A era da ciberguerra neoliberal
As sociedades de mercado do século XX criaram o Cidadão Kane, magnata das comunicações liberais, que fabricava consensos para dominar. O capitalismo tardio concebeu Elon Musk, barão da plataforma de contrainformação, para destruir as possibilidades de democracia
Publicado 10/03/2025 às 19:22

Há uma operação de guerra no cotidiano que, por seu domínio virtual, está distante do radar político da sociedade civil. Ela é imperceptível, porque ocupa o hiper-real. Trata-se de hiperguerra, isto é, de guerra no estágio tardio do capitalismo. Diferentemente das guerras de outros tempos, o sangue que jorra da lama das batalhas é o da desinformação total. No cibermundo das redes, o terror é psicológico. Hoje, a desinformação é a guerra por outros meios. Além de tudo, a máquina de guerra virtual configura-se na indistinção do inimigo. Ele é civil ou militar? Todavia, pouco importa, visto que são corpos de guerra completamente militarizados. Importante registrar de pronto, a história das guerras é um importante campo hermenêutico para compreender a lógica da produção material e imaterial das sociedades em conflito. A hiperguerra é a guerra que progride no terreno das infovias, em tempos de Capitalismo de Plataforma. Em outras palavras, momento no qual o neoliberalismo alcança o topo da incivilização moderna. Sem dúvida, ele é o modo de destruição que nos arrasta à barbárie. Basta olhar e ver, com os olhos bem abertos, a fim de consignar que o conteúdo das fake news que inflaciona as redes sociais, além da mensagem tola, traduz interesse material. Dito brevemente, revela interesse econômico, que agencia as massas ao fenômeno pânico para ampliar o lucro capitalista. São, verdadeiramente, ciberbombas de contrainformação a serviço da reprodução do capital. A reação contrária dos Barões das Big Techs à regulamentação das plataformas digitais é emblemática, posto que “regulamentar” significa não mais que obstruir o fluxo de informações falsas com o intuito de defender a sociedade democrática. Ao lado da extrema-direita, cibersoldados da desinformação, os super-ricos são parte desse exército virtual, que faz a hiperguerra ordinariamente e, portanto, é impossível tangenciar que se trata de guerra contra a democracia e a sociedade civil. A velocidade das chamadas revoluções coloridas, que chegaram ao Brasil em 2013, e o consequente avanço da extrema-direita ocidental é parte dessa guerra operada nas vias informacionais, que agenciam a emoção pública com o propósito de instaurar a política do pior, que, objetivamente, representa a ampliação total do terror neoliberal e o empobrecimento da sociedade civil. Por exemplo, os personagens públicos bizarros – Trump e Bolsonaro – são máquinas da hiperguerra cotidiana, rebentos de contaminação da política por fake news. Eles são o produto direto da continuada explosão das bombas virais de contrainformação, que acionam, repetidas vezes, a personalidade autoritária que dorme profundamente no esgoto da modernidade.
Pesquisadores militares dos Estados Unidos subscrevem o conceito de guerra em rede – netwar – para qualificar o cenário de emergência dos conflitos beligerantes na chamada “comunidade virtual”. É a previsão do progresso beligerante no ciberespaço. Também, da crescente militarização da internet. Trata-se de um conflito que se encaixa na guerra de informação. Embora muito mais difusa. É uma guerra de baixa intensidade, que progride no interior das novas tecnologias informacionais de comunicação, que estão disponíveis no mercado. E é nas infovias do ciberespaço que se ergue o teatro de guerra. Em realidade, a hiperguerra registra uma mutação de guerra de informação, pois a verdade factual é sua baixa essencial. Ela é, regularmente, contrainformação. Não é guerra de narrativas com base no acontecimento factual, ou mesmo, combate de informações com o objetivo de formar consciência nova. Digo instrutivamente, não é o que grosseiramente se nomeava na Guerra Fria de “lavagem cerebral”, limpar a consciência da população civil, mas algo ainda pior, pois o objetivo é o de criar um simulacro de consciência ou de opinião pública. Em poucas palavras, produzir uma “consciência falsa” com o objetivo de agenciar a emoção pública para agir contra si e contra todos. É o fenômeno pânico apresentado quantitativamente por meio de milhões de compartilhamentos, visualizações e até mesmo expresso como “pesquisa de opinião”. É uma guerra estrategicamente concebida para destruir qualquer possibilidade de consciência coletiva. A hiperguerra que arrola no cotidiano expõe um mundo virtual, no qual não há fatos universais nem mesmo interpretações conscientes. É o espaço-tempo de agenciamento total e imediato da emoção pública. Não é o mundo moderno do fato único e das infinitas interpretações. Ele é o cibermundo da mutação da liberdade de expressão, que gerou o monstro da tirania da emoção. Nessa contextura obscena, a emoção é o fato e as interpretações tão estúpidas quanto infinitas.
