O direito a não desperdiçar a vida
A luta por dignidade exige novas pautas. Exercer ocupação relevante. Não sofrer a captura da atenção, nas redes sociais. Não perder horas num transporte precário. Não deixar que nossa existência breve seja consumida por sistema em frangalhos
Publicado 23/05/2025 às 22:29 - Atualizado 23/05/2025 às 22:31

Por Ladislau Dowbor | Tradução: Antonio Martins1 | Imagem: Pablo Picasso
Observando com honestidade, o ser humano
não precisa de muito para viver
Olga Tokarczuk2
O problema econômico não é — se olharmos para o futuro —
o problema permanente da humanidade
John Maynard Keynes, 19303
Esta é a vida agora: um fluxo constante e interminável
de desconexões e lixo autorreferencial
que passa por nossos olhos e sai de nossos cérebros
na velocidade de uma tela sensível ao toque
Tim Wu, citando Mark Manson
Afinal, não é tanto tempo assim. Se você viver até os 90 anos, serão cerca de 33 mil dias — e como eles escorrem rápido! Mas é o capital de vida com o qual você nasce, e você deve aproveitá-lo ao máximo. É nosso bem mais precioso, o tempo de nossas vidas, nosso ativo básico. Na maioria das vezes, estamos ocupados demais para pensar nisso. Mas não se preocupe, outros estão cuidando dele. Era para ser a nossa vida…
Há quase um século, John Maynard Keynes, teve uma visão clara da estrutura de tempo para seus netos: se fôssemos sábios o bastante, graças ao progresso técnico, 15 horas de trabalho por semana seriam suficientes para garantir o necessário. Embora o trecho tenha sido muito citado, permito-me o prazer de repetir suas ideias:
“O amor ao dinheiro como posse — em contraste com o amor ao dinheiro como meio para os prazeres e realidades da vida — será reconhecido pelo que é: uma morbidez repugnante, uma daquelas propensões semicriminosas, semipatológicas, que se entregam com um calafrio aos especialistas em doenças mentais”.
O progresso técnico acelerou-se muito além do que ele imaginava, mas estamos estagnados. O que produzimos é amplamente suficiente para garantir a todos uma vida confortável e próspera. Na Índia, trabalha-se 56 horas; no Brasil, 39; nos EUA, 38; na França, Itália e Espanha, 35; e na Holanda, 294. Essa recente redução de jornada limita-se basicamente à Europa Ocidental, e o progresso é lento. Em países como a Índia, o número é chocante, e no Brasil, subestima horas extras e segundos empregos. Será que precisamos disso?
Dizer que é necessário produzir os bens e serviços de que precisamos, condição básica para a expansão do PIB, é um absurdo. No exemplo brasileiro, para uma população adulta de cerca de 140 milhões, há apenas 45 milhões de empregos formais privados e 13 milhões públicos, totalizando 58 milhões. Mas há 40 milhões no setor informal, com metade da renda do setor formal e baixa produtividade. Somam-se sete milhões de desempregados e seis milhões que desistiram de procurar emprego, chegando a mais de 40 milhões de capacidade laboral subutilizada. Assim, parte da população é sobrecarregada, e outra, subempregada. Em outros países, especialmente na África, os números são piores: na Argélia, o setor informal chega a 70% da força de trabalho.
Por que temos uma organização tão estúpida e ineficiente das atividades produtivas? Basicamente, dependemos do neoliberalismo e esperamos que ‘os mercados’ e sua mão invisível resolvam o problema. E se usarmos políticas públicas para gerar atividades úteis, enfrentamos protestos do mundo corporativo, como se lhes tirássemos o ‘direito’ ao monopólio das atividades econômicas. É pura estupidez, mas em expansão. Bem-vindos ao trumpismo e ao oligopólio dos metidos da tecnologia. Hora de voltar à realidade — e viajar para Marte definitivamente não é a solução. Não é sonho: a discussão francesa travailler moins pour travailler tous [trabalhar menos para que todos trabalhem] mostra que o planejamento racional da distribuição de atividades produtivas está ao nosso alcance.
