embora o público recorde em São Paulo coincida exatamente com o dos leitores desse jornal. Jogamos a euforia dos comentaristas da Globo para debaixo do tapete, como se a posição da família Marinho – e a da Fiesp, por exemplo, ainda na linha da fiscalização dos poderosos – não fossem relevantes no contexto golpista.

Do lado do casal e da babá, ninguém perguntou a ela se queria virar notícia nacional, como se fosse um ícone da senzala contemporânea. E dá-lhe toda sorte de anacronismos. Por exemplo, ao se justificar essa balbúrdia toda em relação à foto com o fato de que se tratava de um banqueiro. (Mesmo do ponto de vista pós-moderno, olha o machismo aí, gente.) Ora, essa informação é posterior. Inicialmente não se sabia quem eles eram – e ainda não sabemos quem são as mulheres. Portanto estamos fazendo análises anacrônicas – aquele pecado mortal dos historiadores.

De qualquer forma, não me parece que estejamos fazendo uma crítica cotidiana do universo dos banqueiros. Sobre quem eles financiam, quem eles tentam derrubar. (Especialmente os banqueiros graúdos: o oposicionista Itaú, o governista Bradesco, sócio da Vale.) De alguma maneira precisamos hipertrofiar a importância da foto do casal, a foto que, alegam, se originou de um meme, de uma charge. A vida imita o meme, e a ele precisamos nos voltar, fazer reverência – como se estivesse ali a chave para se entender a história do Brasil e todo seu momento político.

Claro que poderão dizer que os dois fenômenos são importantes. Mas o que estou dizendo é que o segundo tema foi solenemente ignorado, que há uma desproporcionalidade. A crítica à esquerda se tornou subitamente metonímica, sem capacidade de tentar elucidar o processo, identificar atores centrais. Isto para não falar da necessidade de escracho, de identificar algum vilão (como o banqueiro), em detrimento de chatas e sisudas pretensões de se discutir processos mais amplos – sem o zoom conveniente e reducionista de uma foto avulsa.

Por certo há quem esteja fazendo tudo isso. Mas a concorrência é desleal. Há uma fissura, uma comoção, uma urgência despertada pelo meme que virou foto, como se fosse um totem, como se não fosse possível discutir os protestos de março de 2016 sem nos debruçarmos sobre essa imagem. Nos tornamos reféns dos símbolos – da mesma forma que, no campo oposto, se faz culto ao Pixuleco, ou aos patos da Fiesp ou mesmo aos caminhões da Tropa de Choque. (Houve fila para tirar fotos com um tanque ao fundo, como mostra o vídeo postado antes do texto, em versão mais radical das selfies com policiais.)

Aviso: tanques atropelam.

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7 comentários para "Hipertrofia do debate sobre babá abafa incitação golpista da mídia"

  1. Maurício Gil - Floripa (SC) disse:

    Certíssimo, Alceu. Mas a esquerda burra – e há muitos deles – não entenderá assim, achando que a foto ilustra bem o que vimos no dia de ontem.
    Outro ponto de discórdia que tenho com boa parte das pessoas que leem os blogs independentes, e mesmo alguns blogueiros como o PHA, é quanto ao poder ainda exercido pela grande mídia, Globo à frente.
    A maioria propaga, no meu entender erroneamente, que esse poder se enfraqueceu, alguns até o negam atualmente. Fosse verdade não teríamos mais do que mil pessoas na Paulista ontem.
    Muita, mas muita gente mesmo – classe média em sua totalidade – se informa apenas pelo JN. A Globo ainda manda, e muito; quem pensa que não se ilude.
    Basta ir às ruas, às salas de espera de médicos, dentistas, cabeleireiros, etc. Em uníssono repercutem o que “deu” no JN ontem, o que o Fantástico mostrou ou deixou de mostrar… enfim, ela ainda mantém a todos sob o seu jugo. Não nos iludamos.
    E assim é com relação à Veja, Estadão, Folha, etc.
    Não podemos achar que o mal que eles causam é um mal menor, que ninguém mais lhes dá bola. Não!
    A mídia monopolista continua forte, presente de forma opressiva na vida da grande maioria que tem acesso e consome informação.
    Por conta disso a Dilma não consegue governar, o PT está acuado e a esquerda não se faz ouvir – e o STF, o Lewandowski, o Barroso, etc.
    A mídia pauta a Lava-Jato e o Moro, não o contrário. Sem a Globo o Moro não existiria.

