Os novos profetas da distopia

Musk, Bezos, Thiel e outros bilionários, já não são apenas habitués de Trump. Tornaram-se formuladores das ideias mais brutais de supremacismo e apartheid interplanetário. Vale conhecer o ambiente cultural que gerou tal protagonismo

Arte: Khoa Tran/Getty Images
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Por Evgeny Morozov, no Nuso | Tradução: Rôney Rodrigues

Pensemos nas heresias de Balaji Srinivasan e Peter Thiel, que, ao celebrarem o “Estado em rede” [1] e as cidades flutuantes no mar (seasteading) [2], conceberam uma doutrina de fuga para os aristocratas digitais. Enquanto Srinivasan imagina feudos de blockchain com cidadania sob demanda e forças policiais no modelo pay-per-view [3], Thiel almeja plataformas oceânicas onde os ricos possam flutuar além do alcance dos Estados, enquanto suas fantasias libertárias balançam como iates de luxo em águas internacionais [4]. Em outros âmbitos, a overdose solucionista do Vale do Silício inflou uma bolha de ideias que rivaliza com as financeiras: um mercado frívolo onde a cotização das grandes narrativas sobe mais rápido que as stock options.Assim, Sam Altman esboça despreocupadamente planos de ação planetários para a (não) regulação da inteligência artificial [5], e até para garantir o bem-estar da IA (“capitalismo para todos!” [6]), enquanto os criptoacólitos (Marc Andreessen, David Sacks) [7], os aspirantes a colonizadores celestiais (Elon Musk, Jeff Bezos) [8] e os revivalistas nucleares (Bill Gates, Bezos, Altman) oferecem suas próprias soluções ambiciosas e empolgantes para problemas de origem aparentemente desconhecida [9]. (Quem está consumindo toda essa energia que de repente precisamos com tanta urgência? Um verdadeiro mistério, sem dúvida).

Mas temas mais mundanos, da política externa à defesa, também são uma preocupação crescente para eles. Eric Schmidt – um homem cuja personalidade poderia ser confundida com um documento em branco do Google Docs – não só escreveu dois livros com Henry Kissinger, como também colabora regularmente com a Foreign Affairs e outras fábricas similares de dogmas e catastrofismo. E está em busca de temas importantes e substanciais, daqueles que exigem assentimentos solenes nos almoços dos think tanks. “A Ucrânia está perdendo a guerra contra os drones”, proclama um artigo seu de janeiro de 2024 [10]. Seria este – pura coincidência, certamente – o mesmo Eric Schmidt que, poucos meses antes, lançou uma empresa de drones?

Agora que as elites tecnológicas se juntaram ao banquete, a especulação sobre o futuro da guerra, que antes era domínio exclusivo de “intelectuais da defesa” que murmuravam nos corredores da Corporação RAND [11], tornou-se um entretenimento em horário nobre. Alex Karp, da Palantir, e Palmer Luckey, da Anduril – com fortunas combinadas que ultrapassam US$ 11 bilhões – fingem ser Davi rudimentares lutando contra os Golias perdulários do Pentágono. Inevitavelmente, Elon Musk, o Zelig do tecnocapitalismo, também tem opiniões firmes sobre o tema: nas guerras do futuro, que priorizam a destruição de infraestrutura – opinou em recente aparição em West Point –, “qualquer sistema de comunicação terrestre, como cabos de fibra óptica e torres de telefonia móvel, será destruído”[12]. Que coincidência que haja alguém que já comanda uma empresa de internet satelital para nos salvar!

Os “intelectuais específicos” de Michel Foucault, que ganhavam autoridade graças a seu domínio técnico especializado, parecem anacrônicos ao lado de alguém como Palmer Luckey, o menino-prodígio da realidade virtual reconvertido em contratado da Defesa. Depois de trocar o paletó de tweed por chinelos, bermuda cargo e uma camisa havaiana, ele se gaba em entrevistas, proclamando-se “um propagandista” disposto a “deturpar a verdade” [13]. Neste novo panteão, o sóbrio analista da era da Guerra Fria cede lugar a um novo arquétipo: espetacularmente rico, viciado em estrelato e ideologicamente descarado. Desqualificar esses fundadores de empresas e executivos como meros showmen – mais “oferta pública” que “intelectuais públicos” – seria um erro. Para começar, fabricam ideias com a eficiência de uma linha de montagem: seus posts em blogs, podcasts e Substack avançam com a sutileza de um trem de carga. E suas “polêmicas opiniões”, apesar da embalagem vulgar, costumam basear-se em diversas tradições filosóficas.