A hiperguerra que solapa a democracia nas cidades de concreto e aço atua essencialmente no processo de subjetivação contemporâneo, melhor dizendo, no modo de produção dos sujeitos. São combates com o propósito de cativar a emoção pública. Todavia, a máquina de guerra gera seus próprios “war baby”. Ela forma seus guerreiros. O soldado-operário das guerras totais foi uma criação da máquina de guerra do capitalismo industrial avançado, do mesmo modo que o cibersoldado da hiperguerra tem como demiurgo o capitalismo tardio neoliberal das Big Techs. A guerra é sempre uma expressão de estágio civilizatório e de barbarização da condição humana. Por certo, quando destacamos o extremismo de direita, como agente direto da guerra em rede, também inferimos a posição socioeconômica desses combatentes do ódio. Ele é o filho da degradação do bem-estar social. A hiperguerra opera por meio de contrainformação, aciona bombas virais contra uma população civil de imaginário empobrecido, em profundo mal-estar socioeconômico. O alvo de agenciamento está concentrado na classe média massificada. Ela vivencia, diante do crescente avanço neoliberal, a erosão socioeconômica de seu mundo. Não é tudo. Como parte considerável da burocracia estatal das democracias modernas é composta por estrato de classe média, o enfraquecimento das instituições, em face da flexibilização da vida social, produziu o terreno favorável ao êxito das guerras em rede, conduzidas, em larga medida, por agentes públicos. Logo, há crescente ruptura de compromisso molecular dos indivíduos com as instituições das quais fazem parte. A exclusão recente, pelo serviço de informação americano, de parte da guarda de proteção ao Capitólio nos Estados Unidos, em janeiro de 2021, por suspeita de integrar grupos de ciberfascismo, é exemplo ilustrativo de que há impacto importante da guerra em rede sobre agentes públicos, principalmente da área de segurança. O mesmo acontecimento é possível identificar no dia oito de janeiro de 2023 em Brasília, uma massa tresloucada, essencialmente branca de classe média – muitos funcionários públicos – guiados pelo ódio disseminado nas infovias e pela distopia da completa militarização da política. Após investigação e apresentação das imagens – self e live dos próprios autores do terror – demonstrou-se evidente o papel fundamental dos funcionários da segurança pública para o “sucesso da ação” antidemocrática.
A contrainformação que inflaciona as redes sociais, ao contrário do imaginado pelo jornalismo comercial, não compõe qualquer manifestação de opinião política paralela. Ela contrapõe-se à informação produzida pelas instituições, uma vez que a fake news escapa ao diálogo e à dialética. A informação institucional guarda, efetivamente, nexo com o mundo real. Há no mínimo alguma relação com o verdadeiro. Distintamente, a contrainformação é o falso, a falsa mensagem que objetiva desinformar para conquistar. Na guerra, a verdade é a primeira vítima. É necessário, sobretudo, eliminar o verdadeiro com a finalidade de obter as condições favoráveis para exterminar, conquistar e subjugar os corpos. Nessa perspectiva, sustentamos que o conceito de verdade, aqui exposto, está imbricado ao contexto de hiperguerra, portanto diz respeito às bases deontológicas que devem sustentar o discurso no interior da democracia com o propósito de proteger a sociedade da barbárie. Evidentemente, o que ocorre nas redes informacionais não compõe a base moderna da liberdade de opinião, de luta política e epistemológica à composição da verdade, pois corresponde à hedionda ofensiva do falso que corrompe a vida democrática no interior das cidades.
Por fim, a circulação de fake news não se limita à disseminação de informação falsa, dado que a intenção é belicosa. Ela atua como movimento estratégico de contrainformação para cativar sujeitos que estão inseridos no terror neoliberal nas sociedades hiperindividualizadas, formando um enorme exército de cibersoldados do caos com a intenção de executar ações antidemocráticas de toda ordem. Assim, ergue-se uma comunidade de cibercombatentes de extrema-direita, que interfere nas emoções, sentimentos, desejos e impulsos subjetivos das massas de classe média. A banalização, cada vez mais extensiva, do acesso às vias informacionais no ciberespaço multiplica a inércia polar nos corpos de jovens e adultos idiotizados, paralisados em seus quartos e presos aos écrans de comunicação informacional, consumindo o ódio como o pão nosso de cada dia. São, grosso modo, desocupados ou trabalhadores precarizados, integrantes do exército de reserva da economia neoliberal e soldados ciberfascistas da ativa nas comunidades virtuais da guerra em rede. Todo o esforço presente na contrainformação, que ocupa as bolhas de afinidades afetivas, está inclinado à narrativa irracional que percebe o mundo real como mera expressão ideológica e o discurso ideológico extremista, como a única realidade existente. É a consciência falsa do mundo que mobiliza a guerra em redes, o espaço virtual, o simulacro do real, passa a ser a realidade imaginada por uma massa invisível aprisionada às bolhas de ódio. Habitamos espaço-tempo em que o falso se dissemina como pandemia viral. É o contexto de pós-verdade, no qual os indivíduos subtraem do discurso a verdade factual com o desejo nefasto de criar realidades ficcionais e perigosas à democracia. Além disso, a miséria das narrativas expressas nas fake news carrega objetivos políticos e econômicos nada inocentes. Ideias que corroboram a ordem neoliberal, carregadas de cosmético para camuflar o fascismo que avança com a disposição de salvaguardar o poder dos super-ricos. Realmente, é impossível descolar as intenções econômicas e ideológicas expressas nas mensagens falsas, que inflacionam as redes sociais, do ultraliberalismo triunfante. No limite, o capitalismo do século XX criou o Cidadão Kane, magnata das comunicações liberais, a fim de interferir na progressão da democracia de massa, fabricando consenso para dominar. Do mesmo modo, o Capitalismo Tardio concebeu o bebê de Rosemary, Elon Musk, Barão da plataforma de contrainformação, que, fazendo uso das infovias neoliberais, fabrica o fenômeno pânico para destruir – por meio de hiperguerra neoliberal – a progressão das democracias.