A lama da Samarco na Bahia também representa a “crise”

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Foto: Instituto Últimos Refúgios

Palavra “crise” também está em disputa; que modelo queremos para o planeta, para além da conjuntura econômica? Por que não se fala das crises inerentes ao sistema?

Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)

A palavra “crise” costuma ser enunciada de forma direcionada no Brasil. Como se apenas retrações econômicas devessem motivar a utilização do termo. As crises mais amplas do capitalismo – inerentes ao modo de produção – não costumam ser mencionadas. Como se coubesse somente a determinados governos prevenir ou não a “crise”. Os aspectos sociais são tomados de modo periférico – um indicador de desemprego aqui, outro ali. Os aspectos ambientais, nunca.

É como se não vivêssemos uma gigantesca crise ambiental, a exaurir os recursos naturais. A lama da Samarco/Vale/BHP (de mineradoras multinacionais, portanto) chega ao litoral baiano – como governo, empresas e certos pesquisadores garantiram que não chegaria – e tomamos como se fosse um acidente natural. Não como um resultado da… crise… do sistema. De um modelo que, para garantir o lucro de alguns (os primeiros a reclamar de crises econômicas sazonais), coloca em risco o próprio planeta.

A crise é relativa. Para o povo indígena Waimiri-Aitroari, “crise” será a instalação da linha de transmissão da Transnorte Energia sobre o território indígena. E para os pescadores e povos indígenas do Xingu? A usina de Belo Monte significa desenvolvimento ou crise? O Brasil acaba de começar a responder pelas violações de direitos humanos durante a construção da hidrelétrica, junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Quem ganha e quem perde com essa lógica desenvolvimentista?

De que crise estamos falando? A favor de quem, contra quem? “Crescimento”, para quem? “Desenvolvimento”, contra quem? Estamos ainda sob o signo do positivismo, da “ordem e progresso”, e a crise – essa crise apontada pelos jornais – seria apenas um desvio da rota para a retomada de um novo ciclo virtuoso, sem efeitos colaterais? O pagamento sistemático e religioso de taxas de juros não será nunca questionado, como se fosse o primeiro mandamento, irrevogável? Por que ele não motiva nunca a palavra “crise”?

crisis

Capa do álbum “Crisis? What Crisis?”, do Supertramp (1975)

Porque determinadas práticas de governos e empresas beneficiam, por definição, os setores dominantes. E não serão questionadas pela imprensa – defensora desses setores. Nossos heróis morreram de overdose e nossos inimigos estão no poder, cantava o Cazuza. “Hegemonia… eu quero uma pra viver”. Sim, claro que ele disse “ideologia”. Mas poderia ter falado em hegemonia também. O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos fala sobre hegemonia neste artigo sobre a crise da política e o futuro da esquerda. (Opa: “crise da política”?)

UM CERTO OLHAR SOBRE O TEMPO

Há também um problema de configuração temporal. Parece que estamos condicionados no Brasil a avaliar apenas o governo de plantão. Como se coubesse a ele – representado por um herói, ou uma heroína – a tarefa de conduzir um país inteiro, mantê-lo no prumo, a uma condição que não chamaríamos de crise. Só falta combinar com os russos o que seria isso. Uma pujança econômica, um crescimento de 10% ao ano, como se esse crescimento não trouxesse consequências negativas para ninguém, em um planeta finito?

Notem que esta não é uma defesa do governo Dilma Rousseff. Inepto do ponto de vista econômico e gerencial, ele consegue desagradar tanto a plutocracia quanto os movimentos sociais. De rentistas e especuladores (bom, estes nem tanto) até as vítimas do desemprego e das obras de infraestrutura feitas custe a quem custar. Só que quando se fala de “crise” se pensa apenas em retração econômica, inflação. Como se estivéssemos em uma competição entre Dilma, Lula, FHC – e não em um país e em um mundo que precisa ser debatido de forma mais ampla.

Não se fala em crise do desenvolvimentismo, crise do capitalismo, crises estruturais. Apenas das conjunturais. O viés eleitoral inequívoco parte do pressuposto de que poderia haver uma redenção pelos votos. Como se pudéssemos sempre voltar aos trilhos, para o caminho de um sistema perfeito. Sempre a cura, nunca a morte. Crise de 2008? Crises graves do modo de produção que ocorrem em ciclos (alguns dizem que de 70 em 70 anos), ou crises menores, conforme a gangorra própria desse sistema movido também a apostas feitas por grupelhos, e não por leis naturais?

A lama da Samarco – não à toa, naturalizada pela empresa e seus defensores – é a comprovação de que vivemos sob um modelo econômico estúpido; insano, predatório. As barragens são construídas de forma obsoleta, para maximizar o lucro dos acionistas, colocando as pessoas e o ambiente em risco. E não somente em Mariana. Lá, um povoado foi soterrado. A bacia do Rio Doce, poluída. Praias no Espírito Santo estão interditadas. E a troco de quê? O que os acionistas da Vale e da BHP poderiam dizer ao mundo sobre “crise”?

Não se trata do único caso. O economista Ladislau Dowbor, professor da PUC-SP, mostrou, no ano passado, que as montadoras de automóveis estão acumulando verdadeiros cemitérios de carros novos: Para conhecer os incríveis cemitérios de automóveis. Porque não há mercado – a retração econômica é mundial – e não vale a pena vender mais barato. É como se produtores jogassem tomate fora, porque não querem doar, ou queimassem pés de café – e qualquer semelhança com a crise de 1929 não será mera coincidência.

cemitérioautomóveis

Cemitério de automóveis em São Petesburgo, na Rússia (Fonte: Blog do Ladislau Dowbor)

Ou seja, a palavra “crise”, como tantas outras, também é uma palavra em disputa. Pode ser utilizada de modo oportunista, para levar o foco apenas para o que é conveniente. Com vistas a beneficiar somente quem já está por cima. E pode significar uma oportunidade de discutirmos para onde estamos indo, com quais recursos naturais, com que grau de enganação, espoliação, destruição e eventual benefício real para os trabalhadores e para o planeta. Com qual modo de produção, portanto. Com qual moral, qual crise ética.

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2 comentários para "A lama da Samarco na Bahia também representa a “crise”"

  1. perola disse:

    Que crise estamos falando….Muito bom.uma crise épica, que ou tomamos AD rédeas de nossa vida, assim por dizer, vida essa que já está nas mãos de pessoas sem escrúpulos, ética moral…Ou continuaremos vivendo de crise em crise como se fôssemos máquinas.

  2. perola disse:

    Que crise estamos falando….Muito bom.uma crise épica, que ou tomamos AD rédeas de nossa vida, assim por dizer, vida essa que já está nas mãos de pessoas sem escrúpulos, ética moral…Ou continuaremos vivendo de crise em crise como se fôssemos máquinas.

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