Portanto, o que parece junk food intelectual – nuggets ultraprocessados de pensamento fritos em capital de risco – muitas vezes esconde ingredientes saudáveis vindos de uma despensa gourmet bastante sofisticada. Não surpreende que o bilionário bibliófilo seja o novo fetiche do Vale do Silício, e que a estante de livros tenha suplantado o iate como principal barômetro de status [14]. Uma estante repleta de hits estranhos e improváveis: Albert O. Hirschman certamente se surpreenderia ao ver a poderosa análise de seu livro Exit, Voice and Loyalty sendo usada para construir Estados em rede, cidades privadas e colônias flutuantes [15].

Os devaneios de Thiel com Leo Strauss e René Girard, tão comentados, constituem apenas um ramo desta árvore genealógica filosófica. Outro ramo, mais robusto, corresponde a Karp, cuja tese doutoral sobre Adorno e Talcott Parsons funciona agora como base intelectual para o império de vigilância da Palantir. Suas comunicações com investidores vêm adornadas com citações eruditas; recentemente Samuel Huntington fez sua aparição nelas. No entanto, de alguma forma, a “Realpolitik para otimistas” de Karp parece decididamente antiadorniana. “A capacidade dos EUA de organizar a violência de maneira superior”, disse ele à Fox Business em março, “é a única razão pela qual o mundo melhorou nos últimos (…) 70 a 80 anos” [16].

A Escola de Frankfurt vai para oNasdaq, fazendo uma parada na CIA: onde Adorno e Horkheimer viram que a racionalidade do Iluminismo ocultava violência, Karp vê que a violência organizada revela os benefícios globais da hegemonia americana e uma oportunidade lucrativa de obter ganhos para ajudar a melhorar ainda mais sua organização (desta vez, com algoritmos, drones e IA!). A retórica militante de Karp expõe a impaciência do Vale do Silício com o pensamento divorciado da ação. Karl Marx certamente brindaria por sua guinada em direção à práxis: em vez de apenas “discutir o mundo”, eles têm a vontade, os meios e agora, aparentemente, “culhões” para mudá-lo [17].

A volta de Trump lhes concedeu canais diretos para a máquina federal: agora Andreessen brinca de coach de contratações, Thiel posiciona seus subordinados no governo e os aliados de Musk agem à vontade no Departamento de Eficiência Governamental (DOGE, em inglês) [18]. Sua estratégia? A mesma que demoliu “indústrias dinossauros”: perturbar primeiro, eliminar depois. Os vocabulários taxonômicos em que confiamos – com suas categorias impecáveis de “elites”, “oligarcas”, “intelectuais públicos” – mostram-se inadequados diante desta nova espécie. Os reis filósofos do Vale do Silício não são meros patrocinadores de outrora que financiavam think tanks ou organizações sem fins lucrativos, nem são plutocratas acidentais que rabiscam manifestos entre a compra de um iate e outro. Eles projetaram um híbrido mais agressivo: carteiras de investimento que funcionam como argumentos filosóficos, posições de mercado que operacionalizam convicções. E enquanto os bilionários da era industrial construíam fundações para imortalizar suas visões de mundo, esses personagens erguem fundos de investimento que também funcionam como fortalezas ideológicas. É a evolução hegeliana do capitalismo (tese) para o filantrocapitalismo (antítese) e para a guerra cultural como negócio (síntese).

Consideremos o campo de batalha do investimento ético, esse confessionário corporativo com a marca ESG (critérios ambientais, sociais e de governança, em português ASG), onde as duvidosas tentativas de Wall Street de medir virtude como um relatório trimestral de lucros tornaram-se um detonador da guerra cultural. Para os não iniciados, os critérios ESG representam o reconhecimento tardio por parte do mundo financeiro de que talvez poluir rios, explorar mão-de-obra e nomear conselhos diretores compostos exclusivamente por companheiros de golfe poderia eventualmente afetar os resultados. As empresas recebem pontuações ESG que supostamente medem seu compromisso ambiental, responsabilidade social e práticas de governança: uma espécie de rating de crédito moral para corporações ansiosas por demonstrar que evoluíram além de explorar a céu aberto tanto a natureza quanto a dignidade humana.

