Como é ter uma filha. Criá-la. Amá-la. E ouvir os disparates do resto da humanidade

chikaidu-prayer

Em outros cantos vejo heróis, vejo resistentes. Olho para a minha filha e projeto todos eles, vejo nos olhos dela que ela não nasceu para oprimir ninguém

Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho) *

Eu tenho uma filha. Ela tem 12 anos. Mora comigo. Ela é o infinito. Uma multiplicação de possibilidades. Mas a percepção de boa parte das pessoas é estreita, restritiva. Quando perguntam sobre ela, querem encaixá-la em algum estereótipo. A começar da catalogação: “pré-adolescente”, “criança”, “moça”. A continuar pela descrição (e projeção) física: “vai dar trabalho”.

(As frases são acompanhas de risinhos, de uma espécie de cumplicidade às avessas, uma certa cordialidade corrosiva. Esperam que eu ria junto, que eu confirme alguma sina, alguma adversidade estrutural. Parece que eu devo ser destinado a sofrer por ter uma filha, e não o contrário: que ela vai me dar muitas alegrias, que ela vai continuar dando sentidos extras à minha vida.)

* Publicado originalmente em Outro Brasil, 18/06/2012. (Imagem: Chika Idu, “Prayer”.)

Quase ninguém pergunta como ela é. Quais os traços de personalidade. O que ela gosta de estudar. Que livros já leu. Que filmes já viu. Como ela percebe as amigas, os professores, o mundo adulto, as cidades onde ela viveu, o que a revolta. O que a comove. O que causa nela indignação, aflição. O que ela rejeita. O que ela celebra. O que ela abomina. O que a faz sorrir.

Ela não pode ser um infinito e um arremedo ao mesmo tempo. Sendo ela o infinito, o problema está em quem a reduz. Este é um exercício diário, o passatempo principal da nossa sociedade: reduzir, catalogar. Sim, vá lá, faço isso diariamente com adultos. Catalogo os canalhas, os patifes incorrigíveis, os grandissíssimos filhos de uma puta, os vermes, os indiferentes, os cúmplices. Os entreguistas, os traidores, os pusilânimes. Eu olho em volta e os vejo – lá estão.

(Em outros cantos vejo heróis, vejo resistentes. Olho para a minha filha e projeto todos eles, vejo nos olhos dela que ela não nasceu para oprimir ninguém. Mas ninguém nunca me perguntou: sua filha é uma boa pessoa? Tem boa índole?)

No caso das crianças, considero a redução precoce de seus traços de personalidade um baita de um atrevimento. Uma pretensão. Uma decisão anômala, descabida, deslocada, extemporânea. Uma proposição absurda. Sigo acreditando – enfaticamente – que essa personalidade está em construção. Que ela não é uma mulher de 18 anos. Uma moça de 30 anos. Uma adolescente de 40 anos. Vejo-a como ela é: um ser humano de 12 anos.

“Mas ela vai dar trabalho, hem?” As perguntas se repetem. Ou as exclamações: “Sua filha vai dar trabalho!” Os tons variam. Às vezes, mais reticentes, en passant: “Ela vai dar trabalho…”

“Dar trabalho”? Já pensaram no que está embutido nessa palavra? “Trabalho”? Por que associar uma vida (e suas potencialidades) à palavra “trabalho”? A minha filha, com licença, não dá e não dará trabalho. Antes de mais nada, ela é um indivíduo – em si. Possui uma vida própria, um recorte específico, uma existência muito particular. Mas… pensem.O que vocês querem realmente dizer com isso?

Tá bom, tá bom, eu sei que, em muitos casos, vocês não têm intenções negativas, mentes abomináveis. Que não estão perpetuando a sexualização precoce, que não estão insinuando que ela tenha atributos que simplesmente não são atributos da sua idade. Mas… veja só. Em outros casos desconfio. Fico com a orelha em pé. Os dois pés atrás. Cotovelo e punhos a postos.

E por isso escrevo. Porque a minha filha de 12 anos é o infinito e porque ela deve ser preservada. Delicadamente preservada. Linguisticamente preservada. Como toda criança deste planeta.

Sim, não se trata do problema único do universo, da maior violência possível contra uma criança. Há fome, há mortes, há trabalho infantil, tráfico internacional de órgãos. Minha filha, especificamente ela, é um poço de privilégios: nasceu num canto da humanidade que se alimenta, não é subnutrida. A casa dela tem telefone, saneamento básico. Estuda em uma boa escola, está lendo Gabriel García Márquez.

Ocorre que a existência de violências mais explícitas não anula a existência de violências mais sutis. Minha filha (assim como cada criança do mundo) merece ser vista como ela é. E não como as pessoas projetam, não pelo que elas percebem em si mesmas – ou no conjunto da humanidade sórdida.

Está bem, dirão que eu carrego nas tintas contra os adultos. Vá lá. Bem sei que nem toda humanidade é sórdida. Mas sempre (e obsessivamente) me chama a atenção a repetição do bordão negativo – “ela vai dar trabalho, vai dar trabalho”. Como o coelho com pressa de Lewis Carroll. Não somente a repetição, o chavão, mas a ausência de algum equivalente positivo: “Ela é um anjo. Ela vai ser a solução. Está sendo.”

As pessoas são hobbesianas. Estão longe de acreditarem no bom selvagem. Nenhum problema em relação a isso, quando pensamos no conjunto da humanidade adulta – em boa parte acanalhada, ou refém de pactos entre patifes. O meu problema é com as crianças. Não temos o direito de projetar nossas frustrações (para ser até simpático com algumas projeções mais rústicas) em cada filho de amigo nosso. Devemos olhá-la como o caleidoscópio possível. Como a pedra a ser burilada.

Como a joia mais exuberante da coroa. A minha filha de 12 anos é assim. E cada menina de 12 anos tem isso dentro dela – mais ou menos desenvolvido. A possibilidade de que seja uma pessoa que faça diferença. Que aja contra a desigualdade, que sinta o drama (esfomeado, violentado) de bilhões de pessoas, que seja coerente, como adulta, com o senso de justiça ainda existente na infância. Ou na adolescência.

Essas pessoas são especiais. Devem ser o nosso motivo diário de sorrisos – e de esperança. E não o nosso alvo. Nosso motivo de inveja ou despeito. Voluntário ou involuntário. Devem ser o conjunto dos dicionários, o conjunto das palavras possíveis, devem ser o universo multiplicado.

Elas devem ser (do ponto de vista estilístico) Jorge Luis Borges, o narrador do infinito, e não o jornalista redutor de cada esquina. Devem ser celebradas. Cada uma delas é o Prêmio Nobel de Literatura e de Ciência – e é aquele que vai salvar as nossas vidas. Antes disso, são o que são – são plenas.

As nossas crianças (entre elas a minha filha de 12 anos, a pessoa mais importante do mundo) merecem ser vistas como tais. Como a soma. O movimento. A utopia.

E não um ponto congelado em nossas retinas tão fatigadas.

Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OutrosQuinhentos

Leia Também:

2 comentários para "Como é ter uma filha. Criá-la. Amá-la. E ouvir os disparates do resto da humanidade"

  1. giovana saad disse:

    Parabéns pelo blog! Especialmente por esse texto! Tão raro um olhar tão claro (e dolorido) sobre como as crianças são tratadas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *