Califado: a desinformação que gera extremismo

No streaming, a série retrata a vida de jovens muçulmanas numa Europa xenófoba e hostil, recrutadas ao Estado Islâmico. Vulneráveis, e ressentidas com as falsas promessas do Ocidente, tornam-se alvos de discursos conspiratórios

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“Então o Corão está errado? Nele diz que devemos matar os apóstatas!”, exclamou Sulle, uma jovem de 16 anos, filha de imigrantes muçulmanos da Suécia, quando os seus pais, Suleiman e Tuba, impactados por encontrarem vídeos do grupo Estado Islâmico em seu laptop, questionaram a forma distorcida que a religião estava sendo representada pelo grupo terrorista.

A série sueca, Califado, dirigida por Wilhelm Behrman e Niklas Rockstrom, apresenta todas as etapas de recrutamento de jovens do Ocidente para o grupo terrorista do Estado Islâmico. Todo esse processo conta com a manipulação de jovens alienados e em situação de vulnerabilidade social e econômica em algumas cidades da Europa, a fim de convencê-los a migrarem para Raqqa, cidade síria conquistada pelo Estado Islâmico em meados de 2015 e 2016, a aderirem a luta armada contra o Ocidente. A série destaca, sobretudo, o processo de atração de jovens mulheres da Suécia pela ideologia fundamentalista propagada por esses recrutadores.

Em Califado, as protagonistas Pervin, Sulle e Kerima são “seduzidas” pela ideia de viver em um ambiente dominado pela lei islâmica, a Sharia, longe da “degradação do Ocidente”, e em uma empreitada contra o domínio e a destruição dos Estados Islâmicos e do Islã.

Pervin, uma jovem sueca de origem turca, casada com um terrorista do Estado Islâmico, Husam, passa praticamente todos os episódios da série, tentando fugir do Califado de Raqqa e voltar a sua cidade natal, Estocolmo, com a ajuda de uma jovem policial sueca, Fatima, que investiga indícios de um plano de atentado terrorista na Suécia. Com um celular escondido, Pervin enviava informações confidenciais sobre eventuais células do Estado Islâmico na Suécia em troca de ajuda policial para escapar de Raqqa com a sua filha, um bebê de 6 meses de vida. Enquanto isso, Sulle e Kerima são atraídas pelas ideias de Ibbe, um jovem recrutador carismático do Estado Islâmico, disfarçado de monitor em um colégio de jovens imigrantes.

Em muitos momentos da série, Sulle e Kerima apresentam desagrado e falta de interesse pelas temáticas abordadas em sala de aula por considerarem o conteúdo manipulado pelos meios de comunicação ocidental. A ideia de um “complô” contra as comunidades muçulmanas, o Islã e o Oriente Médio aparecem quando ambas passam a acreditar que os atentados em Nova Iorque, em 11 setembro de 2001, foram planejados pelo próprio governo dos Estados Unidos com a ajuda de Israel a fim de justificar a perseguição ao Islã e aos muçulmanos ao redor do mundo. Nessa ocasião, Ibbe, na condição de monitor dedicado e atencioso, ao notar a frustração das duas estudantes, inicia o processo de recrutamento, ao compartilhar sites e vídeos da internet que reforçam as ideias conspiratórias.

A série da Netflix demonstra, através da ficção, a busca dos recrutadores do Estado Islâmico por pessoas “não especiais” que vivem sob condições precárias, em situação de vulnerabilidade social, econômica e psicológica. Geralmente os alvos desse grupo são jovens imigrantes muçulmanos, descendentes e\ou recém-convertidos que vivem à margem da sociedade ocidental europeia. A personagem Kerima é um grande exemplo dessa situação, trata-se de uma adolescente, filha de um imigrante da Chechênia com sérios problemas de alcoolismo. Em alguns episódios é possível assistir cenas de conflitos doméstico, entre pai e filha.

Além de jovens da comunidade muçulmana, Califado apresenta alguns casos de jovens muçulmanos convertidos ao Islã. Esse é o caso de dois irmãos suecos, o mais velho com histórico de violência e problemas com a justiça se converteu ao Islã no presídio onde cumpria pena por assassinato. O irmão mais novo, Emil, acometido por problemas mentais, seguiu os passos do irmão ao se tornar muçulmano e a integrar a célula do Estado Islâmico na Suécia.

Embora as irmãs Sulle e Lisha façam parte de uma família com estabilidade emocional e financeira, muitos conflitos familiares começaram a surgir em decorrência da proximidade entre Sulle e Ibbe no colégio onde estão matriculadas. Os pais de Sulle e Lisha são muçulmanos seculares e, desde o início da trama, apresentam certa resistência frente as manifestações do Islã na esfera pública, como o uso do Hijab, o véu. Em um dos episódios de Califado, Suleiman tira o Hijab de Sulle a força quando a menina decide, pela primeira vez, assumir sua identidade religiosa. A ação extrema de seu pai exacerbou a revolta de Sulle pela sociedade ocidental, de modo à torná-la ainda mais convicta a seguir as ideias de Ibbe, que inclui a oferta de uma mudança definitiva rumo ao Califado em Raqqa, na Síria, e a viver sob as leis do Islã, a Sharia.