O peculiar – quase perversamente fascinante – é como as elites do Vale do Silício desdobraram sua artilharia neste campo de batalha, aparentemente tão distante de seus reinos digitais. O drama, que se desenvolveu em grande parte nos últimos anos, avançou como uma inevitabilidade mecânica: o desprezo de Musk (“uma fraude”) [19], a denúncia de Chamath Palihapitiya (“um completo golpe”) [20], os rituais fúnebres preparados por Andreessen (“ideia zumbi”) [21]. Mas esses homens transcendem a mera opinião. Quando a práxis chama, o Vale do Silício responde com investimento, não com mera filantropia. Pouco depois de comparar os critérios ESG com o comunismo chinês e rotulá-los de “cartel ideológico” [22], Thiel financiou a Strive Asset Management, um fundo de investimento anti-ESG. (Na época era dirigido por Vivek Ramaswamy, antigo subordinado de Musk no DOGE que baseou toda sua campanha presidencial em um único tema: atacar o “capitalismo woke” [23]).Andreessen, após apoiar um fundo de investimento pró-MAGA chamado New Founding, também ajudou a fundar a 1789 Capital, outro bastião anti-ESG hoje sustentado por Don Trump Jr. Sua genialidade? Transformar posicionamentos intelectuais em arbitragem de mercado, enquanto controlam (e muitas vezes possuem) megafones digitais para remodelar a própria realidade contra a qual apostam seus investimentos.

Será que a marca intelectual do Vale do Silício cavou sulcos mais profundos do que imaginávamos? Enquanto figuras como Andreessen fazem cosplay de intrépidos “Little Tech” [24], e se eles forem algo maior do que esta pantomima sugere? Uma hipótese paira sobre nós, espinhosa e inquietante: e se nossas elites tecnológicas multitarefa são as mesmas forças – astutas, poderosas, às vezes delirantes – que impulsionam a “transformação estrutural” da esfera pública que Jürgen Habermas diagnosticou em seus primeiros escritos? O jovem Habermas – antes que a teoria dos sistemas inflasse sua prosa e nuances diluíssem sua fúria – identificou o vilão com clareza meridiana: o declínio do debate crítico e aberto devia-se à influência corruptora do poder concentrado. Nunca palavras mais verdadeiras foram pronunciadas. E, no entanto… Ao atualizar sua análise de 1962 em 2023, Habermas, o acadêmico patrício, optou por fazer alarde sobre temas como “direcionamento algorítmico”, uma preocupação curiosa semelhante a ajustar molduras de fotos enquanto a casa afunda num buraco.

Hoje fica cada vez mais evidente que são os oligarcas tecnológicos – e não suas plataformas controladas por algoritmos – que representam o maior perigo. Seu arsenal combina três ferramentas letais: gravidade plutocrática (fortunas tão enormes que distorcem a física básica da realidade), autoridade oracular (suas visões tecnológicas tratadas como profecias inevitáveis) e soberania de plataformas (a propriedade das interseções digitais onde se desenvolve a conversa da sociedade). A tomada do Twitter (agora X) por Musk, os investimentos estratégicos de Andreessen no Substack, o cortejo de Peter Thiel no Rumble, o YouTube conservador: colonizaram tanto o meio quanto a mensagem, o sistema e o mundo vital.

Precisamos atualizar nossas taxonomias para dar conta dessa nova espécie de oligarcas intelectuais. Se o intelectual público de ontem se assemelhava a um meticuloso arqueólogo que escavava artefatos culturais com método para exibi-los em revistas literárias eruditas, o modelo atual é o especialista em demolições que planta explosivos ideológicos através de estruturas sociais inteiras e os detona a partir da distância segura proporcionada por suas contas offshore. Eles não escrevem sobre o futuro; eles o instalam, testando teorias em populações inconscientes no maior experimento não regulado da história. O que os distingue das elites abastadas do passado não é a avareza, mas a verborragia: uma produção torrencial que exauriria até mesmo Balzac. Enquanto os senhores da indústria financiavam think tanks para branquear interesses transformando-os em policy papers, nossos intelectuais oligarcas dispensaram o intermediário. Esqueçam os algoritmos: os intelectuais oligarcas dirigem a própria conversa, e o fazem com granadas de memes filosóficos. Lançadas às 3h da manhã no X, invariavelmente transformam-se em manchetes internacionais na hora do café da manhã.Onde deveríamos situar personagens como esses nos debates tradicionais sobre os intelectuais?