    • Alceu Castilho disse:

      Concordo plenamente com a atualidade do poder da mídia e esse wishful thinking dos blogueiros, Maurício. O público na manifestação de SP, ontem, era o público de leitores do Estadão.

    • Dante disse:

      Concordo. Convivo basicamente com pessoas da classe média e TODOS se informam por Globo,alguns GloboNews, Veja e CBN. E no caso de jornais como sou do PR pela Gazeta do Povo. E Folha nos chega vai UOL.

    • JORGE disse:

      Bom dia, Senhores.
      Respeitosamente, eu discordo totalmente da ideia e/ou premissa de que a globo ou qualquer outra mídia, pautem o esperto do moro. O moro USA a mídia como lhe convém. Se se ler atentamente o “grande artigo” (com pretensões acadêmicas) que esse juiz escreveu, anos atrás, sobre a operação Mãos limpas (se não me engano) na Itália, compreenderá que para ele as empresas estatais são a fonte da corrupção, o grande mal a ser combatido no Brasil e que assim os (pequenos !!!) males/distorções que possam advir pelas ações da Laja-Jato, assim como na Itália (!!!) seriam amplamente aceitáveis…
      O juiz sérgio moro possui agenda própria, neo liberal e narcisista, estando engajado e sendo protagonista, atuando junto, em equipe, de comum acordo (e não, sendo pautado) com o que a grande mídia, corporações transnacionais e grandes petroleiras mundiais, todo o mercado financeiro e industriais paulistas (como sempre) querem, além de parte de delegados da grande polícia federal e do Poder Judiciário brasileiro. O conluio, o Golpe, é estruturado, calculado e tocado em partes dos poderes judiciário e Legislativo, no mais profundo comum acordo para o bem deleite DESSES atores… O juiz moro não é pautado, é farinha do mesmo saco!

  2. Diogo Navarro disse:

    Dentro desta perspectiva (que aliás eu discordo), seria também anacronismo comparar 1964 e 2016. Certamente a força que o jornal era imensamente maior, mais significativa, do que agora em que as mídias (e aí nas redes sociais cada um é uma mídia) se descentralizaram (apesar da velha imprensa).

    O debate sobre o caso da babá é de vida privada, sim, mas é também estrutural, obviamente de uma janela para a estrutura sociocultural, talvez mais importante do que as agitações políticas de ondas mais curtas em que se troca atores e espetáculo continua, senão o mesmo, muito parecido.

    • Dante disse:

      Não sei. Pois as mídias de Internet são moldadas por aquilo que gostamos. Assim quem se identifica com causas conservadoras acaba vendo notícias destes grupos. Não é bem opção é programação das redes sociais mesmo. Entre no meu Facebook é uma coisa , no dos meus amigos é bem diferente. Acaba sendo até pior, não chega notícia alguma daquilo que não gosto.

  3. fernando disse:

    Concordo plenamente com o teor do artigo. Recordo que Rafael Correa,Presidente do Equador, creio que Lula era a epoca o Presidente, fez uma alocuçao, a meu ver brilhante, sobre os poderes dos Midia ditos de referencia e os efeitos contra revolucionarios sobre a evoluçao das politicas dos paises da America do Sul e concretamente sobre o Brasil, Bolivia,Argentina, Equador, Venezuela e Nicaragua.
    O desenrolar dos ultimos acontecimentos, acabaria, so meu ponto de vista, de lhe dar razao. Veja-se os ultimos resultados em alguns dos paises citados e analizemos a actuaçao dos media ditos e facilmente chegaremos a conclusao que se nao ganharmos a batalha da informaçao nao ganharemos a guerra, por muita força que tenhamos.

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