A Lei de Garantia de Emprego da Índia, que assegura 100 dias de trabalho remunerado por ano a cada adulto — inicialmente uma medida rural, depois ampliada —, está gerando mais crescimento e melhor distribuição das atividades econômicas. A China garante que cada administração local tenha uma equipe para identificar oportunidades de inclusão produtiva no território, indo muito além do Bolsa Família no Brasil (que é basicamente transferência de renda, essencial, mas insuficiente). E não esqueçamos o trabalho gratuito das mulheres, cuidando de lares, crianças e idosos: uma contribuição equivalente a 9% do PIB mundial se fosse remunerada com salários médios. Precisamos mesmo revolucionar toda a estrutura — e esperar pela mão invisível é infantil.
Por onde começar? Certamente reduzindo a jornada formal e criando iniciativas públicas. É absurdo haver, em cada localidade, tantas tarefas úteis a fazer e tantas mãos ociosas. E, claro, avançar em renda básica universal, para que os pobres não precisem aceitar trabalhos precários: isso elevará o patamar geral, reduzirá desigualdades e impulsionará mudanças úteis. Mais pessoas contribuindo para atividades úteis e mais tempo para todos.
Mas uma nova série de desafios na organização do nosso tempo — ressaltando que é o ativo central de nossas vidas — está na manipulação e apropriação dele pela chamada indústria da atenção5. Segundo Tim Wu, “se o comércio da atenção antes envolvia operações primitivas e individuais, hoje o jogo de capturar a atenção humana e revendê-la a anunciantes tornou-se um pilar de nossa economia. O modo como gastamos os recursos brutalmente limitados de nossa atenção determinará nossas vidas de um modo sobre o qual a maioria prefere não refletir. Corremos o risco, sem perceber de forma plena, de viver vidas menos nossas do que imaginamos.
O tema vai muito além de devorar nosso tempo de atenção. “Um desenvolvedor escreveu que a publicidade online e o rastreamento comportamental estão fora de controle: são assustadoramente invasivos, inchados, irritantes, inseguros e pioram em ritmo alarmante. Neste século, o recurso mais vital a ser conservado e protegido será nossa própria consciência e espaço mental.
É importante lembrar que essa é uma indústria lucrativa: 98% das fortunas gigantescas do Facebook e outros produtos da Meta vêm do marketing. Cada centavo disso está embutido nos preços que pagamos por produtos e serviços, já que a publicidade integra seus custos. Produtos da Johnson & Johnson, por exemplo, têm 27% de custos com publicidade. Como mostram Maggie Berg e Barbara Seeber, após uma interrupção, o cérebro leva em média 15 minutos para se reconcentrar — e isso é extremamente cansativo6.
Como o poder de negociação está concentrado em poucas plataformas, elas ditam os preços. O Google foi levado à Justiça: “A ação alega que a empresa usa seu domínio para cobrar a mais de anunciantes, ficando com pelo menos 30 centavos de cada dólar que deveria ir aos sites veiculadores. Isso permitiu à empresa ganhar dezenas de bilhões de dólares a cada ano a partir de sua tecnologia de anúncios, e obter daí o grosso de sua receita total7. Jonathan Haidt nos trouxe uma análise crucial sobre como essa invasão do nosso tempo de atenção afeta crianças e adolescentes, particularmente com smartphones, com o tempo de atenção diária variando de cinco a oito horas, e frequentemente mais. As crianças são fisgadas, e manipuladas para ampliar ao máximo seu engajamento8.