No final dos anos 1980, Zygmunt Bauman delineou dois arquétipos intelectuais: os “legisladores”, que desciam dos cumes das montanhas com os mandamentos da sociedade gravados em pedra, e os “intérpretes”, que se limitavam a traduzir entre dialetos culturais sem prescrever regras universais. Ele rastreou a erosão da atitude legislativa causada pela pós-modernidade. As grandes narrativas morreram. A autoridade universal definhou. Tudo o que restou foi interpretação. Nossos intelectuais oligarcas começam como intérpretes por excelência. Posicionam-se como médiuns tecnológicos, canais passivos para futuros inevitáveis. Seu dom especial? Interpretar as folhas de chá do determinismo tecnológico com perfeita clareza. Não prescrevem; simplesmente traduzem o evangelho da inevitabilidade. Isso cumpre a função “intelectual” de sua identidade de dupla hélice. Mas a cadeia de DNA oligárquico se enrola com mais força. Munidos de suas visões proféticas, exigem sacrifícios específicos: do público, do governo e de seus funcionários. Altman embarca em voos luxuosos entre capitais como um Kissinger tech, oferecendo tratados de paz para guerras de inteligência artificial que nem sequer começaram. Musk diagrama o destino cósmico da humanidade com a certeza de um plano quinquenal soviético. Thiel e Karp reformulam a estratégia de defesa, enquanto Andreessen reinventa o dinheiro e Srinivasan, a governança. Seu talento interpretativo se transforma, como um camaleão, em mandato legislativo.

No processo, os intelectuais oligarcas do Vale do Silício construíram os portais de uma catedral a partir do que os pós-modernos um dia reduziram a escombros: uma grande narrativa com a palavra “tecnologia” (mas também “disrupção”, “inovação”, “inteligência artificial geral”) inscrita em cada pedra e carregada com o peso da inevitabilidade. Folheiam volumes como What Technology Wants [O que a tecnologia quer], de Kevin Kelly, não como leitores, mas como editores, anotando suas próprias exigências entre as linhas. O magnata tecnológico, que antes se contentava em prever o futuro, agora exige que nos ajustemos a ele. A metamorfose atinge sua fase final não em manifestos nem em threads de tweets, mas na colonização dos salões do poder em Washington. Observem-nos deslizar da sala de reuniões para a Sala do Gabinete, com a suavidade do mercúrio e o impulso de seu propósito, após terem fundido magistralmente interpretação e legislação: primeiro profetizam as exigências da tecnologia, depois projetam políticas para satisfazer os deuses que eles mesmos inventaram.

Enquanto os soldados da Guerra Fria da RAND sussurravam nos corredores do Pentágono, nossos intelectuais oligarcas orquestram a sinfonia da realidade: controlando plataformas midiáticas, desdobrando capital de risco como em bombardeios de saturação e aperfeiçoando a estratégia de “inundar a zona” de Steve Bannon ao nível de uma ciência hidráulica [25]. Combinando poderes antes dispersos entre diversos âmbitos sociais, propõem futuros na segunda, financiam na terça e forçam sua materialização na sexta. E quem questiona os profetas cujas revelações anteriores deram origem ao PayPal, Tesla e ChatGPT? Seu direito divino de prever emana de sua comprovada divindade. Seus pronunciamentos enquadram a consolidação e expansão de suas próprias agendas não como interesses corporativos, mas como a única possibilidade de salvação do capitalismo.

O “Manifesto Tecno-Otimista” [26] – essa encíclica digital que exorta os EUA a “construir” em vez de lamentar – transborda de referências ao estagnação econômica e prescreve a audácia empresarial como único antídoto contra a esclerose sistêmica. Invocando Nietzsche e Marinetti [27], legisla a aceleração como virtude e condena o impulso cauteloso como heresia. “Acreditamos que não há problema material – entoa – que não possa ser resolvido com mais tecnologia”. Isso não é apenas uma declaração, é um catecismo para o futuro almejado. Thiel, em sua insistência permanente de que o Ocidente perdeu sua capacidade para inovação audaciosa, também evoca a imagem de um deserto tecnológico que o Vale do Silício deve irrigar. Enquanto isso, Altman executa uma dança de dois passos: primeiro declara que a IA devorará empregos e depois postula a renda básica universal como única solução lógica, não apenas com floreios retóricos, mas com dólares para pesquisa e com a Worldcoin, sua outra startup menos conhecida (afinal, por que não cobrar, talvez perpetuamente, em troca de permitir que Sam Altman escaneie sua íris?).