As protagonistas da série Califado são todas mulheres, e isso não é coincidência. À primeira vista é difícil imaginar qualquer mulher do Ocidente deixando para trás suas rotinas, suas casas e, em alguns casos mais extremos, abandonando seus pais, irmãos e filhos, rumo a um destino incerto e perigoso. No Califado de Raqqa, as mulheres são destinadas ao casamento arranjado e poligâmico e, a uma vida limitada à esfera privada. Neste lugar, as mulheres não são autorizadas à saírem de casa desacompanhadas de seus maridos, caso o contrário correrão o risco de sofrerem castigos físicos.

Nas cidades conquistadas pelos Estados Islâmico houve muitas denúncias, por parte de testemunhas oculares, que relataram as práticas de torturas, os estupros e as execuções públicas de mulheres que desobedeceram às leis impostas pelo grupo fundamentalista ou que tentaram fugir do Califado. Um dos casos reais mais emblemáticos foi a da adolescente austríaca de 17 anos de idade, Samra Kesinovic. Em meados de 2015, ao chegar em Raqqa, a menina imediatamente tornou-se escrava sexual de alguns militantes do Estado Islâmico até o momento em que foi brutalmente assassinada por espancamento após tentar fugir do Califado.

Durante a guerra civil na Síria, entre os anos de 2015 e 2016, foi estimada a presença de cerca de 20.000 agentes estrangeiros em territórios sírio e iraquiano. De acordo com a professora de Contraterrorismo da Universidade de Zagreb, na Croácia, Anita Peresin (2015), o número exato de mulheres ocidentais que se juntaram às fileiras do Estado islâmico é impreciso. Contudo, nesta ocasião, foi estimada a presença de mais de 550 mulheres, o equivalente à cerca de 10% de todos os militantes estrangeiros do Estado Islâmico na Síria (p. 21). Além das mulheres estrangeiras que já viviam em Raqqa, centenas de jovens mulheres provenientes da Europa, Estados Unidos e Austrália foram detidas pelas autoridades locais nos aeroportos da Turquia ao tentarem entrar na Síria de modo irregular. Isso sem ao menos mencionar a enorme quantidade de adolescentes que manifestavam apoio à ideologia e às ações do Estado Islâmico nas redes sociais.

Todas as mulheres que, conscientemente, se juntaram ao Estado Islâmico neste período, foram denominadas de Muhajirat, em homenagem as mulheres que protegeram o profeta durante as batalhas Islâmicas do século VII. Os recrutadores do Estado Islâmico presentes em alguns Estados ocidentais, na Europa, nos Estados Unidos e na Austrália, são habilidosos em manipular adolescentes em situação de vulnerabilidade e a convencerem a apoiar ativamente as diretrizes do Estado Islâmico nos territórios do Levante. Dentro do Califado, as mulheres recrutadas têm a chance de participar da criação de uma nova sociedade baseada, idealisticamente, no respeito e na proteção.

Toda a campanha produzida pelo Estado Islâmico para atrair novos integrantes no Ocidente é realizada em vários idiomas, notadamente em línguas inglesa e francesa, e em múltiplas plataformas como o Twitter, Facebook, Instagram, WhatsApp e o Youtube.

Aparentemente, o processo de adesão ao Estado Islâmico é mais fácil e ágil quando comparado a decisão de abandonar o grupo. Assim que os novos integrantes estrangeiros chegam ao Califado, a primeira providência a ser tomada pelas lideranças do Estado Islâmico é o confisco aos passaportes, documentos de identidade e telefones celulares. No caso das mulheres, o direito ao arrependimento é ainda mais difícil. Isso porque as mulheres do Califado não são autorizadas a saírem às ruas desacompanhadas de seus maridos.

O que torna essa experiência ainda mais impactante é a idade média das mulheres estrangeiras que migram rumo ao Califado. De acordo com a professora Peresin (2015), a maioria das mulheres que se juntaram ao Estado Islâmico na Síria têm entre 16 e 24 anos de idade. Na maioria dos casos trata-se basicamente de muçulmanas de segunda e terceira gerações e de jovens convertidas ao Islã. No caso de jovens que viajam sozinhas à Raqqa, há fortes evidências de que, na maioria dos casos, esta decisão não contou com o apoio familiar. Em muitos casos, os pais e demais membros da família, condenam veementemente o alinhamento extremista dessas adolescentes. E, quando são detectadas a fuga dessas jovens rumo à Síria, muitas famílias solicitam a ajuda policial para o resgate.

Essa mesma situação é apresentada em Califado. Quando Sulle e Lisha, decidem viajar à Turquia escondidas, seus pais, Suleiman e Tuba, recorrem imediatamente aos serviços policiais da Suécia a fim de resgatar as duas filhas na fronteira entre a Turquia e a Síria. Na série, Suleiman viaja à Turquia junto com o policial sueco, Calle, a fim de acompanhar de perto o resgate das duas filhas. Além da angústia pela incerteza do resgate, Suleiman enfrentou a resistência das adolescentes que, à primeira vista, se recusaram a voltar para a casa dos pais.

O processo de desinformação generalizada produzida por grupos extremistas, em um ambiente hostil, permeado por racismo e xenofobia, têm efeitos irreversíveis. A série Califado pôde comprovar que, em casos mais extremos, a desinformação é capaz de matar. E, para a atual epidemia de desinformação, infelizmente, ainda não existem vacinas.

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