Os impactos são chocantes. Os casos de depressão severa em adolescentes, entre 2010 e 2020, aumentaram 145% entre meninas e 161% entre meninos. O crescimento foi similar em ambos os sexos – cerca de 150% — e foi observado em todas as etnias e classes sociais. Isso também afeta universitários. “Em um estudo de 2023 com estudantes norte-americanos, 37% dos entrevistados relataram sentir ansiedade ‘sempre’ ou ‘na maior parte do tempo’, enquanto outros 31% disseram se sentir assim ‘cerca de metade do tempo’. Isso significa que apenas um terço dos universitários afirmou sentir ansiedade menos da metade do tempo ou nunca.” Haidt se refere ao “atual tsunami de ansiedade e depressão.9
O livro de Maggie Berg e Barbara Seeber mencionado antes trata exatamente de retomar o controle sobre o tempo, o tempo de nossas vidas. A maioria de nós – e eu vivencio isso diretamente como professor universitário – é empurrada para uma busca frenética de como gerenciar agendas conflitantes, além da exaustiva fragmentação da atenção quando deveríamos estar relaxados e criativos. E ainda temos que lidar com invasões permanentes de interesses comerciais, alguns deles piscando propositalmente para dificultar minha concentração no texto que estou lendo. Segundo os magnatas da mídia, isso é liberdade. Para eles, obviamente – e com nosso dinheiro. Se preciso de algo, busco informações, não marketing. E não preciso de marketing para coisas de que não preciso.
Há outras dimensões, é claro. Na periferia de São Paulo, os moradores passam de quatro a seis horas no transporte. No total, ficam de 14 a 15 horas longe de casa, todos os dias. Precisam morar onde é barato, o que geralmente significa distante do trabalho. Acordam às cinco para estar no trabalho às oito, voltam para casa tarde da noite e adormecem no sofá, vendo porcarias na TV ou no celular. Então são cinco da manhã, novamente. Vida familiar? Cultura? Lazer? O casamento médio no Brasil dura 14 anos.
Voltemos ao ponto central: nossos desafios não são econômicos no sentido de correr mais e produzir mais, mas de organização social e política. Nenhum “mercado livre”, mão invisível ou discurso neoliberal nos levará a lugar algum. Estamos chegando a um ponto em que precisamos nos organizar em torno das questões essenciais. Uma sociedade pensada a partir do bem-estar familiar, da redução das desigualdades, da menor destruição do nosso meio ambiente e de um processo decisório centrado nessas questões. Chamavam isso de gestão por resultados, mas no fundo só pensavam no dinheiro.
Sou professor. É fácil imaginar que não ganho uma fortuna. Mas o que tenho é suficiente, e uma vida mais próspera para mim não significa mais dinheiro, e sim mais tempo, porque uma vez atendidas as necessidades materiais básicas, a felicidade está em ter tempo para desfrutar da família, dos amigos e de um bom livro. Os bilionários? Eles se acostumaram a tomar nosso dinheiro, tomaram nosso tempo e se infiltraram em nossos cérebros, em nossa atenção consciente, incluindo a de nossas crianças. Ainda assim, questão do tempo é tão essencial quanto o acesso ao bem-estar material básico. Podemos ter ambos
1Publicado originalmente na revista inglesa Meer
2Olga Tokarczuk – “Os Livros de Jacó” (romance) – Editora Riverhead, 2023 – (Prêmio Nobel de Literatura 2018). Citação da página 108 da edição original polonesa, Ksiegi Jakubowe.
3John Maynard Keynes – “As Possibilidades Econômicas para os Nossos Netos” – (1930).
4Kayla Zhu – “Países com as Maiores Jornadas de Trabalho” – Visual Capitalist, 12 dez. 2024. (Data ajustada para padrão brasileiro)
5Tim Wu – “Os Mercadores de Atenção: A corrida épica para entrar em nossas mentes” – Alfred A. Knopf, Nova York, 2016.
6 Maggie Berg e Barbara Seeber – “Professor sem Pressa” – Editora Matrix, São Paulo, 2024.
7 The Guardian, 4 set. 2024 – “Processo antitruste contra o Google nos EUA”.
8 Visual Capitalist – “Uso de Redes Sociais por Adolescentes”.
9 Jonathan Haidt – “A Geração Ansiosa” – Companhia das Letras, São Paulo, 2024. (Mantido o título da edição brasileira)
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