Estas não são apenas obviedades egoístas, mas imperativos existenciais: rejeitem suas propostas e veremos a civilização desmoronar. Esta autopromoção messiânica – oligarcas tecnológicos que se autoproclamam porta-vozes oficiais da humanidade – levaria Antonio Gramsci a pegar apressadamente seus Cadernos do Cárcere. O marxista italiano teorizou sobre os “intelectuais orgânicos” como vozes que emergem das classes ascendentes, especialmente o proletariado, e traduzem interesses particulares em imperativos universais na batalha pela hegemonia cultural. A conclusão amarga? O capital venceu a esquerda em seu próprio jogo: os intelectuais oligarcas agora funcionam como os intelectuais orgânicos não oficiais do capital, e o capitalismo aperfeiçoou em uma década o que os socialistas não conseguiram em um século. Entre a fria aritmética da busca por lucros e o teatro messiânico do salvamento da civilização estende-se a contradição mais reveladora dos intelectuais oligarcas: eles devem extinguir as mesmas chamas revolucionarias que seus impérios alimentaram.

Sua campanha obsessiva contra o wokeismo revela o reflexo mais antigo do poder: a contenção de suas próprias contradições. Observemos Musk denunciar o “vírus mental woke[28], ou Karp atacar o wokeismo acusando-o de ser “uma forma de religião pagã superficial” [29]. Enquanto isso, Andreessen retrata as universidades de elite como seminários marxistas que produzem “comunistas que odeiam os EUA” [30]. Joe Lonsdale, outro magnata tecnológico (e cofundador da Palantir), tem sido o impulsionador da Universidade de Austin, a universidade anti-woke que espera produzir em massa “capitalistas que amam os EUA”.

Rastrear as origens dessa ansiedade oligárquica exige revisar as previsões de Alvin Gouldner sobre a ascensão da “Nova Classe” no final dos anos 1970. Gouldner identificou uma “intelligentsia técnica” cujo DNA carregava em si mesmo um potencial revolucionário. Embora parecessem dóceis – “só querem desfrutar de suas obsessões opiáceas por quebra-cabeças técnicos” –, seu objetivo fundamental era “revolucionar permanentemente a tecnologia”, desestabilizando os alicerces culturais e a arquitetura social com sua recusa em adorar os deuses do passado. A aliança que Gouldner vislumbrou – engenheiros racionais unindo forças com intelectuais da cultura para desafiar o capital entrincheirado – constituía sua “Nova Classe”, uma força potencialmente revolucionária contida por seus próprios privilégios.

Como demonstraram as décadas posteriores, a utopia de Gouldner nunca se materializou completamente (embora reacionários como Steve Bannon e Curtis Yarvin, com sua noção conspiratória de “A Catedral”, possam discordar). Entretanto, o Vale do Silício surgiu como uma estranha exceção. Suas bases – se nem sempre seus generais – impregnaram-se de ideais contraculturais, defendendo diversidade e hierarquias achatadas.

Pesquisadores que exploram as trincheiras tecnológicas documentaram o surgimento de uma “subjetividade pós-neoliberal”, uma consciência alérgica à desigualdade e cada vez mais hostil à teologia empresarial que exigia entregar por completo a vida privada como oferenda no altar corporativo [31]. As evidências não são meramente anedóticas. Um estudo exaustivo [32] que rastreou doações a entidades políticas realizado em 2023 com 200 mil funcionários de 18 indústrias revelou que os trabalhadores de tecnologia destacavam-se particularmente por sua mentalidade anti-sistema, só superados em seu fervor liberal-progressista pelos boêmios da arte e do espetáculo. A fonte desse radicalismo reside precisamente naquilo em que Gouldner depositava sua fé: o que chamou de “cultura do discurso crítico” inerente ao próprio trabalho técnico [33].

Assim, os pesquisadores descobriram que funcionários não-técnicos das mesmas empresas de tecnologia não mostravam essa disposição rebelde, confirmando que é a programação em si, e não a mera proximidade com mesas de pingue-pongue, que contribui para sua mentalidade dissidente. O mais revelador desse estudo era o profundo abismo entre trabalhadores de tecnologia liberais e seus chefes de direita: um abismo maior do que em qualquer outra indústria. Esse abismo era uma bomba-relógio e explodiu no início do primeiro governo de Donald Trump.

Motivados por suas políticas desastrosamente executadas, porém agressivas – em relação a imigração, raça e guerra –, os funcionários do Vale do Silício transformaram-se de digitadores obedientes em dissidentes digitais. Impulsionados pelas redes sociais e pelas crescentes tensões raciais após o assassinato de George Floyd por policiais, os trabalhadores de tecnologia emergiram como um desafio inesperado. Os oligarcas viram-se emboscados por dentro: suas legiões de tendência progressista subitamente recusavam-se a emprestar sua arte técnica às máquinas de guerra do Pentágono [34] ou às diretivas de deportação do Serviço de Imigração e Controle de Alfândega (ICE) [35]. Essas revoltas – no Google, Microsoft e Amazon – ameaçaram não apenas contratos comerciais, mas o próprio pacto que unia o Vale do Silício ao complexo industrial-militar.

A segunda frente da rebelião – a consciência climática – surgiu com fervor evangélico quando funcionários da Amazon apresentaram seu manifesto verde, declarando-se capazes de “ampliar as fronteiras do possível” para a salvação do planeta [36]. Para os oligarcas, essa dupla rebelião contra o militarismo e a favor do ambientalismo – sem mencionar outras dores de cabeça, como os critérios ESG – representava um tumor maligno que precisava ser rapidamente extirpado.


Incapazes de reprogramar sua força de trabalho por meios diretos, os intelectuais oligarcas do Vale do Silício adotaram uma solução mais elegante: condenar a infiltração woke com a devoção de caçadores de bruxas medievais, enquanto escondiam a segurança nacional atrás da retórica do dever patriótico.

Karp, após coroar o wokeismo como “risco fundamental para a Palantir e os EUA”, agora exigia lealdade geopolítica de seus servos assalariados. Deviam apoiar Israel e opor-se à China [37]; quem discordasse tinha liberdade para procurar emprego em outro lugar. Como disse a sua plateia em Davos em 2023, “queremos [funcionários] que desejem estar do lado do Ocidente. Podem discordar disso, benditos sejam, mas não trabalhem aqui” [38]. Recentemente, Andreessen chegou a confessar ao Times que não era raro suspeitar que alguns funcionários ingressavam em empresas de tecnologia com o objetivo explícito de destruí-las por dentro [39].

A estratégia por trás de todas essas declarações é brutalmente simples: realinhar a intelligentsia tecnológica com o poder do velho dinheiro, purgando suas fileiras de pensamento subversivo. O sonho de Gouldner de uma aliança técnico-cultural está fraturado, destroçado por telegramas de demissão, zombarias contra a consciência social como fraqueza e pela paranoia patriotária sobre a competição chinesa.

Os intelectuais oligarcas emergiram como uma entidade social estável e coerente, como subproduto dessa batalha pela hegemonia. E certamente não recuarão, nem mesmo após esmagarem seus inimigos woke e defensores dos critérios ESG. Chegam à Washington de Trump não como convidados, mas como arquitetos.

Sua máquina de distorção da realidade – a hidráulica do dinheiro, o domínio das plataformas, as burocracias que se ajoelham para transformar fantasias privadas em políticas públicas – exerce uma força sem precedentes. Carnegie e Rockefeller inspiravam respeito, mas careciam deste arsenal letal: o megafone das redes sociais, a aura de celebridade, a motosserra do capital de risco, a chave mestra da Ala Oeste da Casa Branca. Ao reescrever regulamentos, canalizar subsídios e recalibrar expectativas públicas, os intelectuais oligarcas transmutam sonhos febris – feudos de blockchain, propriedades em Marte – em futuros aparentemente plausíveis.

Felizmente, o que parece a fortaleza monolítica do poder tecno-oligárquico esconde falhas estruturais invisíveis para observadores devotos.Sua aparente capacidade de distorcer a realidade à vontade acaba por enfraquecer-se a si mesma, paradoxalmente, ao construir câmaras de eco que asfixiam o essencial espírito crítico, enquanto celebram a liberdade de expressão. Divorciados do toque cáustico dos fatos sem adornos, esses pontífices do Vale do Silício perdem seus instrumentos de navegação. E numa paisagem já saturada de culto aos fundadores, o contato com a verdade sem filtros torna-se cada vez mais escasso. (Não contem com hagiógrafos da corte como Walter Isaacson [40] para dizê-la!). Essa é uma das muitas formas em que a política não se parece em nada com os negócios.

O capitalismo de risco padrão ainda enfrenta o frio veredicto do mercado. Os investidores de capital de risco que coroaram a WeWork como o futuro do trabalho viram como as realidades da pandemia estouraram sua bolha. O mercado, por mais defeituoso que seja, costuma testar as hipóteses de investimento. Mas o poder oligárquico oferece uma tentação ainda mais sombria: por que ajustar as previsões para que coincidam com a realidade quando se pode manipular a realidade para validá-las?

Quando a Andreessen Horowitz decreta que as criptomoedas são as sucessoras inevitáveis dos bancos, o próximo passo não é a adaptação, mas a ativação: mobilizar influências no governo Trump para transformar a profecia em política. A colisão entre as fantasias de capital de risco e os fatos obstinados torna-se evitável quando se controlam os mecanismos para reconfigurar os próprios fatos. Essa é, portanto, a tática final: os intelectuais oligarcas reconfigurando a legislação, as instituições e as expectativas culturais até que a profecia e a realidade se fundam numa única alucinação (cortesia do ChatGPT, é claro).

A realidade, no entanto, mantém seus limiares críticos, uma lição que os burocratas soviéticos aprenderam quando suas ficções cuidadosamente construídas colidiram com as limitações materiais. El Partido Comunista chino, más astuto en sus métodos, construyó sistemas de recopilación de reclamos de varios niveles – foros digitales, funcionarios locales, ONG autorizadas – que proporcionan inteligencia crucial sobre potenciales disturbios. Os intelectuais oligarcas demonstram precisamente o instinto oposto: estão seguindo o caminho soviético.

O aparato DOGE de Musk buscou transformar os funcionários remanescentes em manequins que acenam com a cabeça, enquanto sua corte caça dissidentes em plataformas digitais com eficiência algoritmica. Ao optar por negar a realidade ao estilo soviético em vez de monitorá-la ao estilo chinês, criaram câmaras de eco que, em última análise, acabarão rachando seus projetos grandiosos. A ironia é profunda: esses homens que veem comunistas espreitando por toda parte estão prestes a aperfeiçoar o pecado capital da tecnocracia soviética, confundindo seus modelos elegantes com a realidade indomável que pretendem domesticar. Não deveria nos surpreender muito: quando os intelectuais oligarcas se apoderam do aparato mais poderoso da história, transformam-se, inevitavelmente, em apparatchiks – só que desta vez passando suas férias nas barracas improvisadas do Burning Man [41] em vez dos sanatórios luxuosos da Crimeia. Elon Musk pode ter começado como um Henry Ford, mas terminará como um Leonid Brejnev.


Referências:

[1] Ver B. Srinivasan: The Network State, disponible en https://thenetworkstate.com/. 2.

[2] Joe Quirk y Patri Friedman: La colonización del mar, Innisfree, Londres, 2017. 3.

[3] Gil Durán: «The Tech Baron Seeking to Purge San Francisco of ‘Blues’» en The New Republic, 26/4/2024.

[4] J. Quirk: «Peter Thiel Speaks for 6 Minutes about Seasteading» en The Seasteding Institute, 25/9/2018, disponible en www.seasteading.org/peter-thiel-speaks-about-seasteading/.

[5]Pranav Dixit: «‘AI Will Impact Geopolitical Balance’: Sam Altman Pitches iaea-Like Body for ai Regulation on Bill Gates’ Podcast» en Business Today, 12/1/2024; «Openai ceo Says Possible to Get Regulation Wrong, but Should not Fear It» en Reuters, 25/9/2023.

[6] S. Altman: «Moore’s Law for Everything» en moores.samaltman.com, 16/3/2021.

[7] Erin Griffith y David Yaffe-Bellany: «How Crypto Insiders Turned ‘Debanking’ Into a Political Storm» en The New York Times, 10/12/2024.

[8] Thomas Moore: «World’s Richest Men Elon Musk and Jeff Bezos Heading for Space Showdown» en Sky News, 17/1/2025. 9.

[9] Keith Speights: «Billionaires Bill Gates, Jeff Bezos, and Sam Altman Are Investing in Nuclear Energy Hand Over Fist. Should You?» en Nasdaq, 11/11/2024.

[10] E. Schmidt: «Ukraine Is Losing the Drone War» en Foreign Affairs, 22/1/2024.

[11] Organização criada em 1948 pela Douglas Aircraft Company para fornecer serviços de pesquisa e análise às Forças Armadas dos EUA].

[12] «Inside West Point: The Future of Technology in Warfare with Mr. Elon Musk» en canal de YouTube de West Point, 5/2/2025, disponible en www.youtube.com/watch?v=uitr09tdmxm.

[13] Elke Schwarz: «The Silicon Valley Venture Capitalists Who Want to ‘Move Fast and Break Things’ in the Defense Industry» en The Conversation, 16/1/2025.

[14] Henry Farrell: «Silicon Valley’s Reading List Reveals Its Political Ambitions» en Bloomberg, 21/2/2025.

[15] A. O. Hirschman: Salida, voz y lealtad. Respuestas al deterioro de empresas, organizaciones y Estados, FCE, Ciudad de México, 1977.

[16] Video disponible en Conservative War Machine: tuit, 13/3/2025, https://x.com/warmachinerr/status/1900301843496055202.

[17] Raphael Sätter: «Exclusive: doge Staffer ‘Big Balls’ Provided Tech Support to Cybercrime Ring, Records Show» en Reuters, 26/3/2025. 18.

[18] Este artículo fue escrito antes de la sonada salida de Musk del gobierno [n. del e.].

[19] Eloise Barry: «Why Tesla ceo Elon Musk Is Calling esg a ‘Scam’» en Time, 25/5/202.

[21] «ESG Investing Is ‘A Complete Fraud’, Says Venture Capitalist Chamath Palihapitiya» en CNBC, 26/2/2020, disponible en www.cnbc.com/video/2020/02/26/chamath-palihapitiya-esg-investing-complete-fraud.html. 21.

[22] Melia Russell: «Melia Marc Andreessen Is Getting Raked Over the Coals for Calling Social Responsibility the ‘Enemy’» en Business Insider, 17/10/2023. 22.

[23] «Peter Thiel Eviscerates the esg Movement», video en Balaji Srinivasan Clips, 22/10/2022, disponible en www.youtube.com/watch?v=_8pesai3nh4. 23.

[24] Ver Hannah Levontova: «How ‘Woke Capitalism’ Became a Right-Wing Obsession» en Mother Jones, 1/2-2024. Ramaswamy concorreu à presidência nas eleições de 2024, mas desistiu em janeiro de 2024, após terminar em quarto lugar nas primárias de Iowa

[25] M. Andreessen y Ben Horowitz: «The Little Tech Agenda», 5/7/2024, disponible en https://a16z.com/the-little-tech-agenda/. 25.

[26] Luke Broadwater: «Trump’s ‘Flood the Zone’ Strategy Leaves Opponents Gasping in Outrage» en The New York Times, 28/6/2025. 26.

[27] M. Andreessen: «The Techno-Optimist Manifesto», 16/10/2023, disponible en https://a16z.com/the-techno-optimist-manifesto/. 27.

[28] Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944) foi o motor do movimento futurista, a primeira vanguarda italiana do Novecento, que serviu de base para o fascismo

[29] Anthony Robledo: «Musk Says Estranged Child’s Gender-Affirming Care Sparked Fight against ‘Woke Mind Virus’» en USA Today, 22/7/2024. 29.

[30]Ben Werdmuller: «Palantir’s Earnings Call Rhetoric Is Terrifying» en WERDI/O, 8/5/2024. 30.

[31] Ross Douthat: «How Democrats Drove Silicon Valley Into Trump’s Arms» en The New York Times, 17/1/2025. 31.

[32] Robert Dorschel: «A New Middle-Class Fraction with a Distinct Subjectivity: Tech Workers and the Transformation of the Entrepreneurial Self» en The Sociological Review vol. 70 No 6, 2022. 32.

[33] Niels Selling y Pontus Strimling: «Liberal and Anti-Establishment: An Exploration of the Political Ideologies of American Tech Workers» en The Sociological Review vol. 71 No 6, 11/2023. 33.

[34] «Alvin Gouldner on the New Class & the Culture of Critical Discourse», disponible en www.autodidactproject.org/other/gouldner2.html. 34.

[35] Daisuke Wakabayashi y Scott Shane: «Google Will Not Renew Pentagon Contract That Upset Employees» en The New York Times, 1/6/2018. 35.

[36] Sheera Frenkel: «Microsoft Employees Protest Work With ice, as Tech Industry Mobilizes Over Immigration» en The New York Times, 19/6/2018. 36.

[37] James F. Peltz: «Jeff Bezos Expanded Amazon’s Climate Change Pledge. His Workers Want More» en Los Angeles Times, 20/9/2019. 37.

[38] Alexander C. Karp y Nicholas W. Zamiska: «Why Silicon Valley Lost Its Patriotism» en The Atlantic, 12/2/2025. 38.

[39] Ryan Browne: «Palantir ceo Tells Tech Workers Who Don’t Like the Company’s Military Deals, ‘Don’t Work Here’» en CNBC, 18/1/2023. 39.

[40] R. Douthat: ob. cit. 40.

[41] Foi presidente e CEO da CNN e editor-chefe da revista Time. Também ocupou cargos públicos. Escreveu biografias autorizadas de Steve Jobs e Elon Musk, entre outros livros.

[42] Um festival anual realizado na “cidade” de Black Rock, Nevada, com duração limitada ao evento. O encontro se baseia em dez princípios: inclusão radical, doações, desmercantilização, autoexpressão radical, autossuficiência radical, esforço comunitário, responsabilidade cívica, imediatismo, participação e não deixar rastros.

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